06/12/2016

Florbela Espanca, (e)ternamente... (por Renata Bomfim)

Florbela Espanca (1894-1930)

No dia 8 de dezembro de 2016 completa oitenta e seis anos que a poetisa portuguesa Florbela Espanca faleceu. Assim que Florbela partiu, em 1930, um grupo de intelectuais e de amigos fiéis passou a lutar para manter viva a sua memória.
Não foi fácil, pois, Florbela foi uma pessoa extemporânea em um Portugal conservador e de valores patriarcais, que negavam às mulheres lugares sociais considerados masculinos como a escrita, por exemplo. A poesia era um campo preponderantemente ocupado por homens e qualquer mulher que se aventurasse a penetrá-lo logo sentia o peso de tal infração. Elas eram ridicularizadas e, especialmente, tinham a sua moral posta em jogo, pois, uma mulher considerada decente não deveria se expôr, antes, seu lugar era o do silêncio.
O movimento feminista, a despeito das perseguições políticas que, por exemplo, em 1926, dissolveu entidades como o Grupo de Estudos Feministas, criado em 1907; a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, em 1909 e o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, em 1914, lutou pela educação das meninas, pelo sufrágio e por igualdade de tratamento entre homens e mulheres. As intelectuais dessas entidades se reuniram em torno da Revista Portugal Feminino, da qual Florbela foi colaboradora.
Florbela foi descrita de muitas maneiras diferentes, tanto em vida, quanto depois de sua morte, de forma que é difícil traçar um retrato seu acabado. Vejo-a como uma tela impressionista, na qual se sobressai a cor arroxeada das violetas que tanto amava. Em 2008, numa pesquisa para o CNPq, analisamos variados textos publicados em revistas e jornais portugueses das primeiras décadas do século XX. Observamos neles que muito se falou sobre Florbela, mas a sua obra, frente a uma vida cheia de infortúnios como divórcios, abortos, errância e suicídio, ganhou um lugar secundário. Jorge de Sena foi um dos primeiros críticos sérios a falar sobre a obra de Florbela, isso em 1946. Ele criticou a mirada biográfica lançada, até então, sobre a obra florbeliana, destacando que embora observasse nos versos da poetisa “uns cetins”, eles apresentavam “uma fúria inaudita”. Essa fúria observada por Sena marca a escrita de Florbela com a potência da transgressão. Nela, um feminino marginal se faz ouvir, ela é a “princesa desalento”, aquela que “no mundo anda perdida”, a “dolorida”, a “crucificada”.
Tenho dedicado a minha vida acadêmica à pesquisa da vida e da obra dessa grande poetisa. Desde 2007 me debruço sobre seus poemas, cartas, diário, buscando sondar os arquétipos que dão forma a uma obra inquietante, vigorosa, insurreta e capaz de encher de encantamentos leitores de diferentes tempos e países. Eu mesma sou leitora de Florbela Espanca desde a adolescência e em todos esses anos, sempre que abro os seus livros, leio versos novos e que me comovem. Mas, eu sou apenas uma em um mar de florbelianos, ¾ formados por leitores/fãs e pesquisadores ¾, cada um, a sua maneira, homenageia essa mulher fantástica que hoje é considerada umas das mais importantes vozes da lírica portuguesa moderna. Em 2011 eu o os amigos do Grupo de Pesquisa do CNPq Florbela Espanca et alli... , ativo desde 2007 sob a coordenação da queridíssima amiga e mestre Maria Lúcia Dal Farra, nos reunimos em Vila Viçosa, terra natal da poetisa, para apresentar nossas pesquisas no I Colóquio Internacional Florbela Espanca:“O espólio de um mito”. Esse evento[1] mostrou a pluralidade das abordagens e de temas que vinham sendo estudados na obra de Florbela Espanca. Foi nesse encontro que apresentei as descobertas realizadas durante as investigações de mestrado e que deram forma à pesquisa de doutorado intitulada A Flor e o Cisne: diálogos poéticos entre Florbela Espanca e Rubén Darío, defendida em 2014, na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Nessa tese desvelei o diálogo existente entre as poéticas de Florbela Espanca e de Rubén Darío num estudo comparativo inédito tanto dentro dos dos estudos florbelianos, quando dos rubenianos.  
Grande parte dos artigos e ensaios que escrevi sobre a obra de Florbela Espanca, seja do ponto de vista da psicologia jungueana, da estética da recepção ou da literatura comparada podem ser acessadas na revista literária Letra e fel (www.letraefel.com), on line desde 2007. Mas, nesse dia 8 de dezembro, dia da padroeira de Portugal, Nossa Senhora da Imaculada Conceição, - madrinha de Florbela-, e dia de nascimento e de morte da nossa poetisa, quero destacar o quanto é bom compartilhar essa paixão, esse gosto pelos seus escritos. Lembro ainda da fala de Ana Luísa Vilela, professora da Uévora que me coorientou durante as pesquisas em Portugal, que dizia que nossos poetas são “santos” para os quais rezamos. Mal sabia a professora sobre o meu costume de pedir iluminação à poetisa, assim como a Darío, outro poeta querido. E posso garantir que funciona, pois, após pedir ajuda a Florbela, junto ao busto de mármore que fica no Jardim público de Évora, tive uma surpresa. Chegando a UÉVORA encontrei quarenta cartas inéditas do espólio de Túlio Espanca, trocadas com Guido Battelli, tradutor e editor da obra póstuma da poetisa.  Pude inserir e analisar esse material na minha pesquisa de doutorado. 
Sabemos que a memória perfaz caminhos variados ao ser reconstituída.  No meu caso, a leitura da obra de Florbela, especialmente a poética, faz percorrer um caminho marcado por afetos, espantos e sonhos. Essa mediação afetiva ainda possui a potência de me arremessar,¾ mesmo entre lapsos temporais de cinismo, descrença, impaciência, etc.¾, adiante. Olho para o futuro e consigo sonhar: “sonho que sou a poetisa eleita/ aquela que diz tudo e tudo sabe/ que tem a inspiração pura e perfeita/ que reúne num verso a imensidade!”.
 Florbela bebeu da poesia trovadoresca, mais “do coração” que a poesia provençal francesa. E esse amor que em alguns momentos se perde entre sutilezas é uma súplica apaixonada ao amado e, como bem o definiu Segismundo Spina, é vitorioso em “emoção e sinceridade”. Por isso, assim como Florbela, “Eu quero amar, amar, amar perdidamente”. 
Mas, o que faz com que a poesia de Florbela Espanca encontre ressonância entre leitores de variadas idades e de variados lugares na contemporaneidade? Há algo em Florbela que escapa a definição e a leitura de sua obra causa vertigem ao nos arremessar da terra para bem próximo dos astros luminosos e, das alturas, sem avisar, ela faz com que nos precipitemos no abismo de nós mesmos para que sejamos “O pó, o nada, o sonho dum momento...”.
 Ah! Eu não quero as certezas, não preciso de verdades absolutas, me contento com o instante e, nesse instante, Florbela diz que: “A Flor do Sonho, alvíssima, divina,/ Miraculosamente abriu em mim,/ Como se uma magnólia de cetim/ Fosse florir num muro todo em ruína.// Pende em meu seio a haste branda e fina/ E não posso entender como é que, enfim, /Essa tão rara flor abriu assim!... / Milagre... fantasia... ou, talvez, sina... 
Sim, essa ternura que Florbela deixou como herança para os seus leitores que faz com que ela seja eterna, colorindo de roxo os nossos corações. Feliz aniversário Florbela!
Renata Bomfim




[1] Esse evento foi realizado pelo Centro de Estudos em Letras da Universidade de Évora, sob a coordenação da amiga e pesquisadora Ana Luísa Vilela, e por Maria Lúcia Dal Farra (UFSE), António Cândido Franco (UÉVORA), Fabio Mario da Silva (UÉVORA/CLEPUL) e Manuel Serrano e Noémia Serrano do Grupo Amigos de Vila Viçosa.

Um comentário:

José Carlos Camapum Barroso disse...

Mais uma vez, muito obrigado, amiga, por nos deliciar com informações e comentários tão interessantes sobre essa bela poetisa. E também por nos ajudar a não esquecer de datas tão significativas. Beijos.