Falar acerca da força e
da coragem das mulheres espírito-santense é algo que nos comove, mas também nos
desconforta, pois, infelizmente é uma história ainda pouco conhecida pela
sociedade capixaba e marcada pelo silenciamento. A pesquisadora Maria Stella de
Novaes, personalidade importantíssima da historiografia do Espírito Santo e autora
da obra A mulher na História do Espírito
Santo (História e folclore),
escrita entre 1957 e 1959, chamou a atenção para essa “omissão de referências
às mulheres”. Dona Stelinha, como carinhosamente era chamada, denunciou que esse
silêncio sobre a produção intelectual feminina e suas ações de resistência
remontam os registros da colonização. Segundo registros, o donatário Vasco
Fernandes Coutinho, quando veio tomar posse da Capitania no dia 23 de maio de
1535, não trouxe mulheres na sua comitiva e a epistolografia dos padres
Jesuítas atesta que os portugueses se casavam com as índias.
As mulheres indígenas das
tribos que habitavam o Espírito Santo na época da colonização exerciam
autoridade na tribo, tanto que nos chegam relatos como o da esposa do índio
Maracaiaguaçu (Gato grande), batizada como Branca Coutinho, em homenagem à mãe
do donatário, e da viúva de Guajaraba (Cabelo de Cão), que guiou o seu povo na
descida do Sertão para a aldeia dos Reis Magos. As índias foram as primeiras
mães dos cidadãos nascidos na terra recém-batizada e o papel fundamental e marcante
da mulher indígena na indústria caseira e na arte manual, deu forma a uma das
tradições mais destacadas do ES, ¾ a tradição da
panela e das paneleiras¾. Não ficou de fora do relato de Dona
Stelinha a importância histórica de Luísa Grimaldi, que governou o Espírito
Santo com êxito entre os anos de 1589 e 1593.
A literatura produzida
por mulheres no Espírito Santo tem preenchido muitas lacunas deixadas pela
história, exemplo disso é a obra A Capitoa, da escritora barrense Bernadette
Lyra, que fala da coragem dessa mulher que foi uma das primeiras da comandar um
estado brasileiro no século XVI. Outra personalidade feminina de grande relevo
para o Brasil é Maria Ortiz, heroína capixaba filha de espanhóis que defendeu a
Catania da invasão holandesa, em 1625. Em um artigo intitulado “Cadê a Maria
Ortiz?”, Francisco Aurélio Ribeiro relata que visitou a exposição “Brasil
feminino”, no Rio de Janeiro, e pode ver entre as personalidades
cronologicamente destacadas, Dora Vivacqua, mais conhecida
como Luz Del Fuego; a cantora Nara Leão e a escritora Marly de Oliveira, mas,
aponta para a ausência de referência a Maria Ortiz que é,
inclusive, alguns séculos anterior a revolucionária Maria Quitéria e a Ana Néri,
pioneira da enfermagem no Brasil. Dona Stelinha destacou que os séculos
passaram e “humildes e ignoradas, alheias, mesmo aos resultados sociais e
econômicos dos seus esforços”, as mulheres capixabas chegaram ao século XVIII
ainda condicionadas por conceitos patriarcais religiosos, sociais e legais que
as caracterizavam como inferiores ao homem: “fadas incógnitas que
salvaguardavam as bases da sociedade”, as capixabas eram consideradas “máquina
de trabalho doméstico”.
A mulher oitocentista teve
a sua liberdade fortemente cerceada e as jovens eram criadas e educadas para o
casamento, mas, a escolarização foi essencial para que esse cenário começasse a
mudar. Em 1827, Dom Pedro I outorgou a lei que criou escolas nas vilas e
cidades mais populosas do império, entretanto, as escolas para meninas seriam
permitidas apenas se aprovadas pelo conselho, e caso fossem aprovadas, a elas não
se ensinaria aritmética e nem geometria, apenas as quatro operações básicas,
ficando o programa restrito às prendas da economia doméstica. Essa realidade estendeu-se
até meados do século XIX, quando as mulheres começaram a conquistar espaços
sociais fora de casa e as senhoras do Espírito Santo se organizavam em torno de
novos interesses, como o jornal de moda parisiense A Estação. Em Vitória e Vila Velha as rendas, parte do aprendizado
de trabalhos manuais das moças, eram famosas.
No Espírito Santo, a
primeira escola pública primária para meninas, foi fundada em Vitória, em 1835,
mas ficou dez anos sem funcionar por falta de professora, até que em 1845 a primeira
professora foi contratada, o seu nome é Maria Carolina Ibrense. A escolarização
feminina associada à emergência de ações coletivas abriu horizontes para as
mulheres no século XX. Maria Stela de Novaes afirmou que o século XIX poderia
ser chamado de “O século das mulheres”. A partir de então as mulheres passaram
a ser professoras e diretoras de escolas primárias e normais, bem como
escritoras, mas, o direito ao voto e a elegibilidade ainda lhe eram negados. Nesse
sentido, podemos perceber a relevância da vida e da obra de Judith Leão
Castello Ribeiro, professora, escritora e primeira deputada estadual no
Espírito Santo. Judith Leão Castello Ribeiro nasceu na Serra, no dia
31-08-1898, seu pai João Dalmácio Castello e sua mãe Maria Grata Leão Castello,
primaram pela educação dos filhos e da fizeram questão que a filha também
estudasse. Judith Leão se insere no contexto de luta e resistência das primeiras
sufragistas capixabas. Vale recordar a importância do feminismo emergente na
luta pelos direitos das mulheres e que a exclusão dessas da categoria de
cidadãs, na constituição inglesa de 1791, levou a escritora Mary Wollstonecraft
a escrever Reivindicação dos direitos da
mulher e essa obra, que denunciava a opressão no tempo do iluminismo, ecoou
no Brasil e, insuflado por Nísia Floresta com o seu Direito das mulheres e injustiça dos homens, de 1832, floresceu o movimento
feminista brasileiro. Berta Lutz, na década de 1920, liderou a criação da
FEDERAÇÃO BRASILEIRA PELO PROGRESSO FEMININO e esse feminismo de primeira hora,
que tinha como foco a melhoria das condições da mulher na sociedade e a
conquista do direito ao voto feminino, só alcançou o pleito em 1932. Segundo
Maria Stella de Novaes, o movimento feminista capixaba delineou-se
paralelamente ao movimento nacional, liderados pela Sra. Silvia Meireles da
Silva Santos, em Vitória. Nessa época, a organização das mulheres em entidades organizadas
fomentou importantes debates políticos e, em vários estados da federação, o
feminismo se fortaleceu. No Espírito Santo não foi diferente, as intelectuais capixabas
já chamavam a atenção pela atuação destacada no cenário cultural local, mesmo
assim, alguns espaços ainda lhe eram negados, e um desses espaços era o
político.
O interesse de Judith
pela política possui raízes profundas, pois, nascida em uma família tradicional
da Serra, o seu bisavô, Manoel Cardoso Castello, avô dos educadores Kosciuszko
e Aristóbulo Barbosa Leão, foi vereador na época que a localidade era conhecida
como freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Serra, antes de ser elevada à
condição de Vila, em 1822. Ela foi, também, casada com Talma Rodrigues Ribeiro,
que foi prefeito da Serra entre 1945 e 1946 e que a apoiava incondicionalmente.
Judith foi uma
defensora ardorosa dos direitos políticos das mulheres, mas, o ambiente
conservador da época exigiu uma sensibilização das capixabas para a luta
política. Maria Stella de Novaes expõe as dificuldades das mulheres que ousavam
desafiar a ordem patriarcal adentrando espaços públicos, relata que ela mesma sofreu
para ingressar como catedrática no corpo doente do Ginásio do Espírito Santo e
na escola normal do Estado, e que “as escritoras e as poetisas amargaram” da
mesma forma, “bebendo o cálice da crítica ferina e da oposição implacável”. Em
1933 um grupo de senhoras vitorienses fundou a FEDERAÇÃO ESPÍRITO-SANTENSE PELO
PROGRESSO FEMININO, buscando incentivar o alistamento de mulheres e, sem
compromisso partidário, a CRUZADA CÍVICA DO ALISTAMENTO, cuja presidente foi Silvia
Meireles da Silva Santos, vice-presidente, Judith Castello Leão Ribeiro, e
tesoureira Maria Stella de Novaes. Judith Leão já era professora desde o ano anterior,
quando tinha sido aprovada, em concurso público, e ingressado como docente no
Grupo Escolar Gomes Cardim. Segundo João Luiz Castello, sobrinho de Judith, são
vários os exemplos de que Judith mostrava interesse em trabalhar em prol do
coletivo, tanto que desejando estimular o aprimoramento cultural de seus alunos
fundou o Museu Pedagógico (1930-1946), na Escola Normal Pedro II, e
iniciou o jornal “Folha escolar”, de
circulação interna na mesma instituição. A arte e a cultura sempre foram
considerados, por Judith Leão, um instrumento de transformação social, de forma
que, enquanto professora, estabeleceu um tempo para os seus alunos terem
iniciação literária e musical. Foi como professora que Judith, em 1934,
candidatou-se a deputada estadual pela primeira vez, mas como não estava filiada
a nenhum partido, acabou não se elegendo. Judith Leão optou por disputar sem legenda
por apoiar o Movimento Revolucionário Constitucionalista de São Paulo, de 1932,
e por discordar da política estadual em vigor na época. A sessão capixaba da
Federação contribuiu para com o movimento no Rio de Janeiro, te esse esforço
coletivo fez com que, em 1936, o direito ao voto fosse mantido sem restrições
na Constituição Federal.
A movimentação
feminista vitoriense repercutiu no interior do estado e uma delegação da UNIÃO
CÍVICA FEMININA, de Cachoeiro de Itapemirim, em 1936, enviou uma delegada para
participar do Congresso Nacional Feminino. O “esforço titânico”, ¾
como diria Maria Stella de Novaes ¾, de Judith Leão
e de muitas outras mulheres capixabas, entre elas Guilly Furtado Bandeira, Ilza
Etienne Dessaune, Maria Antonieta Tatagiba, Lidia Besouchet, Virgínia Tamanini,
Yponéia de Oliveira, Zeni Santo e Haydée Nicolussi, precisa ser conhecido pela
sociedade, precisa ganhar destaque na historiografia. Um grupo de mulheres uniu
forças com Judith Leão para a fundação da ACADEMIA FEMININA ESPÍRITO-SANTENSE
DE LETRAS (AFESL), no dia 18 de julho de 1949. Francisco Aurélio Riberio,
dedicado pesquisador da vida e da obra das escritoras capixabas, nos faz saber que
apenas muito recentemente as mulheres foram aceitas nas academias de Letras, e
destaca a extemporaneidade e o pioneirismo da capixaba Guilly Furtado Bandeira
que, em 1913, ingressou como acadêmica na Academia de Letras do Pará. A
escritora é, também, a primeira capixaba a publicar um livro, em 1913, Esmaltes e Camafeus.
A acadêmica da AFESL
Ailse Therezinha Cypreste Romanelli salienta que era “um despautério”, na
década de quarenta, uma mulher como Judith cumprir quatro legislaturas como deputada e, ainda, tentar
entrar para a Academia Espírito-santense de letras e não ser aceita. Judith se
candidatou para uma cadeira da Academia Espírito-santense de Letras (AEL), mas “as
academias eram exclusivamente masculinas”, então num movimento de afirmação
feminista, Judith, fundou a Academia Feminina Espírito-santense de Letras
(AFESL) e foi a sua primeira patrona. Participaram dessa primeira diretoria
Arlette Cypreste de Cypreste, como vice-presidente, Zeni Santos e Iamara
Soneghetti como secretárias e Virgínia Tamanini como bibliotecária, a elas se
juntaram Ida Vervloet Finamore, Hilda Prado e outras escritoras e musicistas, o
que fez com que a instituição fosse se firmando no cenário cultural capixaba.
Nos seus setenta anos
de existência, a AFESL vem lutando para ser um espaço de livre produção para as
intelectuais no Espírito Santo, desde os seus primórdios quando Annette de
Castro Mattos, em 1950, organizou a “Vitrine literária”, primeiro registro das
escritoras espírito-santenses, passando pelo programa “Mulher e perfume”,
dirigido por Arlete Cyprete de Cypreste, na Rádio Capixaba, e que deu voz a
muitas escritoras e artistas; a escritora Zeny Santos, que fundou a “Casa do
capixaba”, o apoio dado pela AFESL ao Instituto Braile na sua criação, a
criação do “Lar da Menina”, por Beatriz Nobre de Almeida e tantas outras ações das
intelectuais capixabas.
É preciso criar espaços
para que as mulheres do passado e do presente possam ter visibilidade, é fato.
Graças ao esforço e a luta dessas pioneiras, as mulheres capixabas brilham hoje
nos mais variados âmbitos da sociedade, no parlamento, nas academias, mas,
ainda há muito pelo que lutar contra o preconceito de gênero e a violência. A
representatividade das mulheres no espaço político ainda é pequena e o debate
sobre questões importantes como a (des)igualdade e a cidadania das mulheres,
especialmente das mulheres negras, devem ganhar o cotidiano.
Abraçar o legado
deixados por essas mulheres excepcionais é necessário, especialmente em um
momento histórico como o atual, no qual o Brasil vive um obscurantismo com
relação às questões de gênero, exemplo disso é que o tema vem sendo subtraído
das metas da educação nacional, acreditamos que resgatar a história de luta e
conquistas de mulheres como Judith Leão Castello Ribeiro inspira os cidadãos e as
cidadãs a militarem em prol da educação e pelo direito à livre expressão.
Minibiografia
Renata Bomfim é mestre e doutora em letras pela Universidade Federal do
Espírito Santo. Professora, escritora e ativista ambiental é gestora e
proprietária da Reserva Natural Reluz, RPPN localizada em Marechal Floriano. Presidente
da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, ocupando a cadeira de nº 16;
Membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do ES e Diretora técnica da
Associação Capixaba do Patrimônio Natural (ACPN). Representou o Brasil em
Festivais de poesia no exterior e presidiu a 6ª Feira Literária Capixaba, em
maio de 2019. Possui artigos e ensaios publicados, é autora da Revista
Literária Letra e fel (www.letraefel.com) e
dos livros de poemas Mina (2010); Arcano dezenove (2012), Colóquio
das árvores (2015) e O Coração da Medusa (no
prelo).
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