Seja bem-vindo(a). Este é um espaço pessoal onde, desde 2007, reúno poemas, ensaios e artigos de minha autoria, compartilhando também um pouco da minha trajetória como terapeuta junguiana e ativista ambiental. É um espaço aberto, para escritores(as) de várias partes do mundo.

17/02/2022

Florbela Espanca e Cantos de Vida y Esperanza (3)

 

Em pouco mais de dez dias Florbela tinha adquirido o livro Cantos de vida y esperança. A poeta afirmara que se identificava o personagem Dom Quixote, e na obra de Darío, especialmente em Cantos de vida y esperanza, esse personagem ocupa um lugar de destaque como o “senhor dos tristes”, “coroado com áureo elmo de ilusão”, um “cavaleiro errante”, “generoso, piedoso e orgulhoso” (DARÍO, 2004, p. 148). Ainda nas cartas, Battelli contou a Florbela sobre as suas insônias e a poeta o consolou, mas, na correspondência, quem agradeceu à “grande amizade”, afinal, foi a Sóror Saudade, que segundo Florbela era um “bebê amimado” que nunca estava contente, uma “bárbara da charneca”, “pantera enjaulada” aborrecida. Ao final da carta, a poeta afirmou estar enviando ao professor os últimos dois sonetos para o livro Charneca em flor e que esse transcrevesse na íntegra o soneto, cujo título é um sinal de interrogação: “?”.

 No dia 8-8-1930 Florbela enviou uma nova carta para Batteli falando sobre a sua infância e assina como “Sóror Saudade”. Ela agradeceu ao professor por divulgar os seus versos na Itália: “Não sei como a pateta da Sóror Saudade lhe há de agradecer as lindas coisas que dela conta aos seus leitores de Itália”. A poeta destacou ainda que nunca gritou a ninguém os seus “desesperos”, como tem feito desde que o conheceu (ESPANCA, 2002, p. 227). No dia 21-8-1930, Florbela enviou uma nova carta a Battelli, na qual mostrava bom humor. Florbela ria da “afeição sem exigências” e da “grande amizade” que o professor lhe dedicava, e declarou: “Tenho em si uma confiança absoluta e a certeza de que nunca me virá mal da sua límpida ternura de amigo” (ESPANCA, 2002, p. 281). Nessa correspondência há indícios de que a saúde da poeta está muito fragilizada. Retirada da cidade, ela repousava numa praia alheando-se cada vez mais da realidade que lhe era “infinitamente menos poética”. Ela aproveitava esse tempo para fazer versos, “muitos versos, nunca fiz tantos e nem tão bons” (ESPANCA, 2002, p. 281). Novamente a poeta declarou que estava utilizando tranquilizante, disse que durante uma insônia que só cedeu após “grama e meio de veronal”, fez um soneto. Battelli, nessa época, estava em Coimbra, e Florbela lamentou não ter um automóvel para ir visitá-lo, afinal, “as poetisas, sobretudo as ilustres, as grandes, fizeram voto de pobreza como São Francisco de Assis, principalmente as poetisas que são freiras” (ESPANCA, 2002, p. 282, grifo nosso).

 Segundo Florbela, Battelli lançava lenha à fogueira dos seus “vãos desejos”. Ela já não dormia “a sonhar com Veneza” e, na carta datada de 22-8-1930, declarou que o “mau amigo” lhe fazia ter “insônias” e, como sempre fez, agradeceu ao professor, dessa vez em francês: “merci, merci, merci”, e voltou a escrevê-lo no dia 26-8-1930.

Enfim chegou o tempo do encontro. Florbela buscou um bom lugar para que Battelli se hospedasse em Matozinhos quando fosse visitá-la. Desculpou-se com o professor por não poder hospedá-lo, visto que a casa em que estava morando com o marido era de seus sogros: “dois velhos agarrados aos seus hábitos de há séculos”, situação que a deixava de mau humor (ESPANCA, 2006, p. 284). Nesta carta, a “pantera enjaulada” descreveu-se “rabugenta” e pediu a Guido que não falasse com ela sobre política e nem sobre religião, afinal, ela era “pagã e anarquista, como não poderia deixar de ser uma pantera que se presa” (ESPANCA, 2002, p. 284, grifo nosso). O sonho de ir para Veneza mostrava-se irrealizável, afinal:

Nem saúde, nem dinheiro, nem liberdade. A pantera está enjaulada e bem enjaulada, até que a morte venha cerrar-lhe os olhos, e da sua miserável carcaça cinzele um tronco robusto a latejar de seiva, ou uma sôfrega raiz a procurar fundo a água que lhe mate a sede” (ESPANCA, 2006, p. 284).

 A Sóror Saudade que “adora os claustros e as fontes; toda ela é um claustro e uma fonte...” se despediu de Battelli com a notícia: “Charneca em flor está pronta para aparecer aos olhos do respeitável público. Espera apenas que o senhor pintor lhe ponha a capa... uma charneca, tendo por modelo... o mar” (ESPANCA, 2002, p. 284, grifo nosso). Battelli passou a se queixar do silêncio de Florbela.  A poeta tinha em mão duas cartas do professor, as quais respondeu no dia 3 de setembro. Florbela encontrou para Guido uma hospedagem próxima à sua casa e avisou que quando chegasse a pantera falaria pelos cotovelos. A saúde de Florbela melhorou, segundo ela própria um “milagre”, mas “que as fadas más que povoam o mundo” não lhe escutassem, destacou (ESPANCA, 2002, p. 285). Na carta de 28-9-1930, a poeta desculpou-se com Battelli pelo silêncio, desta vez causado pela doença e morte de seu sogro e, em 6-10-1930, agradeceu-lhe a publicidade dada na Itália à sua poesia, recentemente publicada na Ressegna Nacionale. Como retribuição, Florbela prometeu a Guido que uma amiga sua escreveria sobre a escritora italiana Condessa de Fiume na revista Portugal Feminino. A poeta não se ofereceu para fazê-lo e justificou dizendo que, além de não ter nenhum cargo na revista, era “apenas, poetisa: poetisa nos versos e miseravelmente na vida”, e que por isso não sabia fazer nada “a não ser versos; pensar em versos e sentir em versos. Predestinações...” (ESPANCA, 2002, p. 291).  Acredita-se que Battelli tenha se apaixonado por Florbela: “a sua afeição por mim cega-o completamente: a minha alma ─ pobre dela! ─ não é nada do que a sua cegueira de amigo pensa e julga” (ESPANCA, 2002, p. 291).

 Segundo Dal Farra (ESPANCA, 2002, p. 250), Battelli se insinuou para a poeta, mas esta tomava como se fossem versos as suas palavras, e logo o professor retrocedeu na investida amorosa. Essa pensadora salienta que essa postura de Florbela, ou seja, o limite que ela impôs na relação com Guido, em muito contrasta com a intimidade com que ele a tratou nas publicações póstumas. No dia 28-10-1930 Florbela estava feliz: “parece-me um sonho”, a alegria devia-se ao fato de Battelli ter pedido o original do livro Charneca em flor para publicá-lo por sua conta. A poeta mandou fazer uma cópia, “à máquina”, do manuscrito, temendo que o correio o perdesse, e desde então começou a designar as características do livro e de como deveria ser publicado. Florbela deu orientações precisas a Battelli sobre como gostaria que o livro fosse estruturado,  entretanto, como que profeticamente, declarou-lhe: “Tenho uma tão grande vontade de ver o livro pronto, que parece-me hei de morrer antes disso” (ESPANCA, 2002, p. 293).

Declarando-se “Dom Quixote sem ilusões”, por batalhar diariamente por um ideal que não existia, Florbela pediu ao seu amigo, que retornava para a Itália, que não se esquecesse da “Sóror Saudade que um dia se lembrou de se mascarar de Charneca em flor” (ESPANCA, 2002, p. 296, grifo nosso). Com Guido de volta à Itália, Florbela ainda lhe escreveria especificando detalhes do Charneca em flor, propondo modificações e acertos. Para baratear a obra, Battelli sugeriu que cada soneto ficasse inteiro em uma página, a poeta prontamente aceitou a sugestão, mas fez exigências, pediu que o professor depositasse os exemplares da obra em uma livraria em Coimbra ou em Lisboa, e esta se encarregaria de distribuí-los, assim, a localização lhe possibilitaria vigiá-los, afinal, “o que o patrão não vê, os gatos lho levam...” (ESPANCA, 2002, p. 297). No dia 18-11-1930, Florbela encaminhou à Battelli a prova do livro com as devidas correções, inclusive, no último verso do soneto Charneca em Flor, ao qual faltava um “em”, devendo ficar: “Sou a charneca rude a abrir em flor”, e pediu que, de última hora, o professor inserisse no livro um soneto que ela acabara de escrever, e do qual muito gostara (ESPANCA, 2002, p. 298). Na carta do dia 30-11-1930, a poeta pediu ao professor que fizesse correções nos sonetos “Realidade”, “O Meu Condão” e “Ser poeta”, e lhe perguntou se o livro sairia antes do Natal.

 Observamos que Florbela não perdeu o tino para questões voltadas ao mercado editorial, pois, vendido antes do Natal, o livro seria uma possibilidade de presente, o que poderia alavancar as vendas do mesmo. A última carta de Florbela para Guido data de 5-12-1930. Nela, ainda observamos a preocupação de Florbela com o Charneca em flor, tanto que ela pediu ao professor que fizesse acertos nos sonetos “Crucificada”, “Espera”, “Mais Alto”, “Não ser”, In Memorian”, “Árvores do Alentejo” e “Panteísmo”. Sugeriu acertos, também, na acentuação e pontuação de algumas palavras, e declarou: “Julgo estar agora tudo em ordem” (ESPANCA, 2006, p. 302). Junto a esta carta seguiu um retrato de Florbela e os dizeres: “que mais terei eu ainda que agradecer-lhe?”. Depois disso, ela se despediu dele: “mil saudades da bela” (ESPANCA, 2002, p. 302).

 Consta registrado, no Diário de último ano de Florbela, datado de 20-11-1930, a citação adaptada do soneto “A um moribundo”, de Charneca em flor, que diz: “Que importa? Que te importa, ó moribundo? / ―Seja o que for, será melhor que o mundo! / Tudo será melhor que esta vida”... (ESPANCA, 1999, p. 214). A poeta reproduziu no diário os dois versos finais desse poema na íntegra. Entretanto, o primeiro verso diz: “Mas que importa o que está para além?”, a este verso precede a frase: “A morte definitiva ou a morte transfiguradora?” (2002, p. 298). No dia 2-12-1930 Florbela deixou registradas as suas últimas palavras: “E não haver gestos novos e nem palavras novas” (ESPANCA, 2002, p. 301).

Florbela não viu o seu Charneca em flor ser publicado. Na madrugada do dia 8 de dezembro de 1930, o barbitúrico Veronal, que usualmente a fazia dormir, fechou-lhe para sempre os olhos. Florbela deixou uma carta pessoal para a amiga Maria Helena Calás com instruções exatas sobre o que fazer com os seus pertences, deixou uma carta destinada ao seu marido e postais de despedida para as amigas mais próximas.

 Fiz um apanhado da relação entre Florbela Espanca e Guido Battelli entre vistas, especialmente, por meio da epistolografia da poeta. É patente o sentimento de gratidão de Florbela, tanto em função da publicação do livro Charneca em flor, quanto pela divulgação de sua obra na Itália. Entretanto, acredito que o fato de o professor se debruçar sobre a sua poesia com interesse, estudá-la e traduzi-la, significou para Florbela o reconhecimento do seu valor como poeta por alguém de fora do seu círculo literário. Em vista do frio acolhimento que as suas primeiras publicações receberam, a aceitação de alguém culto como Guido significou para Florbela uma resposta aos seus esforços no labor poético. Como ela afirmou certa vez, Guido era um amigo raro. Guido Battelli não conseguiu converter Florbela ao catolicismo. A poeta foi uma mulher de comportamento extemporâneo e essa imagem não convencional se agravou com o seu suicídio. Após a morte de Florbela, o professor italiano publicou as cartas da poeta, como falamos anteriormente, adulterando-as com o objetivo de “evitar quaisquer possíveis especulações acerca das relações mantidas entre ambos”, bem como, visando manter longe dos olhos do público a “verdadeira Florbela”, a “insurrecta”, a “anarquista”, enfim, “a inconstitucional” (ESPANCA, 2002, p. 250). Batteli forjou uma imagem de mulher bem comportada e temente a Deus, uma mulher de fé que em nada se assemelhava à pantera enjaulada, a poeta orgulhosa, pagã e anarquista descrita nas correspondências. Quando as cartas depositadas pelo professor na Biblioteca Pública de Évora foram abertas, em 1941, movia-se contra Florbela Espanca, em Portugal, um verdadeiro processo inquisicional, ao qual a crítica Maria Lúcia Dal Farra denominou “affaire”, e que foi tratado de forma aprofundada na minha pesquisa de mestrado intitulada Vozes femininas: a polifonia arquetípica em Florbela Espanca (ESPANCA, 2006, p. 250). Conforme explicitei nessa pesquisa, “a vida pessoal de Florbela Espanca, imantada pelo espírito da insurreição, formará juntamente como a sua poesia, uma espécie de tragédia da vida privada” (BOMFIM, 2009, p. 13). No dia 24-2-1931, o intelectual português Antônio Ferro escreveu um artigo antológico sobre Florbela no Diário de Notícias, que dizia:

 Pois que? Pois foi possível que esta admirável rapariga, que não escreveu um verso sem talento e sem alma, tivesse nascido, vivido e morrido numa terra de poetas, sem que ninguém a tivesse visto, sem que ninguém a tivesse gritado? [...] pois foi possível o seu anonimato, a sua sombra, em face de certas consagrações vistosas, em face de certa poesia feminina de ‘boas festas’, reproduzida em série ao infinito, como os cromos das ‘pombinhas’ e das ‘mãos apertadas’. [...] Florbela nunca foi uma poetisa de ‘sociedade’, e foi esse o seu mal, e foi por isso que não a conheceram, que não a descobriram ou que não quiseram descobrí-la. [...] eu revolto-me contra essa injustiça, contra esse silêncio criminoso, contra essa morte depois da morte (FERRO, 1931, p. 01, grifo nosso).

 A publicação de Antônio Ferro tornou Florbela Espanca conhecida em todo Portugal e contribuiu, também, para que o livro Charneca em flor se tornasse um boom literário. Como afirmou Maria Lúcia Dal Farra, “Pode-se dizer de Florbela o mesmo que de Inês, já que aquela se tornou, tanto quanto esta, rainha – e apenas depois de morta” (ESPANCA, 1999, p. I). Emilia de Souza Costa (1931, p. 2), em um artigo que escreveu para a revista Eva, falou sobre o interesse dos escritores, poetas e jornalista, de emitirem opiniões sobre Florbela e de homenageá-la. Para Costa, o tom dos tributos era de “reparação” e “remorso” (COSTA, 1931, p. 02). Aconteceu um processo de mistificação[1] da imagem de Florbela Espanca, tendo em vista prováveis, e muitas vezes inventados, aspectos curiosos, anedotários e tétricos sobre sua vida e sobre sua morte, como o de ela ter sido ninfomaníaca, ou o de ela ter sido praticante de incesto, informações que ajudaram a montar um perfil de mulher à frente do seu tempo, capaz de incomodar a estamental sociedade católica portuguesa. Transformada em celebridade, muitos queriam escrever sobre ela, especialmente as mulheres que a conheceram na revista Portugal Feminino. Nessa Revista Guido Battelli publicou os sonetos de Florbela, “Sou eu” e “A um moribundo”, e ambos tratam sobre o tema da morte. Com os sonetos publicados seguiu a afirmação de que Florbela “tinha o pressentimento de seu fim próximo” e de que “ouvia vozes misteriosas que a chamavam do além”. Battelli escreveu ainda, em 1931, uma elegia, através da qual evocou uma imagem etérea e mitificada para Florbela: “pálida e serena como Ofélia”, deitada em seu leito de flores, “voz melodiosa cantando um cântico divino” (BATTELLI, 1931, p. 19).  Observamos que a imagem de poeta romântica, após a morte de Florbela, se acentuou e lhe rendeu admiradores entre o público e a crítica. Entretanto, se observarmos a recepção da obra de Florbela hoje, assim como na época do lançamento dos seus livros de poemas, veremos as mudanças que se processaram nos discursos e na sociedade, o que corrobora a tese de Jauss de que a arte antecipa possibilidades que ainda não se concretizaram, flexibilizando e ampliando as possibilidades do comportamento social e abrindo caminho para novas experiências.



[1] Ainda em 1931, Thereza Leitão de Barros utilizou o soneto “A um moribundo” para pedir a Deus que recebesse Florbela no seu reino e lhe fizesse esquecer “o turbilhão da vida e a Fatalidade, sua negra companheira”. Barros (1931, p. 18) dando continuidade à campanha de mitificação da poeta, levantou no Portugal Feminino uma questão acerca do nome de Florbela. Ela afirmou que “o seu nome estranho e presumido foi a ironia de sua vida”. Vários estudiosos debruçam-se sobre o amálgama vida e obra de Florbela Espanca, entre eles, o crítico presencista José Régio, que, em seu estudo Sonetos de Florbela Espanca, cuja primeira edição data de 1950, buscou “frisar” a importância desse amálgama na construção da mitografia da poeta. Régio afirmou que o interesse por sua poesia “nasce, vibra e se alimenta do seu muito real caso humano” (RÉGIO, 1964, p. 11). Tito Bettencourt, no Diário de Notícias de 18 de dezembro de 1930, também especulou sobre Florbela afirmando que esta: “muito amou a vida, e por muito a amar, a vida a abandonou e entristeceu, até morrer [...]” e acrescentou: “pobre Florbela”. Natália Correia (1981) engrossou o coro dos mistificadores escritores quando, no prefácio do Diário de último ano, da editora Bertrand, afirmou que Florbela Espanca era uma persona dramatis: “Bela se apresenta como Diva do simbolizante feminino” [...] Os adereços da sua tragédia têm a futilidade das paixões vãs e fugidias que a consomem; a barateza das joias de um guarda-roupa teatral: “[...] Uma poesia maquilada com langores de estrela de cinema mudo. Carregada de pó de arroz. Florbela manipula o fraseado amoroso como Circe e seus filtros” (CORREIA, 1981, p. 9-12).

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