02/01/2012

A Primeira Morte de Florbela Espanca (Drama mágico escrito por Antônio Cândido Franco)

Olá amigos,
Foi uma alegria de conhecer pessoalmente, no colóquio Internacional Florbela Espanca (Vila Viçosa/Portugal), o crítico literário Antônio Cândido Franco. Atualmente Antônio Cândido é professor na Uévora, e além de estudioso da obra de Florbela Espanca, dedica-se ao estudo da obra de poetas como Teixeira Pacoaes, Fernando Pessoa, entre outros. Poeta, romancista e dramaturgo, Antônio, como insistiu que eu o chamasse, escreveu, entre outros títulos, a Arte Régia (poesia), 1987; O Mar e o Marão (ensaio), 1989; Surrealismo e Anarquismo na obra de António Maria Lisboa, 1989; Memória de Inês de Castro (romance), 1990; Eleanor na Serra de Pascoaes, de 1992, (ensaio que recebeu o Prêmio Revelação Ensaio, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores/Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro); Teoria da Literatura em Álvaro Ribeiro, 1993; A Epopéia Pós-camoniana em Guerra Junqueiro, 1996 e A Primeira Morte de Florbela Espanca, obra com que fui presenteada pelo escritor.
Encenação da Peça "A primeira morte de Florbela Espanca"
A primeira morte de Florbela Espanca foi publicada em 1999 e, agora, foi reeditado pela Editora Licorne. O drama mágico é inspirado em um momento da vida de Florbela Espanca que foi descrito em uma carta por Mário Lage, terceiro marido de Florbela, no dia 28 de agosto de 1928. Lage explicava ao seu pai, sogro de Florbela, que a mesma encontra-se “num estado de sonolência, sem falar, e parece que sem ouvir”. O Lócus privilegiado da cena é quarto de Florbela Espanca na sua casa em Matosinhos.
O drama faz interagir personagens interessantes como Florbela Espanca, Mário Lage e a empregada do casal, Albina, bem como, São Pedro, um Anjo, Satanás, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, a Virgem Maria e o Psicopompo.
Nessa obra Florbela é, como foi em vida, julgada pela igreja católica, desta vez depois de morta. A Instituição é representada pela maior parte das personagens, inclusive por Satanás, “capataz do maioral” e, dentre todos eles, o menos perverso.
Albina, desesperada, reza para o “Bom Jesus de Matozinhos” e chama o médico e marido de sua “rica senhora que é tão boazinha”, pois, esta parece morta, está “inerte e fria”. A alma de Florbela está farta do mundo e deseja a morte, mas, antes de alcançá-la, é preciso que esta seja “averbada”. São Pedro e o Anjo começam a inquisição da poeta para decidir qual o seu destino. Ambos avaliam a sua vida, lhe perguntam sobre o seu pai e a sua mãe, e logo encontram um agravante à sua salvação, ela é “filha do pecado”, fruto de uma relação “pecaminosa”, bem como o seu irmão, Apeles. Antônia Lobo, mãe biológica de Florbela, é considerada pelo anjo “uma desgraçada”. O seu irmãos, Apeles, já fora condenado ao inferno, assim como, Antônia Lobo, mas, à Mariana do Carmo, esposa legítima de João Espanca e madrinha de Florbela, foram abertas as “portas do Céu”, afinal, esta levou Florbela “ao batismo na igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição”, o que a teria limpado “de todos os pecados mortais dos pais” e do “erro monstruoso do nascimento”.
O status quo terreno é reproduzido pelo coro celestial, os santos especulam sobre o casamento da poeta, com destaque para a ação que moveu contra o primeiro marido em um Tribunal em Évora. “Florbela estava “farta do ambiente simplório” da vila de Redondo”, tanto que, quando foi decretado o seu divórcio, “já estava amancebada com um Alferes da Guarda Nacional Republicana”, destacou são Pedro, horrorizado. Mas, pior que isso era o fato de Florbela “escrever e publicar escândalos”, irmanada a corrente estética saudosista ("a mais perigosa"), que era liderada pelo blasfemo Teixeira de Pascoaes, cujo riso era “tão pérfido como o da cobra do paraíso”. Florbela gostava de Jazz, “a música dos pretos”, e de freqüentar bailes e cafés, os santos concluem então que a poeta havia herdado de Pascoaes “o gênio e a escola”.
Muitas foram às iniqüidades de Florbela encontradas no julgamento, então surge Satanás, o “dandi do Chiado” ou, o “banqueiro da rua do ouro”, resmungando: “eu só fico com as escórias”. Chega a hora de Florbela falar, de se defender, e a poeta responde como “princesa desalento”, mas não é compreendida. São Pedro pergunta ao Anjo sobre o que a poeta fala e o Anjo lhe responde que a Sóror Saudade é a “fala” de um outro poeta “blasfemo” da escola saudosista. A poeta tem pressa de passar para o outro mundo, mas, afirma “não ter pressa de ser julgada”.
Assim como Joana D’arc, Florbela acreditava ser inocente das acusações levantadas sobre ela. Ela considerava que os seus versos foram as suas orações, mas estes, foram interpretados como “descaramento”, e logo os santos lhe lembraram da “vergonha licenciosa” com o qual os escreveu, especialmente, o soneto Renúncia, que até fala da “sedução de satanás”. “Nunca me senti tão inocente”, afirmou a poeta, mas o anjo lhe repreendeu, pois o soneto pecava por “sensualismo, orgulho e ateísmo”.
Ao final do julgamento Florbela foi condenada ao Inferno por seus atos e por seus versos. Mas ela logo descobriu que a igreja previa outros recursos, como a revisão da pena por dois Doutores: Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Desenrolou-se então uma peleja saborosa entre os postulados filosóficos e as crenças de Florbela que, corajosa e criativamente, ela se defendeu das acusações feitas pelos “doutores” que, se quisessem, bem poderiam tê-la defendido e salvo.
A poeta perguntou como poderia ter “uma sensibilidade demoníaca”, visto que mostrou piedade pelos “animais indefesos e pobrezinhos”? Ela então pediu para que Maria Madalena viesse defendê-la, porém, o Anjo lhe advertiu que a santa estava “ocupada”, Florbela clamou, então, por Maria, “que foi Mãe”, esta logo lhe perguntou se havia seguido os mandamentos da igreja. “Os meus versos não me salvam, Mãe?”, perguntou Florbela à Virgem que lhe respondeu: “Foram eles que infelizmente te desviaram da igreja do meu Filho. [...] Nunca pude aceitar as suas orações. Eu pertenço a Igreja e não ao livre devaneio de cada um”. “As tuas orações, minha filha? Os versos que escreveste? Os bailes em que te divertiste? Os amantes que beijaste”? Florbela responde que são apenas “Pecadilhos”:
Que importância tem isso? [...] Escutai. Um dia, ao subir a Rua do Carmo, em Lisboa, encontrei um homem a chicotar brutalmente um pobre animal carregado de fardos. Não suportei o sofrimento do bicho. Arranquei das mãos do verdugo o chicote, uma vergata dura de sola velha. [...] Não o poupei, chamei-o chibante, algoz e carniceiro. Só o deixei quando o homem alijou a carga do pobrezinho.
A atitude da poeta foi censurada por São Tomás de Aquino, que a considerou fruto de uma “sensibilidade doentia”, afinal, “Deus é razão”. Florbela Espanca, então, retruca, e lhe diz que os “dois livros enfadonhos e sem beleza” que ele escreveu não eram sinal de santidade, mas, a atitude de Aldebrando, beato que deu vida a uma perdiz assada, essa sim, o era. Florbela passou então a apontar as hipocrisias da igreja, como a arrogância de São de Pedro que, segundo a poeta, foi amado por Cristo sendo um pescador “sujo e maltrapilho”, e ironicamente perguntou ao santo: “Não te aborrece, Pedro, um Céu mendigado a hóstia e um Inferno decretado pelos livros? Os diálogos de Florbela nessa peça são inquietantes e poéticos.
Exausta, Florbela foi regatada do limbo pelo Psicopompo (um deus pagão) que lhe perguntou do que a poeta mais se lembrava, a poeta afirmou ser “o olhar dos animais”: “Há mais calor numa andorinha que num homem público”. A partir da elaboração da experiência da morte a poeta analisa a figura “tristemente maçadora” de Pedro como papa, nas suas vestimentas “ridículas”; lembra do “vazio tão balofo” e do “fastio” que encontrou em Agostinho e Tomás, “barril de escolástica estéril”, para Florbela ambos não se distinguiam de Satanás; quanto à Maria, “prefiro-a errante e doída”, afirmou. O Anjo, para ela, era “um carrasco cego”, e o seu julgamento, foi uma “comédia suja”, “a pior farsa” que ela já assistiu.
Florbela recordou-se da vida e lamentou “nunca mais ver o olhar de um bicho, nunca mais sentir a presença de uma pedra e a fremência de uma flor ou de um caule”. Ela decidiu que iria “alimentar a esperança da vida com a revolta”, antídoto contra “a farsa da falsidade e da hipocrisia”. Florbela se lembrou também de que foi feliz, de que foi “pantera”. Lembrou do seu amor pelas “formigas” e que consolou as toupeiras, saudou os sapos, protegeu as aranhas, criou pardais e andorinhas na roupa de sua cama. E o mais importante, que a sua felicidade foi “o Amor”. Acreditou na Morte, também, porém, essa “derradeira ilusão” e “pior burla da vida”, era uma “ilusão”. Apenas o amor interessa, disse a poeta.
O final da peça eu não vou contar, sugiro que leiam o livro, vale a pena. O Psicopompo, “morte que há na morte” e “Saudade”, destacou que “há cada vez menos gente que saiba se comover com o sofrimento que há no olhar de um bicho”, e por isso, a lira de Florbela “contribuirá para amansar as feras”, pois, Florbela é “a revolta e a esperança, [...] eterna e imortal como a saudade”.
Deixo o meu abraço carinhoso aos leitores e, concluo com uma fala de Florbela Espanca: “Eu amo muito a vida. Não há morte enquanto houver saudade. Eu estou cheia de saudades da vida”.

Abraços
Vitória, 02 de janeiro de 2012
Renata Bomfim

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