Foi no dia 18-7-1930 que Florbela Espanca começou a se corresponder com Guido Battelli, que na época, tinha 62 anos, vinte e cinco anos a mais que Florbela. O primeiro contato do futuro editor com a obra de Florbela aconteceu por intermédio do advogado Dr. Antônio Batoque, que lhe apresentou um poema de Florbela publicado na revista Portugal Feminino. Battelli escreveu para a revista pedindo informações sobre a poeta e estando em Lisboa ela própria lhe respondeu da casa de Maria Amélia Teixeira, diretora do Portugal Feminino. Essa carta consta como sendo a primeira das vinte e quatro peças que Florbela enviou à Battelli e que estão depositadas na Biblioteca Pública de Évora.
No dia 26-04-1930 Guido Battelli[1]
foi nomeado professor visitante na Universidade de Coimbra e trouxe consigo um
grande conhecimento do país e da cultura que o recebia. Para Guido, saber e
religiosidade eram faces de uma mesma moeda. O professor, extremamente
católico, foi chamado por um amigo seu ― poeta e intelectual heterodoxo que
transitou do anarquismo ao catoliscismo ―, Giovanni Papini, de “dolce Guido”. O
sacerdote Lorenzo Righi, ex-aluno de Guido, trinta anos após morte do
professor, lhe dedicou um livro que intitulou de Il Dolce Guido, corroborando
as impressões de Papini. Em 1923, Battelli dedicou a sua obra Florilegio
Francescano[2] ao
amigo Domenico Giulotti, onde se autonomeia “francescano Battelli” (SILVA,
2014). Battelli tinha conhecimento acerca da obra dos santos e dos escritores
místicos. Em 1923, Giovanni Papini e Domenico Giuliotti citaram o professor
italiano na polêmica obra que organizaram, o Dizionario dell’Omo Salvatico,
onde Battelli é descrito como um homem de gosto refinado que rechaça “alla
brutale modernità”, se refugiando “nel ieratico Medio e conversa con gli
artisti e coi santi di quell'età prodigiosa” (SILVA, 2014). Nesse dicionário,
o gosto e a paixão de Guido pelas coisas raras são vinculados à espiritualidade
com que este exalta os místicos cristãos. Talvez venha daí o interesse de Guido
por Florbela, um misto de admiração pela Sóror Saudade e desejo de converter ao
catolicismo a escritora que, assumidamente, não se filiva a nenhuma ideologia
religiosa, como mostra a carta do dia 27-7-1930, que Florbela lhe enviou:
A citação revela uma Florbela que se performa perante os olhos atônitos de Guido, uma Sóror insurreta, com uma filosofia própria, com ideias formadas, tanto que, na carta seguinte, do dia 3-8-1930, falará ao professor que o seu “raciocínio à Hegel, apoiado numa espécie de filosofia à Nietzsche”, não lhe supre mais os anseios, visto que no momento, a sua “sede de infinito” é maior que o seu “eu”, e o seu “espiritualismo ultrapassa o céu” (ESPANCA, 2002, p. 275). Conhecendo o gosto de Guido Battelli pelos místicos cristãos, bem como pelos escritores finiseculares, podemos compreender a inquietação que a leitura de Florbela lhe trouxe. Silva (2014) destacou que o contato de Guido com a poética do Livro de Mágoas, “toda ela crivada de inquietação, orgulho, mal-estar e titânica rebeldia, valores e atitudes pouco consentâneas com a pax et bonum[4] de um espírito franciscano”, despertou no professor uma possível ideia de “resgate”, ou, leia-se, de conversão religiosa da poeta. Florbela respondeu às investidas catequizadoras de Guido Battelli, “católico convencido”, numa carta datada do dia 3-8-1930: “não sou católica, como não sou protestante nem budista, maometana ou teosofista. Não sou nada” (ESPANCA, 2002, p. 275). Entrevemos nesse trecho da carta que o posicionamento de Florbela quanto à religião[5] é claro. A morte é outro tema que, nessa epistolografia (assim como na poesia), vai ganhando espaço, como se a poeta pegasse a ponta de um fio desenrolado há muitos anos, quando tinha nove anos de idade e escreveu o seu primeiro poema: “A vida e a morte”. Agora, com esse interlocutor privilegiado, Florbela fala do seu estado emocional, de seus nervos “destrambelhados” que as “várias morfinas” podem aliviar, mas nunca poderão curar (ESPANCA, 2002, p. 276). É como Sóror saudade que ela se remeterá ao professor muitas vezes, escrevendo a ele que à “triste monja sem fé” apeteceria “estar longe”, quem sabe no claustro de Santa Cruz, em Florença, na Itália, e que a Sóror Saudade precisava, “indiscutivelmente”, de uma cela em “Rilhafoles[6]” (ESPANCA, 2002, p. 227). Vimos que foi no dia 18-7-1930 que Florbela Espanca começou a se corresponder com Guido Battelli, nessa época estava próximo o retorno deste à Itália. Receptivo à obra de Florbela, Guido se ofereceu para traduzir para o italiano a sua obra e divulgá-la fora de Portugal. Dal Farra (ESPANCA, 2002, p. 245) destacou o papel de “receptor ideal”, portador da “sedução e do mistério”, desempenhado por Batteli. Ele era alguém exterior a esfera de convivência da poeta que, durante muito tempo, existiu apenas “no âmbito fictício e remoto”, no “espaço da escrita”. Após a publicação do Livro de Sóror saudade, em 1923, Florbela colaborou com periódicos como o Don Nuno, de Vila Viçosa, elaborou um livro de contos, provavelmente O Dominó preto, e se dedicou a traduzir romances do idioma francês para o português[7], mas não conseguia publicar o livro Charneca em flor por não ter nem dinheiro e nem um editor. Guido Battelli tinha a intenção de reunir numa mesma publicação o Livro de Mágoas, o Livro de Sóror Saudade e o livro inédito de Florbela, porém, a poeta expôs ao professor a sua situação financeira, fato que muito a desanimava, inviabilizando qualquer ação por parte desta: “Não tenho dinheiro, digo isto sinceramente, carrément como se falasse com um amigo de toda a minha vida”. A poeta, mesmo que pela via da negação, aproveita, então, para sugerir a Battelli que a publique:
Mtº Attª e Obrº
Florbela Espanca
(ESPANCA, 2002, p. 269).
[1] Guido Battelli, natural de Sarsana, província de Gênova, segundo Gabriel Rui Silva (2014), transferiu-se para Portugal graças à influência de seu genro, o Guido Vitaletti (1886-1936), casado com Fiorela, cujo nome recorda muito o de Florbela. Vitaletti era medievalista, especialista em Dante e elemento de confiança do regime fascista italiano, instalado em Portugal em 1926. Lecionou Literatura Italiana na Universidade de Coimbra e depois em Lisboa, tornando-se adido cultural do seu país junto a Portugal e depois em Londres, quando passou o posto da Universidade ao seu sogro.
[2] Livro de prosa e poesia franciscana reunida, organizada e ilustrada por Guido Battelli.
[3] Nessa mesma carta, Florbela Espanca declara para Guido que não conhece Cantos de vida y esperança, de Rubén Darío, mas que irá procurar a obra nas livrarias do Porto. Nessa ocasião, ela o convida para visitá-la em Matosinhos e lhe envia duas fotografias como recordação de seu “exílio na charneca’ (ESPANCA, 2002, p. 274).
[4] Termo em latim que significa “a paz é boa”.
[5] Na carta datada de 1208/1930 Florbela diz a Battelli que “não só a moral cristã é bela” e lhe aponta o indiano Gandi, “esse homem-luz, divino como um Cristo e grande, como ninguém!”, a poeta afirma admirá-lo muito (ESPANCA, 2002, p. 279).
[6] Antigo convento que abrigou jovens condenados pela inquisição por se desviarem da fé católica e ofenderem a moral e os bons costumes, mas que, posteriormente, se transformou em hospital para alienados.
[7] Florbela Espanca traduziu para a editora Figueirinhas do Porto os romances A ilha azul, de George Thiery (1926); O segredo do marido, de M. Maryan (Biblioteca das famílias, 1926); O segredo de Solange, (Biblioteca das famílias, 1927); Dona Quixota, de Georges de Peyrebrune (Biblioteca do lar, 1927); O Romance da felicidade, de Jean Rameau (Biblioteca do lar, 1927); O castelo dos noivos, de Claude Saint-Jean, 1927; Dois noivados, de Champol (Biblioteca do Lar, 1927); Mademoiselle de la Ferté (Romance da atualidade), de Pierre Benoit (Série Amarela, 1929); Máxima, de A. Palácio Valdez (Romance da Atualidade, coleção de Hoje, 1932) (ESPANCA, 2002, p. 62).
[8] Nessa correspondência, Florbela contou à Battelli o quanto se sentia diferente das outras pessoas, que viviam de acordo com demanda social da época: “O meu talento!... De que me tem servido? [...] O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que se não sente bem onde está, que tem saudades... sei lá de que! (ESPANCA, 2002, p. 271).
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