Seja bem-vindo(a). Este é um espaço pessoal onde, desde 2007, reúno poemas, ensaios e artigos de minha autoria, compartilhando também um pouco da minha trajetória como terapeuta junguiana e ativista ambiental. É um espaço aberto, para escritores(as) de várias partes do mundo.

12/04/2021

IRMÃ CLEUSA CAROLINA RODY COELHO, EDUCADORA E MÁRTIR (Prof.ª Renata Bomfim)


A história de vida,¾ e de morte¾, da irmã Cleusa Carolina Rody Coelho (1933-1985) trouxe-me à memória a proposição de Walter Benjamim de que “cada época ao sonhar a seguinte, força-a a despertar”. Benjamim não sobreviveu ao tempo sombrio do nazismo, assim como irmã Cleusa Carolina, professora capixaba que optou pela vida religiosa, sucumbiu lutando pelos valores nos quais acreditava. O pensamento de Benjamim é um alerta sobre o perigo do esquecimento e a importância de se trazer à luz a memória dos oprimidos, pois, apenas assim poderá ser criada uma barreira contra a barbárie.

Vivemos um período de grande obscurantismo no Brasil, no qual a educação sofre graves ataques e, barbáries como a ditadura e o genocídio indígena, são minimizadas e, até mesmo, negadas. A história de irmã Cleusa Carolina explicita questões como a violência contra mulheres, pacifistas, ambientalistas e o genocídio dos povos originários, que remonta a colonização. Ao rememorarmos esse passado que se presentrifica de forma perversa, auscultamos a contrapelo da história, ecos da resistência e da luta dessas minorias, de humanistas e dos índios brasileiros, quiçá forçando um despertar coletivo para questões tão prementes.

Irmão Cleusa Carolina pediu dispensa do trabalho que realizava e, sem remuneração, mas determinada, foi viver entre os índios Apurinã, na Amazônia. Na sua última transferência para a cidade de Lábrea, em 1982, a freira capixaba uniu forças com aqueles que ela considerava serem os mais vulneráveis da sociedade, “os mais pobres e marginalizados”, apoiando as comunidades na luta pela demarcação, em um momento no qual os latifundiários invadiam e ocupavam as terras indígenas, muitas vezes com a conivência de autoridades locais. Representante do Conselho Missionário Indigenista, irmã Cleusa Carolina era professora de formação e a sua trajetória como missionária sempre esteve ligada à educação.

A história de vida dessa freira que dedicou 32 anos ao serviço missionário começa em Cachoeiro de Itapemirim, ES, no dia 12 de novembro de 1933. Aluna brilhante, ao final do curso de magistério, recebeu do Governo do Estado do Espírito Santo o prêmio de escolher em qual escola lecionaria, foi nesse momento que optou pela vida religiosa. Em 1952, na Comunidade de Ilha das Flores, no Rio de Janeiro, Cleusa Carolina adotou o hábito e tornou-se Sór Maria Ângelis.

Em 1954 quando foi enviada pela primeira vez para as Missões de Lábrea, iniciou a criação do Educandário Santa Rita, destinado às crianças carentes da cidade, onde trabalhou como professora primária. No ano de 1958, de volta ao ES, em Colatina, emitiu votos perpétuos de pobreza, obediência e castidade.  Mais tarde, irmã Cleusa Carolina decidiria não vestir mais o hábito religioso, usando apenas roupas simples recebidas como doação, ato motivado pelo desejo de diminuir diferenças e distâncias entre ela e as pessoas que atendia no trabalho fraternal.

Irmã Cleusa Carolina abraçou a sua vocação como educadora e o período que passou em Vitória, que se estendeu até 1973, dirigiu o Colégio Agostiniano e obteve Licenciatura Plena em Letras Anglo-germânicas, na UFES, dedicando-se, também, à formação de lideranças para criar Comunidades Eclesiais de Base. Foi nessa época irmã Cleusa Carolina voltou a adotar o nome de batismo. O trabalho missionário estendeu-se dos centros educacionais para presídios, lares de pessoas doentes e leprosário. No período que esteve em Manaus, a freira ia para as praças ao encontro dos meninos de ruas, levando para a sua casa alguns deles que corriam perigo de vida, passando assim a ser mal vista pela polícia, acusada de ser conivente com a desordem e protetora de infratores e marginais. O compromisso para com a justiça pode ser observada no trecho de uma carta enviada à outra freira, irmã Lourdes, em maio de 1978 que diz: “Temos que construir fraternidade, é necessário, mas a justiça tem que estar na base de toda a convivência humana”. Foi assim, colocando a justiça como um pilar da fraternidade que irmã Cleusa Carolina cumpriu a sua missão como integrante da irmandade das Missionárias Agostinianas Recoletas



. Irmã Cleusa manifestou, em carta, o desejo de desenvolver um trabalho de alfabetização para adultos com os povos ribeirinhos, a “pastoral das curvas”, dos Purus, preocupando-se, também, com “os irmãos espalhados pelas estradas”.

A participação ativa na causa indigenista fez com que a freira se tornasse querida entre os índios, mas por outro lado, incomodou aqueles que os perseguia. Irmã Cleusa Carolina foi assassinada no dia 26 de abril de 1985, o seu corpo foi encontrado dois dias depois, nu e escalpelado, com mais de cinquenta chumbos de arma de caça na cabeça e no tórax, várias costelas quebradas, braço direito decepado e a sua mão direita nunca foi encontrada. Os ossos do braço direito da irmã Cleusa Carolina estão depositados na Catedral Metropolitana de Vitória e, tramita hoje, no Vaticano, um processo para a sua beatificação.

O martírio da religiosa capixaba faz parte da história de violência que abrange os conflitos que envolvem terras indígenas e extrativismo e que ainda vitima muitos indígenas. Irmã Cleusa Carolina foi um exemplo de amor ao próximo e à educação, e foi honrando esse legado e buscando que a sua memória não caiam no esquecimento, que a Academia Feminina Espírito-santense de Letras (AFESL) tornou-a Patrona da cadeira de número 24, ocupada hoje pela escritora Beatriz Monjardim F. Santos Rabello.

Renata Bomfim

Poeta, ambientalista e presidente da AFESL

TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NO JORNAL DE LETRAS, RJ

NOVEMBRO DE 2020

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