Esse artigo, escrito pelo prof.º Dr.º Fábio Mário da Silva, foi publicado na obra O IMAGINÁRIO ESOTÉRICO LITERATURA CINEMA BANDA DESENHADA, organizada por Cristina Álvares, Ana Lúcia Curado, Sérgio Guimarães de Sousa e Isabel Cristina Mateus, do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, em Portugal. Editora Húmus, 2016. Acesse a revista
Capa do livro Arcano Dezenove
de autoria do fotógrafo Jove Fagundes.
RENATA BOMFIM, que nasceu em Vitória, no Espírito Santo, em 1972, além de
escritora, arte-terapeuta, educadora socio ambiental e professora doutorada em
Letras, começou a carreira como artista plástica dedicando-se à pesquisa da
joalharia no âmbito da técnica do mosaico. No cenário brasileiro é autora de
três livros de poemas – Mina (2010), Arcano Dezenove (2011) e Colóquio
das árvores (no prelo) –, possui poemas seus integrados em antologias,
ensaios e artigos publicados no Brasil e no exterior, e é autora do blog
literário Letra e fel (www.letraefel.com). Estamos diante, então,
de uma personalidade multifacetada que em 2010 estreou no cenário poético
espírito-santense e brasileiro. Dentre as suas produções destacamos a que nos
chamou logo a atenção, o seu segundo livro de poemas, Arcano Dezenove,
no qual encontramos uma poesia ligada à ecologia, mas diante de uma tópica de
misticismo e de esoterismo.
Em Arcano Dezenove, como já referimos no posfácio de nossa lavra, há um percurso
estratégico situado em diálogos com outros autores (como, por exemplo, Florbela
Espanca, Rubén Darío, e Maria Lúcia Dal Farra), através de um discurso focado
na alteridade, proposta importante atualmente nos estudos literários –, a
poetisa mostra os seus espelhos poéticos sem, no entanto, perder a sua
originalidade (Silva, 2010: 84). Por seu turno, Maria Lúcia Dal Farra
argutamente explicita, através de uma análise acurada em relação a esta e a
outras cartas (o Arcano 16 e Arcano 17), bem como do Tarot em
geral, citando autores como o ex-abade Constant, Baudelaire, Nerval, e André
Breton, que os segredos e mistérios deste arcano (e dos outros), percorre a
dinâmica seguidamente explicitada, desde a apresentação da capa até desembocar
nos poemas e na própria figura da poetisa Renata Bomfim:
A
Lâmina que a capa compõe é toda luz e sombra, magia branca e negra, incerteza
melíflua (…). A Lâmina explicita, portanto, essa caçadora celeste, essa
divindade lunar (Artemisa, Diana, Hécate) – imagem que se aglutinará durante a
leitura do livro, graças mesmo a esse simbolismo de trânsito, de passagem, de
viagem heróica que o Arcano 18 encerra. Do plano iniciático da via úmida lunar
nascerá a Feiticeira, a Maga e a Poetisa que, viajando em corpo etéreo (o
«corpo cósmico» tão referido no volume) da Noite para o Dia, da Luz Noturna
para a Luz Solar que o Arcano 19 encerra, buscará despertar, com suas palavras,
aquilo que dorme. Aliando-se ao Sol, ao Fogo Criador e à Pedra Filosofal
próprias do Arcano 19, a Poetisa procurará representar o Centro da
Consciência capaz de abranger e dar voz ao Universo. (Dal Farra, 2011: [s.p.])
Arcano Dezenove é dividido em cinco sessões (sob os títulos de «Arcano
Dezenove», «Memória», «Quinta essência», «Transição» e «Rituais») nas quais a
proposta de Renata Bomfim muito se alia a aprofundar a origem do cosmo, do ser
humano, da essência dos elementos e da inspiração poética, daquilo que é
inominável. Assim, o sujeito poético nesta obra se assume como o próprio
segredo, como o mestre que transmite aos seus discípulos uma experiência
espiritual através de símbolos para que seja possível a sua compreensão: «A
minha pena guarda segredos./ Ela tem um quê de mistério e maldade» (2010: 32).
Por isso, nos deparamos com uma poética arraigada a uma tradição esotérica,
seguindo uma filiação que contempla o diálogo entre o mestre
e o discípulo que dialogam e procuram transmitir um conjunto
de ideias através de uma tomada de consciência de princípios imanentes à ordem
do universo, transmitidos através de rituais e símbolos que permeiam a grande
maioria desses poemas. Não é por acaso que o poema que abre a obra se intitula
«Poeta Adâmico», metáfora construída através da tríade lógica: paraíso
(linguagem), Adão (Poeta) e Letra (Eva), numa combinação harmoniosa, criando um
mundo sem pecado nem condenação, gerando o diálogo entre outros
«poemas-sementes». Como elucida este poema de abertura, este livro procura
compreender (e não desvendar, já que o mistério deve permanecer) a comunhão
cosmo-natureza, abordando também questões em torno do desejo, da multiplicação
dos sentidos e de sensações que demarcam o prazer e as angústias, associado a
um êxtase com os elementos da natureza: «A ninfa ascende entre agonias,/ a
selva orquestra gemidos de prazer» (Idem, 18). Para Renata Bomfim, da
natureza não emergem apenas as relações de desejo e espiritualidade, mas também
o ato poético e, consequentemente, o poeta, que representam também essa força
cósmica da natureza:
O
poeta julga-se superior e,
no
momento da criação,
sente-se
plutão,
atingido
por meteoritos. (…)
É
um mago condenado.
É
tantos e todos que é ninguém.
Bruma
solitária que vaga
Entre
pepitas de ouro e cadáveres. (Idem, 19)
O
poeta se sente como próprio elemento da natureza, só assim se pode tornar parte
do universo místico. Esta é uma poesia que tenta revelar os sentidos da vida e
da morte, através de um conjunto de interpretações quase que doutrinárias para
os seus leitores, que buscam afirmar algumas «supostas verdades»; as leis que
regem todo o universo, seja ele o material ou o ficcional (a poesia), e que é
bem mais inteligível, consistente e compreensível se for visto através dos
elementos da natureza.
Neste caso, em Arcano Dezenove está evidentemente explícito que nós
somos meros coadjuvantes deste cenário primevo e infinito, e nossa pátria deve
ser muito maior que uma identificação nacional: «Eu canto a Pátria-planeta,/
antes que o pensamento,/ Divagando entre futilidades,/ se perca» (Idem,
22). Há um desejo implícito do sujeito poético em se fundir aos elementos da
natureza, num processo não apenas de metamorfose, mas de parentesco, de
identificação, numa procura de descobrir novas sensações:
As ondas me
constituem
Parentesco que
me abisma
E me pego,
assim, mareada,
Ansiando tons
de cinza e azul
Enquanto,
silenciosamente,
Quebro na
praia. (Idem, 25)
Tornar-se elemento da natureza ou do cosmo, feito na sua totalidade
de microcosmos e macrocosmos, se sentir astro, aí reside o «mistério maldoso»
de que fala o eu lírico. A maldade em transpor as barreiras das verdades
absolutas, deixar de ser senso comum para adentrar-se no mistério da criação,
da cosmologia que apenas deve ser experienciada e sentida, nem tanto
compreendida:
Inunda a
minh’alma um sol de sétima grandeza
e te desejo
toda, inteira,
Terra amada,
Santa, Natureza!
Despi-me toda
para recebê-la,
Veste-me de
lírios
lilases e
caprichosas.
Respiro
profundamente
Te sinto
mistério maior:
Quasares,
buracos negros, estrelas
tudo, tudo, tudo
me leva a ti (Idem, 35)
Nesta fusão do corpo-sujeito com o corpo-natureza é criada
uma atmosfera ritualística de entrega e de posse corporal, que se dá como
oferenda sacral e se regozija nos «mistérios» quase ancestrais deste contato; elementos da natureza esses que para Renata Bomfim
têm uma estreita relação com o feminino: «Orgânica/ A mulher era verde/ E sem
veneno» (Idem, 47); ou seja, estamos diante daquilo que Pierre Riffard (1996:
56) denominou como «esoterismo primitivo», associado a um culto da terra-mãe.
Os rituais e pactos também se arvoram por questões filosóficas ligadas às
bruxas e sua relação na busca por um equilíbrio pacífico e harmonioso com a
Mãe-Terra, a Grande-Deusa – contrariando a ideia de obscuridade e maldade
associados às mulheres feiticeiras –, como base prática de existência de
retorno à essência dos seres, da purificação e encorajamento a atos benéficos,
como aqui expresso em «Desejos de feiticeiras»:
Eu
quero tocar os espíritos alheios
com
encantos luminosos.
Acordar
dormentes e sonâmbulos,
com
fluidos escândalo-viscosos,
colhidos
nas veias dos cristais e das ervas.
Lançar
bênçãos,
Distribuir
afagos e,
justificando
a minha natureza,
distribuir,
também,
olhares
de secar pimenteiras (Idem, 71)
A
única maldição lançada por esta poética é contra aqueles que desprezam a
natureza, ato de violência imperdoável: «Se brigar com esses seres,/ Será
amaldiçoado e perseguido./ Não adiantarão algas, nem filtros» (Idem,72). Esta
poesia ensina então a fazer mandigas, filtros mágicos de conquista amorosa
(mais eficazes que promessas aos santos), como, por exemplo, no poema «Banho de
limpeza», no qual se recita uma limpeza espiritual que abre caminhos. Já em
«Patuás» e em «Cerimônia do chá» ficamos a saber que muitos ritos só podem ser
concretizados através de cerimoniais envolvendo as fases e místicas da lua, do
número sete aliado à harmonia dos elementos da natureza, aquela «que guarda em
si/ elementos combinados» (Idem, 81). É uma poética na qual, mesmo nas
referências a figuras cristãs, encontramos um discurso voltado, mais uma vez,
para um certo eco-existencialismo,
que relaciona natureza e religiosidade, [2]
como,
por exemplo, em «Nossa Senhora dos raios multicoloridos»:
Te
sonho infinitamente,
Te
busquei no mais alto das montanhas
cujos
picos eram branco-azulados
E
lembravam aqueles que partiram sem se despedir.
Clamei
por teu nome, doce e secreto,
Do
abissal de minhas entranhas e,
Nos
meus pensamentos, armadilhados intangíveis,(…)
Como
posso tocar o teu manto de luzes
Multicoloridas
e vislumbrar a tua rara santidade?
Mil
sóis estão explodindo, estrelas colidem ruidosas,
O
caos se instaura dentro de mim.
Vem
plena de amor, iluminada.
Eu
não resistirei e serei a flor
Colhida
e fresca, perfumosa,
à
mercê de tua sábia providência. (Idem, 27)
A luz, neste caso os raios coloridos da Nossa Senhora, pode
reestabelecer o caos instaurado intimamente no eu lírico. Esta dinâmica é
muito parecida com a explicitada por Luc Benaist (1969: 27) que refere que a
criação do mundo se apresenta como um ajuste do «caos» ou, mais precisamente,
como «a consequência duma ‘ordem’ divina, que a Bíblia apresenta como um Fiat
Lux, porque a luz sempre acompanhou as teofanias e que a ordem
identifica-se com a luz». Por isso, o sujeito poético deste poema procura um
equilíbrio através dos raios luminosos, deixando de ser caos, para se
constituir como experiência espiritual e divina, acedida através da ordem que é
luminosidade. Aliás, num outro poema, «Saturnais: mito de origem», Renata
Bomfim traz à discussão a questão do surgimento da ordem através da luz, do
sol, que só é possível graças a uma intervenção feminina:
Antes
era Nada.
E
de dentro do Tudo nasceu o Sol.
A
grande roda brilhante se alimentava
nas
generosas tetas cósmicas
das
mulheres galáxias,
que
eram, também
filhas
do Tudo e netas do Nada.
Gotas
de leite estelar caíram,
pingaram
abundantes e deram forma a inúmeras raças:
os
Syrios, os Krianos
e
também, a humana,
de
complexidade rara.
Para
louvar o grande Nada
e
agradar ao Sol,
organizavam
festas que duravam
sete
luas.
Ocasião
em que essa raça,
que
ainda não conhecia a sabedoria,
não
roubava, nem matava, mas
cantava
celebrando a vida e
fazia
amor na alvorada.
Um
banquete público era o que,
ao
contrário, amor traduzia,
ato
que refletia o lampejo da origem.
E,
durante a festa, essa rude criatura
revelava o que, da sua face, a rotina
ocultava.
De
tanto arranhar a Terra e violar os Rios
ofendendo o grande Nada,
Tudo
veio ensinar-lhes a compaixão e,
resgatando-os
da ignorância,
ensinou
coisas de partículas brilhantes.
Essa
raça de pés sujos vive olhando para o céu,
esperando
voltar ao seio da mãe primordial. (2010: 44)
Este poema está impregnado da ideia de «sagrado celestial»,
que é um tipo de experiência religiosa muito antiga baseada na ideia de que «a
transcendência revela-se pela simples tomada de consciência da altura infinita»
(Eliade, 1975: 128), visto que esse «muito alto», o sol celeste na poesia, é
algo superior, atributo de uma divindade:
O
‘muito alto’ é uma dimensão inacessível ao homem como tal; ela pertence de
direito às forças e aos Seres sobre-humanos. Aquele que se eleva subindo a
escadaria de um santuário ou a uma escada que conduz ao céu, cessa então de ser
homem: de uma maneira ou de outra participa da condição divina. (Idem,129)
Renata
Bomfim assim relata o Nada (o infinito cósmico) que é elevado, eterno, forte e
procriador («E dentro de tudo nasceu o Sol»). O Deus-Celeste neste poema é o
Nada, que deu sentido a um todo-tudo surgido in illo tempore. Na fala
inicial do sujeito poético, neste tempo remoto, também encontramos referência à
sacralidade na sexualidade, ao nascimento que as «tetas cósmicas» das «mulheres
galáxias» proporcionaram, ou mais precisamente, ao mistério do parto
descoberto pelas mulheres que são criadoras no plano da vida, experiência essa
feminina por excelência.
Em suma, Arcano Dezenove traz à tona vários debates e
temáticas ligados à experiência com a sacralidade criadora da Natureza, envolta
em misticismo e religiosidade, que desembocam também em passagens fortemente
marcadas por um tom esotérico. Por isso mesmo Maria Lúcia Dal Farra (2011:
[s.p.]) diz que Renata Bomfim é uma «Feiticeira» e que «essa mulher é também
telúrica e vegetal», visto o eu lírico compor-se como ser-planta num tom de
equilíbrio dum ecossistema harmonioso: «A minha errância é como a água turva/
De um rio caudoloso:/ Não permite que lhe encontre a fonte/ Ou que lhe desnude
os mistérios do fundo» (2010: 62). Por fim, acreditamos que o esoterismo de Arcano
Dezenove está intimamente ligado ao que Jean-Paul Corsetti descreveu como
uma dinâmica deste conceito:
En discernant la
magie des métamorphoses sous l’apparent désordre, l´esotérisme révèle à l´homme
de désir qu’ en transformant son regard sur le monde et sa connaissance de la
nature, il ne cesse de récréer lúnivers qui l-entoure, réveillant alors la vie
qui sommeille sous les pierres. (Corsetti,1992:
328)
Referências:
Benaist, Luc (1969), O esoterismo,
trad. Fernando G. Galvão, São Paulo, Difusão Européia do Livro.
Corsetti, Jean-Paul
(1992), Historie de l’ésotérisme et des sciences occultes, Paris,
Larousse.
Dalfarra, Maria
Lúcia (2011), Uma leitura poética do Tarot, por Renata Bomfim, [em
linha] diponível em http://www.letraefel.com/2011/09/uma-leitura-poetica-do-tarot-por-renata.html
[consultado em 18/02/2015].
Eliade, Mircea
(1975), O Sagrado e o Profano. A essência das religiões, trad. Rogério
Fernandes, Lisboa, Edições Livros do Brasil.
Riffard, Pierre
A. (1996), O esotermismo, trad. Yara Azevedo Mauro e Elisabete Abreu,
São Paulo, Mandarim.
Silva, Fabio Mario da (2010), «O que nos
resta, após a leitura de Arcano Dezenove?», in Renata Bomfim, Arcano
Dezenove (2010), Vitória, Helvética Produções Gráficas e Editora, pp.
83-85.
**Poema «Nossa
Senhora dos raios multicoloridos», contido em Arcano Dezenove (Vitória: Helvética Produções Gráficas e
Editora, 2010, p. 27). Todas as citações feitas neste trabalho dizem respeito a
esta edição, pelo que daqui por diante será referido apenas o número de página,
a fim de evitar a repetição constante da informação bibliográfica.
**Mircea Eliade
em O Sagrado e o Profano explica
bem esta dinâmica da seguinte forma: «Para o homem religioso, a Natureza nunca
é exclusivamente ‘natural’: está sempre carregada de um valor religioso. Isto
compreende-se facilmente porque o Cosmo é uma criação divina: saindo das mãos
dos Deuses, o Mundo fica impregnado de sacralidade» (1975: 127).
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