12/02/2021

Os poetas Antônio Miranda e Renata Bomfim representarão o Brasil no XVII Festival Internacional de Poesia Granada, na Nicarágua em fevereiro de 2021.




Eu e o poeta Antonio Miranda representaremos o Brasil XVII Festival Internacional de poesia de Granada. Estivemos juntos em 2016 e desde então somos amigos. Antônio Miranda já veio várias vezes ao ES e teve participação no projeto da Biblioteca Central da UFES. Professor emérito da UNB, possui um Portal de poesia com poetas de vários países.


Confira a programação do XVII Festival Internacional de Poesia de Granada, na Nicarágua (entre 14 e 21 de fevereiro de 2021).

 

14 de febrero/ February 14th 

Francisco de Asís Fernández (Nicaragua), RaúL Zurita (Chile), María Ángeles Pérez López (ESPAÑA), José Ángel Leyva (México), Víctor Rodríguez Núñez (Cuba), Marisa Daniela Russo (Argentina), Rafael Soler (España), Alfredo Fressia (Uruguay). 

 

15 de febrero/ February 15th


 Gioconda Belli (Nicaragua), Jotamario Arbeláez (Colombia), Alberto López Serrano (El Salvador), Krystyna Dabrowska (Polonia), Aleyda Quevedo (Ecuador), Maarten Inghels (Bélgica), Zingonia Zingone (Italia), Francisco Morales Santos (Guatemala). 

 

16 de febrero/ February 16th 


Gloria Gabuardi (Nicaragua), Renata Bomfim (Brasil), Luis Alvarenga (El Salvador), Kirsti Blom (Noruega), Álvaro Gutiérrez (Nicaragua), Husain Habash (Siria), Itsván Turczi (Hungría), Erick Blandón (Nicaragua).

 

17 de febrero/ February 17th 


Pedro Enríquez (España), Anastasio Lovo (Nicaragua), Lana Derkac (Croacia), Yolanda Castaño (España), Mateo Morrison (República Dominicana), Marta Leonor González (Nicaragua), Liliana Popescu (Rumania), Berman Bans (Nicaragua), Silvia Siller (México).

 

18 de febrero/ February 18th 


Timo Berger (Alemania), Sasha Pimentel (Filipinas), Francisco Larios (Nicaragua), Mario Noel Rodríguez (El Salvador), Sonja Manojlovic (Croacia), Juan Sobalvarro (Nicaragua), María Palitachi (República Dominicana), Silvia Elena Regalado (El Salvador).

 

19 de febrero/ February 19th 


Bei Ta (China), Daisy Zamora (Nicaragua), Rolando Kattán (Honduras), Miguel Ángel Zapata (Perú), Chary Gumeta (México), Aminur Rahman (Bangladesh), Madeline Mendieta (Nicaragua), Javier Alvarado (Panamá), Chantal Danjou (Francia), Daniel Araya (Costa Rica). 

 

20 de febrero/ February 20th 


Ana María Rodas (Guatemalani), Ario Salazar (El Salvador), Alejandro Bravo (Nicaragua), Andrea Cote (Colombia), Antonio Miranda (Brasil), Lorna Shaughnessy (Irlanda), Rei Berroa (República Dominicana), Ernesto Valle (Nicaragua), Lourdes Espínola (Paraguay), Silvio Ambrogi (Nicaragua), Lucía Alfaro (Costa Rica), Nicasio Urbina (Nicaragua), Renato Sandoval (Perú).

 

21 de febrero/ February 21th 


Rebecca Sharp (Escocia), Nelson Cárdenas, Carlos Fonseca Grigsby (Nicaragua), Vania Vargas (Guatemala), Christie Williamson (Escocia), Ela Urriola (Panamá), Julio Francisco Báez (Nicaragua), Miroslava Rosales (El Salvador), Carlos Alemán Rivas (Nicaragua).

09/02/2021

XVII Festival Internacional de Poesia de Granada, na Nicarágua (a partir de 14 de fevereiro de 2021).



A partir de 14 de fevereiro acontecerá o XVII Festival Internacional de Poesia de Granada no âmbito do bicentenário da Independência da América Central, em homenagem à poeta nicaraguense Ana Ilce Gómez e em memória da poeta salvadorenha Claudia Lars.
Eles vão nos acompanhar nesta edição 55 poetas. As leituras serão transmitidas a partir das 7:00 PM na nossa página oficial do Facebook.

As leituras serão transmitidas a partir das 7:00 PM na nossa página oficial do Facebook.


 

FESTIVAL INTERNACIONAL DE POESIA DE GRANADA, NA NICARÁGUA: Viva la poesía!

 

O Festival Internacional de Poesia de Granada (FIPG) é o maior festival de poesia da América Latina, uma celebração que reúne poetas de todas as partes do mundo. 

Durante o Festival acontecem recitais em Granada, sede do evento, e também nos municípios vizinhos. Eu tive a oportunidade de conhecer Diriamba, localidade onde se originou “El Gueguense”, a representação teatral reconhecida como sendo a mais antiga da América Latina. 

As leituras de poesias acontecem nos colégios, praças e em frente a igrejas centenárias lindamente iluminadas. Durante todos os dias os visitantes podem acompanhar leituras de poesia, mesas redondas, apresentação de livros e feira de livros e artesanatos. 

Próximo ao término do evento acontece o esperado “Carnaval Poético”, promovido pelas comunidades, onde poetas convidados e turistas podem conferir a riqueza de cores e sons do folclore nicaraguense e no qual se realiza um ritual de exorcismo da dor, do medo, da violência e onde se canta em favor da vida, da esperança e da democracia. Estima-se que cerca de cinquenta mil pessoas, entre cidadãos nicaraguenses, poetas e turistas, assistam anualmente ao Festival, o que também promove a cultura nicaraguense e fomenta o comércio e o turismo local.


Noite de leitura.

Poetas convidados em frente ao Memorial Rubén Darío.



Com os amigos queridos Chichi, Glória e o presidente da 
Academia de Línguas e Letras do México.

O Festival completa dezessete anos em 2021, sendo que as suas três ultimas versões foram realizadas via internet, devido a questões políticas e de saúde pública por conta da pandemia de Covid-19.

Todo ano o @FIPGNicaragua homenageia um escritor. Fazem parte desse conjunto de homenageados os poetas Joaquín Pasos, Ernesto Cardenal, José Coronel Urtecho, Pablo Antonio Cuadra e Fernando Silva; Salomón de la Selva, Alfonso Cortés Bendaña, Azarías H. Pallais, Claribel Alegría, Carlos Martínez Rivas, Rubén Darío, Enrique Fernández Morales, Ernesto Mejía Sánchez, Manolo Cuadra e Fernando Silva. 

Visita ao túmulo de Rubén Darío. 

Em 2014 fui convidada pela primeira vez para representar o Brasil nesse prestigioso evento, no X Festival Internacional de Poesia de Granada. Nem preciso falar o quanto esse convite me alegrou, especialmente porque tenho uma ligação especial com a Nicarágua, por ser a terra natal de Rubén Darío, poeta que foi meu objeto de estudos no Doutorado de Letras da UFES e do qual sou leitora há vários anos. Nessa edição do Festival participaram 135 poetas de 60 países.  Do Brasil, participaram do FIPGNicaragua poetas que admiro grandemente como os amigos queridos Maria Lúcia Dal Farra e Antônio Miranda e, na edição anterior, em 2013, o convidado foi o poeta Thiago de Mello, muito amigo e tradutor de Ernesto Cardenal.

No Carnaval da Poesia!

Visita a escolas durante o FIPG

Ao lado do Nobel de Literatura Dereck Whatcot

Ao lado do querido poeta nicaraguense Ernesto Cardenal, em 2016.

Bem, o carinho, o respeito e a identificação foram imensos, tanto que, decorrido um ano, voltei a ser convidada para participar do XII Festival Internacional de Granada, do XV Festival Internacional de Granada, que não pode acontecer presencialmente pelos motivos já explicados, mas que deu lugar a um recital virtual em homenagem à Rubén Darío. Posteriormente, participei do XVI Festival Internacional de Granada e, agora, no dia 14 de fevereiro de 2021, participarei da mais recente edição, o XVII Festival Internacional de Granada, evento que é um sopro de vida e de liberdade propiciados pela poesia, em um momento calamitoso em todo o mundo. Lerei um poema do meu mais recente poemário, O Coração da Medusa, que foi contemplado no Edital da SECULT e está em vias de ser publicado. O poema chama-se “La prometida de Nicanor Parra”, a tradução do mesmo ao castelhano foi feita pelo amigo, poeta e tradutor espanhol Pedro Sevylla de Juana. 

Renata Bomfim (Vitória, 09/02/2021).

A Outra Florbela Espanca (Prof.ª Dr.ª Renata Bomfim)

Resumo: Durante muito tempo a crítica biográfica esboçou um retrato acabado de Florbela Espanca (1894-1930), tornando-a conhecida como a poetisa da dor, da saudade e da melancolia. Entretanto, novos olhares estão sendo lançados sobre a obra da escritora portuguesa, revelando que ao invés da malograda poetisa, estamos diante de uma personalidade poética atuante, extemporânea, e desafiadora do ideário feminino de sua época, uma persona dramatis que nesse artigo chamei de “Outra”, aludindo à mulher como alteridade. Apresentamos nesse estudo, aspectos da vida e da obra da poetisa alentejana, destacando o contexto social e cultural no qual ela viveu e produziu, bem como, salientamos a importância do movimento feminista para as escritoras do final do século XIX e início do século XX. Esses apontamentos são resultado das pesquisas que culminaram na tese de doutorado “A flor e o Cisne: diálogos poéticos entre Florbela Espanca e Rubén Darío”, de nossa autoria. Palavras-chave: Florbela Espanca; Poesia; Feminismo. 

Abstract: For a long time, the biographical critics outlined a finished portrait of FlorbelaEspanca as a poetess od grief, yearning and melancholy, However, new the works of the Portuguese writer is being observed from new points of view, revealing trhat instead of a fruistratedpoetes we stand before an active, extemporary poetic personality, who challenges the feminine system of ideas of her epoch, a persona dramatis whom , in this aricle, I called The Other, alluding to a woman as the otherness. In this study we present, aspects of life and work of the poetess from the Alentejo, pointing out the social and cultural context in which she lived and produced, as well as we highlight the importance of the feminist movement of the end of 19th and the beginning of the 20th century for women writers. These writings result from the research that culminated in our PhD thesis ”The Flower and the Swan: poetic dialogues between FlorbelaEspanca and Rubén Darío” of our own. Keywords: Florbela Espanca; Poetry; Feminism.


Pesquisas que culminaram na tese de doutorado “A flor e o cisne: diálogos poéticos entre Florbela Espanca e Rubén Darío”, permitiram que pudéssemos visualizar uma imagem mais nítida da poetisa portuguesa Florbela Espanca (1894-1930), para além da conhecida poetisa da dor, da saudade e da melancolia; da “malograda poetisa” descrita por José Agostinho em 1931. 

Deparamo-nos com uma mulher estrategista e diplomática, grávida, destemida, desafiadora, irônica e brincalhona, peregrina e em trânsito, uma Florbela “espantosa e quase inverossímil” (DAL FARRA apud VILELA, 2012, p. 132). Em 1979, a escritora e biógrafa de Florbela, Agustina Bessa-Luís (1979, p. 38), declarou que, para ela, o melhor “retrato” da poetisa foi feito por uma mulher que em uma tarde a viu numa ocasião: “Era alta, estava vestida de branco, e um lenço vermelho caia-lhe do bolso sobre o peito. Havia um enxame de homens em volta dela, e eu pensei que ela correspondia à ideia que se faz de uma poetisa”. Florbela foi uma mulher extemporânea e se a sua imagem ia ao encontro do que se pensava acerca de uma poetisa, certamente, essa era diametralmente oposta ao ideário feminino de sua época. 

Para a pesquisadora Ana Luisa Vilela (2012, p. 9), Florbela Espanca é uma “personalidade que, fundamentalmente, nos deslumbra e desconforta, nos intriga e nos comove”, e que é, também, um desafio para a crítica, na medida em que, “controvertidamente, seu contributo tornou-a um marco referencial da poesia portuguesa do século XX”. Ao ingressamos na aventura de conhecer um pouco mais sobre a mulher por trás do mito, observando como, equivocadamente, durante muito tempo, o amálgama vida e obra marcou a leitura de sua obra e a história da sua recepção, nos acercamos da teoria da Estética da Recepção. Foi na década de 1970 que Hans Robert Jauss (1994) criticou a objetividade e pouca abertura em relação a fatores externos dos métodos praticados nas análises dos textos literários, que não reconhecia a importância do leitor no processo da leitura e entendimento da obra, além de negligenciar a historicidade do texto. Citamos Jauss para destacar que a obra poética de Florbela foi recebida de maneira diferente em diversos momentos da história, como mostra o horizonte de expectativas do público, desde seus primeiros escritos, até os dias de hoje. Primeiramente, ela conheceu o silêncio e, posteriormente, o furor da crítica patriarcal e falocêntrica de sua época e, após a sua morte por suicídio, a poetisa foi desclassificada pela igreja católica, que desaconselhou a leitura dos seus poemas, como sendo um péssimo exemplo, de uma pessoa moralmente perniciosa. Ana de Castro Osório afirmou que Florbela Espanca não abriu para si “nenhum horizonte profissional” a não ser o de “literata”, e esse atributo era “o mais desagradável que podia ser dito de uma senhora, que era vista com um livro na mão” (ESPANCA, 1995, p. 16).

Na contramão do status quo, Florbela trouxe incômodos à sociedade moralista de sua época. Foi por meio do soneto, modelo clássico de expressão lírica preferida pelas poetas da época, chamadas pela crítica masculina intolerante e misógina de “poetisas-de-salão”, que Florbela ousou enunciar um discurso prenhe de erotismo. Antônio Ferro (1931), no artigo que deu visibilidade nacional a Florbela, escreveu que a poeta figurava em seu ficheiro como sendo “uma das poetisas da colmeia”, mais uma das “cigarras do [...] lirismo inofensivo” de “palcos” e de “salas”; mas, depois de ler seus sonetos mais atentamente, percebeu que era “uma poetisa autêntica”. José Agostinho (1931) escreveu: “Se D. Florbela nos tivesse mandado seus livros, teríamos agora pungentíssimos remorsos”, pois, “a injustiça do nosso silêncio teria sido flagrante e abominável”; mas não lhos mandou. 

A escritora Agustina Bessa-Luís escreveu a biografia romanceada de Florbela em 1979. Nela, observamos que José da Rocha Espanca, padre de Vila Viçosa, em 1892, escreveu o Compêndio de notícias de Vila Viçosa. O religioso detalhou aspectos do território alentejano, defendendo que “os celtas foram os primeiros habitantes do Alentejo” e que os “Belos” foram “os tais Celtibeiros com cheiro fenício” (BESSA-LUÍS, 1979, p. 10). Daí que o padre Antônio Joaquim da Rocha Espanca tenha batizado a filha adulterina de João Maria Espanca como Flor-Bela. Bessa-Luíz (1979, p. 7) associando o universo da poeta alentejana ao do bardo-celta, situado entre dois mundos, oscilando entre a morte e o renascimento, “ligado à função sacerdotal” e a manifestação da poesia lírica ou histórica. A avó paterna de Florbela, Joana Fortunata Pires Garção, serviu no convento de Santa Cruz de Vila Viçosa até se casar com José Maria Espanca. O casal teve dois filhos, José de Jesus da Rocha Espanca e João Maria Espanca, futuro pai de Florbela. 

Os Espanca tinham pendências para as artes. João Maria Espanca, além de grande boêmio, era artista e tinha um espírito aventureiro. Ele aprendeu o ofício de sapateiro com seu pai, mas acabou se tornando dono de um antiquário e viajava de localidade em localidade comprando utensílios para serem revendidos. João Maria conheceu a Espanha, andou pelo Marrocos, pela França e, numa dessas viagens, adquiriu um Vitascópio de Edson, máquina que projetava imagens em movimento. Passou então a trabalhar exibindo filmes nas casas das famílias que o contratavam tanto em Lisboa, quanto em outras regiões. Além de ter trabalhado com cinematografia, sendo um dos pioneiros dessa arte em Portugal, o pai de Florbela teve um estúdio fotográfico em Vila Viçosa (Photographia Moderna). A existência do estúdio facilitou um acompanhamento do crescimento de Florbela, e temos imagens de sua infância, adolescência e algumas que mostram a poeta na idade adulta. Florbela Espanca nasceu no dia 8 de dezembro de 1894, um dos dias mais importantes do calendário português: dia de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, padroeira de Portugal. 
Florbela ainda Menina

Foi na igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição que foi batizada pelo padre primo de seu pai. Embora Florbela tenha nascido sob a égide da santa da “imaculada conceição”, levando em consideração o modelo moral aceitável estabelecido pela igreja católica na época, a sua história familiar e pessoal se apresenta como um desvio desse modelo: Florbela é fruto de uma relação extraconjugal. A esposa de João Maria Espanca, Mariana do Carmo Inglesa, mais velha que João Maria e com um dote significativo, não podia ter filhos; assim, consentiu que o marido se unisse a Antônia da Conceição Lobo. A mãe biológica de Florbela era de origem muito humilde e foi criada em situação de quase miséria por uma senhora que atendia pelo sobrenome Lobo. Como destacou Concepción Delgado Corral (2005), “foi com dotes de Don Juan” que João Maria Espanca raptou Antônia Lobo, levou-a para o seu estabelecimento e depois a instalou em uma casa fora do centro da cidade. Mariana Toscano do Carmo, chamada de “Inglesa” porque vinha de uma família que tinha olhos azuis, consentiu na vida dupla do marido e, após o nascimento de Florbela, tornou-se sua madrinha de batismo. A menina foi batizada como Florbela D’alma da Conceição Espanca, filha de Antônia da Conceição Lobo e de “pai incógnito” (ESPANCA, 1999, p. XLV). Antônia da Conceição Lobo gerou também o irmão único de Florbela, Apeles, três anos mais novo, que foi criado junto à irmã por João Maria Espanca e Mariana Inglesa. Em 1908, Antônia faleceu, tinha então vinte e nove anos.

Florbela Espanca relatou ter vivido uma infância feliz e cercada de cuidados e registrou numa carta: “Tive os melhores professores de tudo na capital do Alentejo (que se são melhores não são bons), de bordados, de pintura, de música, de canto” (ESPANCA, 1995, p. 31). Na época, a família tinha uma situação financeira estável e a educação de Florbela ficou a cargo da madrinha e madrasta Mariana Inglesa. Desde muito cedo Florbela mostrou aptidão para a literatura, tanto que, em 1903, aos nove anos, escreveu o seu primeiro poema, intitulado “a vida e a morte”, que ela dedicou ao seu pai:

O que é a vida e a morte
 Aquela infernal inimiga 
A vida é o sorriso 
E a morte da vida a guarida 

A morte tem os desgostos
 A vida tem os felizes 
A cova tem a tristeza 
E a vida tem as raízes

 A vida e a morte são
 O sorriso lisonjeiro 
E o amor tem o navio 
E o navio o marinheiro 
(CORRAL, 2005, p. 231). 


Quando completou onze anos, Florbela já escrevia em francês, embora os textos apresentassem erros ortográficos. Foi entre julho e setembro de 1907 que fez experiências com a prosa e escreveu o conto “Mamã” (CORRAL, 2005, p. 33). A casa de Florbela Espanca ficava bem próxima à residência de verão da Família real. De acordo com Bessa-Luís, (1979, p. 10), “a euforia castiça” tomava conta do povo quando os reis chegavam, e os acontecimentos relacionados com os membros da monarquia eram acompanhados de perto pelos Espanca, em função do interesse de João Maria pela política.

 A corte dos Bragança era “pobre, sentimental, velhaca, dorida de intrigas domésticas”, e “suas banalidades fecundavam as demagogias das praças públicas”, e, como destacou Bessa-Luís (1979, p. 11), Florbela ouvia os passos dos oficiais na “galanteria das caçadas reais”, mas “Vila Viçosa decepcionava-a”. Em 1908, a família de Florbela mudou-se para Évora, para que esta pudesse continuar os estudos no Liceu de André Gouveia. Apenas Florbela e outra menina frequentavam o Liceu. Florbela estudou até 1913, quando largou os estudos para se casar, deixando inconclusa a 7ª série. Apenas em 1917, a poeta concluiria o ano de estudo que faltou para que pudesse entrar na sonhada Faculdade de Letras.

 Importantes acontecimentos políticos ocorreram nesse período, entre eles destaca-se a morte do Monarca D. Carlos e do príncipe herdeiro, Luis Felipe, ambos assassinados na Praça do Comércio, em Lisboa. Após o regicídio ocupou o trono o segundo filho de D. Carlos e D. Amélia, D. Manuel, que reinou como D. Manuel II, mas a monarquia foi perdendo força. Posteriormente, houve sucessivos governos provisórios em Portugal, até que em 1910 foi instaurada a República (BOURDON, 2010). Dal Farra (ESPANCA, 1994, p. 58) destacou que, se Florbela não teve ocasião de comungar diretamente dos ideais republicanos, ela os incorporou “à influência de João Maria Espanca”, seu pai, que era um defensor e militante ferrenho da causa. Dessa forma, a poeta tanto apreciava quanto exaltava tais doutrinas. Convém destacar que, desde 1914, a Liga Republicana de Mulheres Portuguesas e a Associação de Propaganda Feminina haviam sido dissolvidas pela ditadura. 

Florbela batizou o seu primo, Túlio Espanca, em 1913, e nesse mesmo ano se casou com Alberto de Jesus Silva Moutinho, amigo de muitos anos do Liceu. Começam as mudanças: Florbela mudou-se para Redondo e o casal passou por graves dificuldades econômicas, pois o único rendimento provinha das aulas particulares que ambos ministravam para alunos do colégio. A situação tornou-se insustentável ao ponto de Florbela se ver obrigada a retornar para Évora. O casal então passou a morar com João Maria Espanca e a dar aulas no colégio de Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Florbela voltou novamente para Redondo e foi então que passou a escrever poemas. Observamos que a poeta passou por muitas dificuldades financeiras. Não é de se estranhar o fato de que a publicação de seus livros tenha ficado ao encargo de seu pai, João Maria Espanca. Durante muito tempo, a crítica míope acusou Florbela Espanca de ter sido uma poetisa apolítica, bem como de ser superficial e refugiar-se no mundo dos sonhos. Mas Florbela não foi alheia aos acontecimentos de sua época. 

Em 1915 a situação de Portugal era convulsa, foi quando Florbela se declarou anarquista e começou a escrever os poemas que reuniria, em 1917, no caderno Trocando Olhares. O manuscrito Trocando Olhares foi descrito pela crítica Dal Farra como um “objeto arqueológico” de caráter “híbrido” da poética florbeliana, que faz trânsito entre “a limpidez absoluta” e “um emaranhado quase indecifrável”, ao mesclar a caligrafia esmerada com esboço de poemas rascunhados e cheio de retificações (ESPANCA, 1999, p. 17). O ingresso de Portugal na Primeira Guerra Mundial, em 1916, moveu partidários republicanos e poetas engajados como Raul Proença, interlocutor importante para a poética florbeliana e editor do Livro de Mágoas, de Florbela. 

O Livro de Mágoas foi publicado em 1919, com poemas retirados do manuscrito Trocando Olhares, em 1923 a poetisa publicou o Livro de Sóror Saudade e, em 1931 veio a lume, postumamente, a obra Charneca em flor. Florbela Espanca reflete sobre o fazer poético e sobre as condições às quais esse fazer está sujeito, como, por exemplo, a historicidade da condição da mulher, e este é um posicionamento político que corrobora o nosso posicionamento quanto a poeta ter vivenciado o engajamento via poesia. Foi no influxo de variadas interlocuções e diálogos, a saber, com Madame Carvalho, Júlia Alves, Raul Proença e, mais, com o mercado literário e com o seu tempo, que Florbela atravessou “o limiar entre o privado e público” (ESPANCA, 1999, p. 143).

Deparamo-nos aqui com o aporte bakhtiniano. Mikhail Bakhtin (1895-1975) fez parte da escola formalista, mas divergiu dela ao reivindicar uma abertura sobre o mundo e sobre o “texto social”, além de propor o dialogismo como condição sinequa non do discurso (COMPAGNON, 2001, p. 111). Bakhtin (2003) postulou que a linguagem é um fenômeno que só acontece na relação do sujeito com o outro, também é ela que, no processo de interação social, constitui a consciência do sujeito. Os pensamentos de Bakhtin e de Jauss, referentes à historicidade no âmbito literário, possuem consonâncias. Para Jauss (1994, p. 47-48), a coerência da história geral é homogeneizadora, pois “a historicidade da literatura revela-se, justamente, nos pontos de interseção entre diacronia e sincronia”. O pensador alemão chama a atenção para o fato de a obra de arte não surgir no vazio, e nem por si só. Esse pensamento vai ao encontro de Bakhtin, para quem “a obra de arte é viva e significante do ponto de vista cognitivo, social, político, econômico e religioso, num mundo também vivo e significante” (BAKHTIN, 1993, p. 30):
O meio social deu ao homem as palavras e as uniu a determinados significados e apreciações; o mesmo meio social não cessa de determinar e controlar as reações verbalizadas do homem ao longo de toda a sua vida. Por isso todo o verbal no comportamento do homem (assim como os discursos interior e exterior) de maneira nenhuma pode ser creditado a um sujeito singular, tomado isoladamente, pois não pertence a ele, mas sim ao seu grupo social. [...] Nunca chegaremos às raízes verdadeiras e essenciais de uma enunciação singular se a procuramos apenas nos limites de um organismo individual singular, mesmo quando tal anunciação concernir aos aspectos, pelo visto, pessoais e íntimos da vida de um homem (BAKHTIN, 2004, p. 86). 

A partir do aporte bakhtiniano, observaremos que não foi apenas Florbela que teve dificuldades na enunciação do discurso poético. Constatamos que de todos os lugares destinados pelo sistema patriarcal à mulher, seja de mãe, esposa, amante ou de musa, existe um que só foi possível por apropriação, o de escritora. Quando pesquisávamos na Torre do Tombo, acerca do movimento feminista português do primeiro quartel do século XX, nos deparamos com uma matéria publicada no dia 27-3-1912, no Jornal lisboeta O Século, que trazia como título: “Uma mulher de Letras: A CONDESSA DE PARDO BAZÁN”. Essa publicação mostra o empenho das escritoras feministas, e de alguns intelectuais, para que Emilia Pardo Bazán fosse admitida na Academia Espanhola:

Emilia Pardo Bazán é hoje não apenas a primeira figura de escritora de que a Espanha e a península se podem orgulhar, mas também umas das primeiras da Europa, quer no romance, quer na crítica literária. A sua vasta bibliografia encerra verdadeiras obras primas, que lhe grangearam a maior e mais justa reputação. Artista perfeita, prosadora admirável, espírito brilhante e sagaz, d’uma cultura de que o seu sexo nos não dá muitos exemplos, ela conseguiu, mercê dos seus méritos singulares e d’um trabalho que ainda não buscou descanso, impor-se de maneira que, apesar de todos os preconceitos e das relutâncias dos anti-feministas, faz parte do Conselho de Instrução Pública hespanhol e é presidente da secção de letras no Ateneu de Madrid. Vagando, há pouco, uma cadeira na academia, por morte do grande matemático e sábio poliglota Eduardo Saavedra, produziu-se em Hespanha um entusiástico movimento como o fim de lembrar e até impor o nome ilustre de Pardo Bazán para o preenchimento da referida vaga. A insigne autora de La madre naturaleza e de tantas outras maravilhas literárias é galega, motivo porque esse movimento é na Galiza apoiado com um ardor excepcional. Resta ver se a Academia tem a coragem de se honrar com a admissão entre os seus membros de uma senhora que é incontestada na glória [o restante da página estava cortado]” (O Século, 27-3-1912).

Assim como a escritora Emilia Pardo Bazán (1851-1921) encontrou dificuldades para alcançar o reconhecimento do seu talento literário, outra escritora galega, Rosalía de Castro (1837-1885), também teve que enfrentar muitos preconceitos até ter reconhecido o seu valor. As vicissitudes da biografia de Rosalía de Castro, assim como as de Florbela Espanca, contribuíram para que em torno da mesma se erijisse uma aura que acabou por mitificá-la. Rosalía e Florbela vivenciaram situações semelhantes, como, por exemplo, foram ambas frutos de relações extraconjugais, o que na época em que viveram era algo que a sociedade tolerava, mas não aceitava. Florbela Espanca cantando a dor, a saudade, a sensualidade, o erotismo, a terra alentejana, o sonho, as vaidades. Rosália também desenvolveu na sua poesia temas variados, ela cantou a dor, a saudade, a religiosidade, questões existenciais como o questionamento do sentido da vida, a Galiza e trouxe para o primeiro plano os marginalizados (órfãos, mendigos, mães solteiras, os imigrantes galegos). Fiéis às suas verdades interiores, tanto Florbela Espanca, quanto Rosalía de Castro têm destacada, por inúmeros críticos, a coragem, por cantarem temáticas relevantes para a emancipação das mulheres, numa época em que o peso opressivo da cultura patriarcal inviabilizava o discurso feminino. Esses são exemplos da importância do movimento feminista no processo de emancipação feminina. 

 Vale destacar que as mulheres do século XIX foram potências produtivas domésticas, e as mais pobres, entre outras atividades, produziam artefatos que vendiam nos mercados, eram costureiras e operárias. Já as mulheres burguesas trabalhavam para os seus maridos. Muitas vezes elas exerciam as mesmas funções que os homens, mas não eram remuneradas equitativamente. Michelle Perrot (1988) destaca que o feminismo surgiu como movimento social, e não político, e isso fortaleceu a ideia de que política não era coisa de mulher. Foi a partir de 1848 que o feminismo se desdobrou em variadas direções e despertou uma forte resposta social contrária, tanto que os sindicatos passaram a lutar para que as feministas não tivessem espaço nem remuneração no mercado de trabalho. Nessa época, muitos sindicatos exigiam que fosse extinto o trabalho feminino fora do lar. Não conseguindo impedir a inserção da mulher no mercado de trabalho, o sistema regulamentou a sua atuação. O principal  veículo de difusão dos ideais feministas foi a imprensa. As mulheres liam os jornais diários, se apropriavam dos folhetins e foram, pouco a pouco, conquistando espaço. Florbela publicou em variados jornais e revistas. A poeta publicou, entre os anos de 1916 e 1930, no Notícias de Évora, A Voz Pública, O Século da Noite, no Diário de Lisboa, na Revista Seara Nova, Europa, Dom Nuno, O Primeiro de Janeiro, Revista Civilização, Diário de Coimbra, Portugal Feminino e no suplemento feminino do jornal O Século, Modas & Bordados. O jornal O Século era esquerdista, e podemos observar a notícia de seu lançamento no dia 28-1-1912, nasceu com o objetivo de instruir donas de casa, mas acabou por tornar-se espaço para as poetisas feministas publicarem seus textos:

De há muito tempo que vínhamos recebendo indicações sobre a falta, em Portugal, de uma publicação que, reunindo a modicidade do preço à perfeição da fatura, permitisse a toda mulher portuguesa, qualquer que fossem os seus meios, seguir a evolução das modas e bem assim a de todos os trabalhos femininos que constituem as melhores prendas de uma boa dona de casa. Sentíamos, nós também, essa falta. É certo que se vendem no nosso país alguns milhares de publicações francesas, inglesas e espanholas, contudo o que se faz lá fora n’essa especialidade [...] Sairá todas as quartas-feiras um suplemento de Modas e Bordados, com oito grandes páginas, cheias de figurinos que acompanham, dia a dia, a moda estrangeira, mas, adaptados ao nosso meio; publicará também numerosos desenhos de bordados, letras, rendas, etc. , etc. , que forneçam a todas as senhoras modelos de trabalhos em todos os gêneros; dará explicações detalhadas de todas essas gravuras e desenhos; fornecerá bons conselhos práticos sobre tudo quanto diz respeito à mulher, e, n’uma secção especial, encarregar-se-á de respondera todas as perguntas que lhe sejam enviadas (O Século, 1912). 
Entretanto, no dia 4-2-1912, o jornal O Século destacou um detalhe interessante: que o suplemento cuidaria a sério “de todos os assuntos que dizem respeito à educação de uma boa e sensata dona de casa”, isto é: “será um jornal, um dos poucos jornais que se pode deixar nas mãos de uma menina, sem que a sua leitura lhe infiltre no espírito más tentações, antes lhe aperfeiçoe o seu natural bom gosto e lhe inspire ideias sãs”. A escrita feminina em Portugal, na época em que Florbela produziu a sua obra, não era tabula rasa, ou seja, Florbela Espanca não surgiu no vácuo, como destacou Bakhtin. No início do século XX muitas mulheres passaram a escrever poesia. Esse fenômeno foi descrito como “um surto de poetisas” pela crítica, o que remete o termo “poetisa” para o campo da patologia, relacionando-o com a ideia de doença, epidemia. As poetas alcançaram grande popularidade, especialmente na década de 1920. Um breve olhar para o cenário da escrita feminina do século XIX mostra que entre os anos de 1849 e 1851, foi publicada a revista Assembléia Literária, dirigida por Antônia Gertrudes Pusich, uma das primeiras escritoras que ousou assinar o próprio nome numa publicação, numa época em que as identidades eram resguardadas por meio de pseudônimos. Em 1868, surgiu a revista A Voz Feminia, que abriu espaço para as mulheres que desejassem publicar. Em 1867, Maria Amália Vaz de Carvalho lançou a obra Uma primavera de mulher, que suscitou do crítico Ramalho Ortigão este comentário: “o pai e o marido, e não mais Deus, eram os novos tutores e médicos da mulher”, declarou ainda que essas mulheres deveriam se submeter “dócil e amorosamente” a estes nos períodos de sua existência (ALONZO, 1994, p. 22). A tendência à patologização pode ser observada na propaganda das pílulas Pink, uma entre muitas que prometiam força e saúde ao sexo considerado frágil.

Belas Senhoras, cuidado, muito cuidado: Cuidado com a primavera encantadora, sim, mas perigosa! Sois fracas, todos os vossos órgãos são fracos. O vosso sangue está carregado de impurezas, e os vossos rins demasiado fracos não podem eliminar essas impurezas. É mister, porém, que elas saiam. Sairão pela pelle, e o vosso belo rosto não tardará a ser deteriorado, afeiado, por uma quantidade de cousas detestáveis: erupções, fogagens, borbulhas, grandes furunculos até. O vosso intestino é fraco. [...] Purificam o sangue, e o pouco sangue que tendes está impuro. Tonificam o sistema nervoso, que tanto tendes fatigado nas festas e prazeres da sociedade, ou nas fainas do trabalho, têem grande necessidade de um tônico. As Pílulas Pink estimularão todos os vossos órgãos. Se não vos tardardes agora já, pagareis bem cara a vossa negligência: tome pois as PILULAS PINK” (O SÉCULO, 1912). 
A escritora portuguesa Ana Plácido (1831-1895), amante do escritor Camilo Castelo Branco e, posteriormente sua esposa, escandalizou a sociedade portuguesa chegando a ser presa por adultério. Ana Plácido também utilizava pseudônimos. No século XX surgiram em Portugal O Grupo Português de Estudos Feministas (1907), A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, em 1911, a Associação de Propaganda Feminista, em 1914, e o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Todos esses movimentos foram dissolvidos em 1926 pelo Estado Novo. As mulheres que participaram do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas se reuniram em torno da revista Portugal Feminino, da qual Florbela foi assídua colaboradora durante o último ano de sua vida. O reconhecimento do público não era algo inalcançável. Escritoras como Branca de Gonta Gonçalo (1880-1944), Alice Moderno (1867-1946), Domitila de Carvalho (1871-1966), conciliaram a escrita com atitudes femininas esperadas e aceitáveis, sendo aplaudidas por homens e mulheres. Maria de Carvalho (1889-1973), por exemplo, prefaciou a obra de Gonta Colaço destacando qualidades tradicionalmente femininas como a beleza, a modéstia e o altruísmo, e Virgínia Victorino (1898-1967), autora de Namorados, fez tanto sucesso que sua obra foi editada doze vezes. Essa obra de Virgínia Victorino se afasta da produção de Florbela por não abordar temáticas como a sensualidade. Isabel Freire (2010, p. 53) destaca o fetichismo dos discursos opressores na época do Estado Novo: “as Raparigas que aspirassem a outro destino menos doméstico e menos ‘puro’ colocaria em forte risco a sua virtude”. Publicações católicas como a revista Stella traziam o apelo dramático das mães e das educadoras advertindo para que se tomasse cuidado com as meninas, pois estas corriam perigo no alucinado século (FREIRE, 2010, p. 53). Segundo essa revista: “Não é com matemática e história na cabeça, o nome da fita recente ou do romance em voga que as pobres raparigas vão saber viver”, antes é por meio da educação cristã (FREIRE, 2010, p. 53). 

A feminilidade de Florbela Espanca não foi domada, a sua obra se aproxima da de Judite Teixeira (1880-1959), poeta que, na mesma época em que Florbela lançou o Livro de Sóror Saudade (1923), publicou a obra Decadência, cujos exemplares foram apreendidos sob a acusação de serem imorais, por terem um forte teor sensual e fazerem alusão ao lesbianismo, atração considerada perversa (ALONZO, 1994). Suilei Monteiro Giavara (apud VILELA, 2012, p. 190) nos faz saber que Judite Teixeira provavelmente conhecia Florbela, pois dirigia o jornal Europa na época em que Florbela publicou o soneto “Charneca em flor”, em junho de 1925. Florbela Espanca resistiu transgredindo, cantando o corpo, a liberdade, e a carga de sensualidade presente na sua obra poética vinculou-a a uma inextricável associação entre o prazer sexual e o proibido, ou seja, ao pecado. É preciso atentar para o fato de que Florbela viveu em um tempo no qual as mulheres não tinham liberdade sexual, ou seja, não tinham direitos plenos sobre o seu corpo e sobre a sua sexualidade. A liberdade que hoje se materializa no direito ao prazer, que já não é apenas reservado aos homens, era vetada às mulheres consideradas honestas, e o corpo, com suas sensações e demandas, era considerado um tabu. Observemos que, mesmo no século XXI, a sexualidade e o sexo, para a maioria das pessoas, ainda fazia parte da intimidade e continua pertencendo ao campo do privado. O poema “III”, que está reunido na seleção intitulada “He hum não querer mais que bem querer”, mostra de forma explícita os caminhos do desejo e da sedução por onde passa o eu poético florbeliano.


Frêmito do meu corpo a procurar-te, 
Febre das minhas mãos na tua pele 
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel, 
Doido anseio dos meus braços a abraçar-te, 

Olhos buscando os teus por toda a parte, 
Sede de beijos, amargor de fel, 
Estonteante fome, áspera e cruel, 
Que nada existe que a mitigue e a farte! 
(ESPANCA, 1999, p. 258). 

Florbela integrou esse grupo de poetas que cantou o amor, a dor, a desilusão e que foi alvo de muitas críticas no primeiro quartel do século XX. Um dos muitos críticos, que era contra a inserção da mulher no campo da poesia, e, diga-se de passagem, do discurso, foi Ramalho Ortigão. Desde 1877, na obra As Farpas, Ortigão apregoava o quanto a educação das mulheres as desviava de sua missão própria: “preparar o caldo”. Chamamos a atenção para a forma como, nos poemas recolhidos no jornal esquerdista O Século, a atitude era de abnegação das mulheres, de submissão frente ao masculino. Temáticas como o elogio da saudade e de outros temas portugueses, a culinária e a religião eram corriqueiros na imprensa da época. Se a escrita feminina não era vista com bons olhos, como veremos detalhadamente mais adiante, ela era tolerada, desde que não se desviasse do ideário feminino da época. A escrita feminina era considerada a expressão de “mulheres de alma delicada, e com espíritos igualmente delicados” (O Século, 1919). Florbela não escapou a muitas das temáticas comuns à sua época, nem foi poupada de críticas, mas o amor que descreve na sua poesia não é submisso, antes, é um amor ansioso, que deseja um para “além...”, tanto do objeto amoroso, pois seu amor espalhase para “Este e Aquele, o Outro e a toda gente...”, até alcançar a despersonalização e “Amar! Amar! E não amar ninguém!”, como observamos no poema “Amar”:

Eu quero amar, amar, perdidamente! 
Amar só por amar; Aqui...além... 
Mais Este e Aquele, o Outro e a toda gente... 
Amar! Amar! E não amar ninguém!
 (ESPANCA, 1999, p. 232). 

Como observamos, Florbela Espanca levou uma vida extemporânea. Foi literata, lugar social que na sua época não era bem visto quando ocupado por uma mulher. Dona de uma personalidade autêntica, corajosa, a poeta tinha consciência das dificuldades do campo de trabalho que escolhera. Diferente da maioria das mulheres de sua época, Florbela teve acesso à educação. A poeta cresceu em um ambiente politizado, pois seu pai, João Maria Espanca, era militante republicano atuante. Como vimos, Florbela publicou dois livros em vida, o Livro de Mágoas (1919) e o Livro de Sóror Saudade (1923). A sua terceira obra, o livro Charneca em flor (1931), foi publicado postumamente por Guido Battelli, professor italiano que dava aulas na Universidade de Coimbra. Battelli é um personagem controverso da história editorial florbeliana. Após a morte de Florbela, ele manipulou documentos e inaugurou um movimento de associação entre a vida e a obra de Florbela. Se por um lado essa associação mecanicista fez com que o nome de Florbela ficasse conhecido em todo Portugal, por outro desviou a atenção do público e da crítica da imanência de sua obra. Destacamos que, a partir do pressuposto bakhtiniano, a obra poética de Florbela dialoga com a tradição literária popular e culta e com o seu tempo, com a crítica, com o mercado literário. Rico é, também, o diálogo interno que estabelece em cada um de seus livros, seja com o amado, com a natureza, ou consigo mesma. Tanto Bakhtin quanto Jauss apontaram para a importância da historicidade para o entendimento da obra de um determinado escritor; e foi em consonância com esse pensamento que lançamos o olhar para a escrita realizada por mulheres no final do século XIX e início do século XX, e as suas implicações. Constatamos que Florbela, mesmo utilizando uma forma poética rígida, o soneto latino, cantou a liberdade e o erotismo, temáticas tabus na sua época. Essa ousadia e insurreição feminina, revelados por essa “Outra” Florbela, a poeta insurreta, vincularam os seus escritos ao campo da alteridade.


Originalmente publicado na Revista Científica Ágora (Acesse)
Vitória • n. 22 • 2015 • p. 111-123 • ISSN: 1980-0096

A hybris na poética florbeliana (Prof.ª Dr.ª Renata Bomfim)


A mitologia grega registra variados casos nos quais o ser humano cometeu excessos, exagerou, violando o limite que lhe foi imposto pelos deuses, o metron. Esse pecado, sempre punido exemplarmente pelos deuses ou pelo destino, denomina-se hybris. O destino, representado pela Parcas (Clóto, Laquésis e Átropos) designava o quinhão a que cada homem teria direito, o seu lote de felicidade e/ou de desgraça, de vida e de morte. Entretanto, o orgulho, a arrogância, a paixão desmedida, davam origem a nêmesis, ciúme divino, e sobre o herói recaía a cegueira da razão.
            Acteon incorreu na hybris quando observou, escondido, a deusa Diana banhara-se nua sob o luar. A deusa transformou o ousado caçador num corvo e fez com que ele fosse devorado pelos próprios cães. Aracne, exímia tecelã, desafiou Atena para uma competição acreditando que teceria mais rápido e com maior destreza que a deusa. Vencida, a ninfa foi transformada em aranha e condenada a tecer pelo resto de sua existência. Entre os inúmeros casos de hybris na mitologia destaca-se o de uma jovem que se orgulhava imensamente de sua beleza, seu nome era Medusa. Esta julgou-se mais bela que a deusa Atena e foi severamente castigada, a deusa transformou-a num ser horripilante: fez com que seu maior orgulho, seus cabelos, se transformassem em serpentes, e com que o seu olhar petrificasse aquele que ousasse fitá-la.
            Na mitologia judaico-cristã Deus fez o homem “do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente”[1]. Entretanto, este ser feito de humo[2] (humano), nunca aceitou que a sua existência, por mais breve e efêmera, se resumisse a “pó, cinza e nada”[3], ele ansiou a eternidade,  sentiu fome e sede de infinito: o homem quis ser igual a Deus.
            Orgulho, arrebatamento e desejo de eternidade fazem de Charneca em Flor um caso de hybris poética. A ousadia de Florbela Espanca, assim como a da jovem Medusa, foi punida severamente. A poetisa, pelo seu canto insurreto e prenhe de estados nascentes, foi submetida a um processo disciplinar. As suas cartas nos dão conta do quanto a poeta sofreu com a calúnias e as maledicências durante a sua vida e como, depois de morta, teve o seu nome difamado e sua obra sofreu “estapafúrdias, desencontradas e insidiosas apropriações ideológicas”, como destacou a crítica Maria Lúcia Dal Farra[4]
            O livro Charneca em flor (1919) reúne a quintessência da produção poética de Florbela Espanca. Vale destacar como, desde a nascente desta obra, e os primeiros passos para a sua materialização, Florbela Espanca dedicou-lhe especial atenção, basta observarmos a minúcia com que a poeta pensou em cada detalhe: “a capa”, “o nome depois do título”, a revisão em “absolutamente todas as folhas”, o cuidado de mandar datilografar o manuscrito para guardar o original, com receio de que este se perdesse no correio, e a pressa dos amantes que, “não espera nem mais um dia[5]”, para que o livro fosse publicado. É sabido que Florbela não viu o livro publicado, Charneca em Flor foi a sua primeira obra póstuma.
            Em Charneca em Flor variadas imagens arquetípicas femininas nos arrebatam, dominam, e nos fazem ascender o “mais alto, sim, mais alto, mais além, do sonho, onde mora a dor da vida”[6], por meio delas tocamos, epifanicamente, o sublime. De acordo com Alfredo Bosi (2000) a imagem antecede a palavra e se enraíza no corpo. Amadas ou temidas, elas emergem nos sonhos e se perpetuam, como ídolo ou como tabu, nos rondando e enredando, pois, está imbuída de algo que lhe transcende: Os símbolos. É no mito que os símbolos emergem desvelando os registros dramáticos das experiências vividas pelo eu lírico, seus encontros e desencontros. Este teatro é encenado como por meio dos ritos. Para Luís Alberto Ayala Blanco[7] o mito cumpre outra função, ele é uma porta pela qual o ser humano passa buscando elevar-se da miséria de ser um resíduo, ou seja, de ser pequenas migalhas que refletem o devastador resplendor do princípio, como observamos expresso neste fragmento do soneto intitulado Mendiga[8]:
[...]
No silêncio das noites estreladas
Caminho, sem saber para onde vou!

Tinha o manto do sol... quem mo roubou?!Quem pisou minhas rosas desfolhadas?!
Quem foi que sobre as ondas revoltadas
A minha taça de oiro espedaçou?!

Agora vou andando e mendigando,
Sem que um olhar dos mundos infinitos
Veja passar o verme, rastejando...


            Charneca em flor expressa de maneira singular essa busca pela origem, na qual o eu “Judeu Errante”[9], não se fixa e nem  é absoluto, mas, fragmentário, plural, precário, ou seja, detentor de uma humanidade profunda. Florbela Espanca escolheu para si o mundo da multiplicidade e sua poética joga com as formas do mundo: “Visões de mundos novos, de infinitos,/ Cadências de soluços e de gritos,/ Fogueira a esbrasear que me consome!”[10]. Os mundos criados por Florbela são híbridos, incorporam a completude e a incompletude, a fragmentação e a continuidade, o orgânico e inorgânico, e esta característica confere a sua poesia, especialmente as contidas no livro Charneca em Flor, uma sedução própria da alteridade.
            No poema O meu mal [11] observamos o eu lírico examinando a origem da “ânsia estranha” que sente, e da “saudade louca” que faz de si um buscador. Tal reflexão leva-o a desafiar titãs da tradição: dogmas, preconceitos e tabus que comandam o sistema patriarcal e falocrata, depreciador da mulher e dos valores femininos e terrenos. Num ato desafiador o eu lírico florbeliano despe a “mortalha”, num compromisso radical com a vida, e faz de si a própria charneca alentejana em floração, como observamos no poema de abertura do livro, seu homônimo:
[...]
Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim
? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...

Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
(ESPANCA, 1999, p. 209)

            O judaísmo, matriz do cristianismo, é um poderoso “protesto contra a natureza”[12] , da qual Florbela se ergue como porta-voz e representante. Esta doutrina fez com que as divindades femininas ligadas a terra fossem consideradas abominações, e com que os seus cultos fossem proibidos. Observemos que a palavra hebraica adam[13] significa “terra”, o que estabelece para a humanidade um pai-terra, Adão, e não da mãe-terra. Esta designação contrasta com as crenças que imperaram na antiguidade. Na Grécia, antes da ascensão dos deuses masculinos, o lugar mais sagrado do antigo mediterrâneo era o oráculo de Delfos, também chamado de Pítias ou Pitonisa, nome que deriva de Píton, gigantesca serpente que foi morta pelo deus masculino, Apolo. Esse rebaixamento das divindades femininas e ascensão das masculinas, fez com que o locus criativo da terra se transferisse para o céu, e com que a magia passasse do ventre para a cabeça. A mulher procriadora, bem como, o conceito de uma mãe-terra, integram a natureza ctônica combatida a milênios pelo patriarcado, e a cultura ocidental nasceu, especificamente, deste desvio da feminilidade. É aí que a poesia de Florbela Espanca, imbuída de um “ encanto mago”, adquire potência política e ideológica, evocando para o feminino, e seu representante máximo, a mulher, o lugar de direito. Florbela poetiza as múltiplas facetas do feminino, ela encarna tanto a Grande-mãe terra (Gaia): “E a erva altiva e dura do Marão/ É o meu corpo transformado em monte!”[14] , quanto a Grande-mãe cósmica (Nut): “Eu sou a manhã: apago estrelas!”[15].
            Natália Correia[16] no prefácio do Diário de último ano (1982) definiu Florbela como modelo de “sacerdotisa do feminino”, atributo venatório que iluminaria o seu ser mitológico, fazendo dela curadora e portadora de encantamentos: “Eu trago-te nas mãos o esquecimento/ Das horas más que tens vivido, Amor!/ E para as tuas chagas o unguento/ Com que sarei a minha própria dor”[17]. Observamos que na poética florbeliana as divindades femininas reprimidas retornam para participar da vida, deixam de ser ídolos fechados sobre si mesmos. A operação mítica, que transcende os espaços históricos e geográfico, possibilita as múltiplas metamorfoses do eu poético que, por meio da experimentação, pode torna-se “a charneca rude a abrir em flor”, “princesa entre plebeus”, “Aquela que tens saudade,/ A Princesa do conto: “era uma vez...”, “menina”, “Infanta do Oriente”, “Essa que nas ruas esmolou/ [...] a que habitou Paços Reais;/[...] Sereia que nasceu de navegantes.../ Essas que fui,/ As que me lembro ter sido ... dantes!” e,  muitas outras,  marcadas pelo desejo de “amar, amar perdidamente”[18].A celebração dos valores terrenos são expressos por meio do desejo do eu poético de adentrar o espaço sagrado da natureza, visto que os sentidos deste estão “postos, absortos / Nas coisas luminosas desse mundo”, o que faz com que se sinta “asa no ar, erva no chão” [19].
            No poema Podre de Cristo[20] observamos o reconhecimento da terra como o lugar gerador de sustento e abrigo: “Minha terra que nunca viste o mar,/ Onde tenho o meu pão e a minha casa”; “Minha terra onde meu irmão nasceu,/ Aonde a mãe que eu tive e que morreu/ Foi moça e loira, amou e foi amada!”. Ao fim do soneto o eu poético pede a terra que lhe alivie do cansaço da errância: “Sou um pobre de longe, é quase noite,/ Terra, quero dormir, dá-me pousada”. A terra guarda mistérios que não podem ser explicados pelo eu, apenas vividos, a “alma da charneca sacrossanta”, que é “Irmã da alma rútila” do eu lírico, encontra expressão. A chuva diz “coisas que ninguém entende”, dela, “Uma alada canção palpita e ascende,/ Frases que a nossa boca não apreende”, ao passar pelo rosto desperta “o lúgubre arrepio/ Das sensações estranhas, dolorosas...”. \o eu poético vivencia a tudo isso reconhecendo-se parte do mistério da vida guardada na morte: “Talvez um dia entenda o teu mistério...,/ Quando, inerte, na paz do cemitério,/ O meu corpo matar a fome às rosas!”[21]

Leia o artigo completo AQUI.

Outros textos sobre Florbela:

O AMOR NAS POÉTICAS DE FLORBELA ESPANCA E RUBÉN DARÍO. / Revista Interdisciplinar/ UFSE

Florbela Espanca e o devir monstro de uma poética fragmentada./ Revista Criola/USP