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17/02/2022

Guido Battelli, "Apóstolo florbeliano" (parte 2: performances florbelianas)

 

Florbela Espanca (1894-1930)

Foi no dia 18-7-1930 que Florbela Espanca começou a se corresponder com Guido Battelli, que na época, tinha 62 anos, vinte e cinco anos a mais que Florbela.  O primeiro contato do futuro editor com a obra de Florbela aconteceu por intermédio do advogado Dr. Antônio Batoque, que lhe apresentou um poema de Florbela publicado na revista Portugal Feminino. Battelli escreveu para a revista pedindo informações sobre a poeta e estando em Lisboa ela própria lhe respondeu da casa de Maria Amélia Teixeira, diretora do Portugal Feminino. Essa carta consta como sendo a primeira das vinte e quatro peças que Florbela enviou à Battelli e que estão depositadas na Biblioteca Pública de Évora. 

No dia 26-04-1930 Guido Battelli[1] foi nomeado professor visitante na Universidade de Coimbra e trouxe consigo um grande conhecimento do país e da cultura que o recebia. Para Guido, saber e religiosidade eram faces de uma mesma moeda. O professor, extremamente católico, foi chamado por um amigo seu ― poeta e intelectual heterodoxo que transitou do anarquismo ao catoliscismo ―, Giovanni Papini, de “dolce Guido”. O sacerdote Lorenzo Righi, ex-aluno de Guido, trinta anos após morte do professor, lhe dedicou um livro que intitulou de Il Dolce Guido, corroborando as impressões de Papini. Em 1923, Battelli dedicou a sua obra Florilegio Francescano[2] ao amigo Domenico Giulotti, onde se autonomeia “francescano Battelli” (SILVA, 2014). Battelli tinha conhecimento acerca da obra dos santos e dos escritores místicos. Em 1923, Giovanni Papini e Domenico Giuliotti citaram o professor italiano na polêmica obra que organizaram, o Dizionario dell’Omo Salvatico, onde Battelli é descrito como um homem de gosto refinado que rechaça “alla brutale modernità”, se refugiando “nel ieratico Medio e conversa con gli artisti e coi santi di quell'età prodigiosa” (SILVA, 2014). Nesse dicionário, o gosto e a paixão de Guido pelas coisas raras são vinculados à espiritualidade com que este exalta os místicos cristãos. Talvez venha daí o interesse de Guido por Florbela, um misto de admiração pela Sóror Saudade e desejo de converter ao catolicismo a escritora que, assumidamente, não se filiva a nenhuma ideologia religiosa, como mostra a carta do dia 27-7-1930, que Florbela lhe enviou:

 Não me julgue, para os que convivem comigo, e que julgam conhecer-me, sou alegre, dizem-me alegre, porque sou blagueuse e irônica. [...] Não sou de maneira nenhuma uma pessimista, não! Uma emotiva vibrante, exaltada, cheia de élans, de voos que ultrapassam a vida e os vivos, isso sim! E adoro as árvores, as pedras, os bichos, as flores. [...] Não posso olhar para um céu cheio de estrelas que não sinta vontade de chorar de alegria, de humildade, de reconhecimento. Vejo rosto às pedras, rostos petrificados que comovem, atitudes quase humanas que me fazem cismar na glória de ser pedra, um dia... [...] Gosto imenso de todos os bichos pequeninos, simples, vestidos de pardo, como o meu hábito de Sóror Saudade, desses que só sabem andar abraçados à terra, em íntimo contato com ela, a terra misteriosa e purificadora, a terra amiga e boa que dum assassino sabe fazer uma rosa, que nos há-de lançar a todos nós para além, para o céu, para a luz, para os astros onde não chegue a desprezível vaidade dos tolos, a covardia das traições, a baixeza das mentiras, toda essa grotesca comédia humana que me suja e a quem eu não perdoo o sujar-me. Já vê que não sou nada a rola gemebunda, a menina portuguesa que suspira ao ouvir um fado arrastado, nas tais guitarras de Alcácer-Kibir... Sou uma cética que crê em tudo, uma desiludida cheia de ilusões, uma revoltada que aceita sorridente todo o mal da vida, uma indiferente a transbordar de ternura. Grave e metódica até à mania atenta a todas as sutilezas dum raciocínio claro e lúcido, não deixo, no entanto, de ser uma espécie de D. Quixote fêmea a combater moinhos de vento, quimérica e fantástica, sempre enganada e sempre a pedir novas mentiras à vida, num dom de mim própria que não acaba, que não desfalece, que não cansa![3] (ESPANCA, 2002, p. 273, grifo nosso).

A citação revela uma Florbela que se performa perante os olhos atônitos de Guido, uma Sóror insurreta, com uma filosofia própria, com ideias formadas, tanto que, na carta seguinte, do dia 3-8-1930, falará ao professor que o seu “raciocínio à Hegel, apoiado numa espécie de filosofia à Nietzsche”, não lhe supre mais os anseios, visto que no momento, a sua “sede de infinito” é maior que o seu “eu”, e o seu “espiritualismo ultrapassa o céu” (ESPANCA, 2002, p. 275).  Conhecendo o gosto de Guido Battelli pelos místicos cristãos, bem como pelos escritores finiseculares, podemos compreender a inquietação que a leitura de Florbela lhe trouxe. Silva (2014) destacou que o contato de Guido com a poética do Livro de Mágoas, “toda ela crivada de inquietação, orgulho, mal-estar e titânica rebeldia, valores e atitudes pouco consentâneas com a pax et bonum[4] de um espírito franciscano”, despertou no professor uma possível ideia de “resgate”, ou, leia-se, de conversão religiosa da poeta. Florbela respondeu às investidas catequizadoras de Guido Battelli, “católico convencido”, numa carta datada do dia 3-8-1930: “não sou católica, como não sou protestante nem budista, maometana ou teosofista. Não sou nada” (ESPANCA, 2002, p. 275). Entrevemos nesse trecho da carta que o posicionamento de Florbela quanto à religião[5] é claro. A morte é outro tema que, nessa epistolografia (assim como na poesia), vai ganhando espaço, como se a poeta pegasse a ponta de um fio desenrolado há muitos anos, quando tinha nove anos de idade e escreveu o seu primeiro poema: “A vida e a morte”.  Agora, com esse interlocutor privilegiado, Florbela fala do seu estado emocional, de seus nervos “destrambelhados” que as “várias morfinas” podem aliviar, mas nunca poderão curar (ESPANCA, 2002, p. 276).  É como Sóror saudade que ela se remeterá ao professor muitas vezes,  escrevendo a ele que à “triste monja sem fé” apeteceria “estar longe”, quem sabe no claustro de Santa Cruz, em Florença, na Itália, e que a Sóror Saudade precisava, “indiscutivelmente”, de uma cela em “Rilhafoles[6]” (ESPANCA, 2002, p. 227). Vimos que foi no dia 18-7-1930 que Florbela Espanca começou a se corresponder com Guido Battelli, nessa época estava próximo o retorno deste à Itália. Receptivo à obra de Florbela, Guido se ofereceu para traduzir para o italiano a sua obra e divulgá-la fora de Portugal. Dal Farra (ESPANCA, 2002, p. 245) destacou o papel de “receptor ideal”, portador da “sedução e do mistério”, desempenhado por Batteli. Ele era alguém exterior a esfera de convivência da poeta que, durante muito tempo, existiu apenas “no âmbito fictício e remoto”, no “espaço da escrita”. Após a publicação do Livro de Sóror saudade, em 1923, Florbela colaborou com periódicos como o Don Nuno, de Vila Viçosa, elaborou um livro de contos, provavelmente O Dominó preto, e se dedicou a traduzir romances do idioma francês para o português[7], mas não conseguia publicar o livro Charneca em flor por não ter nem dinheiro e nem um editor. Guido Battelli tinha a intenção de reunir numa mesma publicação o Livro de Mágoas, o Livro de Sóror Saudade e o livro inédito de Florbela, porém, a poeta expôs ao professor a sua situação financeira, fato que muito a desanimava, inviabilizando qualquer ação por parte desta: “Não tenho dinheiro, digo isto sinceramente, carrément como se falasse com um amigo de toda a minha vida”. A poeta, mesmo que pela via da negação, aproveita, então, para sugerir a Battelli que a publique:

 Se alguma coisa se conseguir arranjar para o meu livro irei a Coimbra visitá-lo e agradecer-lhe pessoalmente o bem que a sua grande alma delicada tem feito à minha pobre alma de crucificada, triste como a charneca alentejana onde nasci. [...] Não julgo e nem nunca julgarei, no direito de fazer correr qualquer risco ao amigo que a tal empresa se abalançasse. Essa é a verdade e é por isso que, a não encontrar o editor corajoso dos meus sonhos, os versos continuarão... na gaveta, ou dispersos aos quatro ventos de jornais e revistas. Nós dizemos em português: “o que não tem remédio, remediado está”. Para avaliar o meu estado de espírito, desejoso da transformação universal pela morte, envio-lhe o meu último soneto, feito ontem, que ainda ninguém leu. Dou-lho: quem dá o que tem... Com a mais sincera simpatia e a mais alta consideração, sou

 Mtº Attª e Obrº

 Florbela Espanca

(ESPANCA, 2002, p. 269).

 A carta de Florbela foi prontamente respondida. No dia 10-7-1930[8], a poeta enviou a Guido outra carta, na qual agradecia “mil vezes” a “generosa oferta”: o professor ofereceu custear a publicação do livro. Em um aceno de humildade Florbela destaca que só tem pena de “talvez não o merecer”, mas no decorrer da carta deixa explícito o quanto acredita no potencial do livro: “Realmente, o livro, como diz, ficaria esplêndido. Os dois já publicados têm cada um, 35 sonetos, creio eu, e este inédito, que se intitula Charneca em flor, tem 50. É muito?” (ESPANCA, 2002, p. 271). Nessa carta a poeta assinou como Bela e, noutra, datada de 27-7-1930, prosseguiu agradecendo a Battelli por lhe ter enviado uma foto da escritora Sibilla Abramo. Nessa altura, Battelli apresentou à Florbela vários escritores. Em julho, a poeta agradeceu por Guido ter lhe apresentado as poesias da uruguaia Juana de Ibarbourou (1892- 1979), segundo ela, “panteísta, vibrante e sincera” (ESPANCA, 2002, p. 268). Guido falou com Florbela sobre uma determinada obra de Percy Bysshe Shelley, poeta inglês, mas a ela não se interessou e afirmou que, “por mais inverossímil” que pudesse parecer, ela gostava mais de ler prosa do que versos (ESPANCA, 2002, p. 291). Por intermédio de Battelli, Florbela teve contato com as poéticas da Condessa de Fiume e da milanesa Ada Negri (1870- 1945), que admirou, pois, assim como ela, sabiam “sofrer de diferentes maneiras!”. Segundo a poeta, “a dor de Ada Negri usava um manto de púrpura sobre os ombros”, já a sua dor, “veste de burel e anda descalça”, postura que nos remete ao franciscanismo (ESPANCA, 2002, p. 271). Battelli arriscou escrever alguns poemas e os enviou para Florbela que, de pronto, os elogiou: “Lindos, lindos os seus versos!” (ESPANCA, 2002, p. 272). Nessa mesma carta, a poeta deu ao professor dicas de como deveria orientar a publicação do livro Charneca em flor:

 A capa do futuro Charneca em flor agrada-me; sonhava-a assim, pouco mais ou menos. Sim, bruyère exatamente. As flores roxas devem ser urze. A charneca é áspera e selvagem, mesmo vestida das suas cores prediletas: roxo e dourado. Giesta, euze, rosmaninho, esteva: plantas amargas e rudes, sempre sequiosas, sempre solitárias, em face dum céu onde se ascende um sol que as queima, e o luar que as faz sonhar sonhos irrealizáveis de pobrezinhas que nunca serão princesas. É assim que eu também sou “Charneca em flor”. Envio-lhe o soneto que, a propósito do título, abre o livro (ESPANCA, 2002, p. 272).

 Florbela prosseguiu se performando ante os olhos de Battelli. Ainda nessa carta ela falou dos seus infortúnios, de como perdeu a mãe e o irmão que tanto amava, bem como, reafirmou a sua diferença em relação às outras pessoas. Declarou-se uma espécie de Dom Quixote fêmea combatendo moinhos de vento. A propósito, a poeta aproveitou para dizer ao professor que não conhecia “Cantos de vida e de esperança”, de Rubén Darío, e que Battelli não lhe enviasse o livro, pois ela própria pretendia comprá-lo em uma livraria do Porto. Junto com essa carta Florbela enviou para Guido duas “fotos” suas como “recordação” de seu “exílio na charneca...” (ESPANCA, 2002, p. 274, grifo nosso). Essa fantasia se sustentou, via epistolografia, de meados de junho até setembro de 1930, quando Battelli foi a Matosinhos conhecer Florbela pessoalmente. Antes da ida do professor a Matosinhos foram enviadas dozes cartas, nas quais Florbela revelou a Batteli a sua intimidade, performando-se em Sóror Saudade e lhe fazendo confidências: “Para os que convivem comigo, e que julgam conhecer-me, sou alegre [...]. Não conto a ninguém esta tristíssima inferioridade de me sentir uma exilada de toda alegria, [...] não mostro a ninguém a miséria da minha miséria de inadaptável” (ESPANCA, 2002, p. 272). As doze cartas enviadas por Florbela a Guido após a sua visita a Matosinhos, tratavam de fatos concretos referentes à publicação da obra Charneca em flor. Acredito que essa interlocução foi importante na vida Florbela. Por meio dessas cartas podemos, também, vislumbrar a degradação da saúde da poeta pelo fato de declarar só conseguir dormir fazendo uso do “veronal”, barbitúrico cuja overdose, no dia 8 de dezembro, levou-a à morte.

 Ora, se no final de julho de 1930, Florbela Espanca afirmou não conhecer a obra Cantos de vida y esperanza, de Rubén Darío, como mostra a carta do dia 27-7-1930, na qual trata dos detalhes finais da publicação de Charneca em flor, concluímos que a poeta teve o tempo estimado de quatro meses para tomar ciência da obra do escritor nicaraguense. Não sabemos quais poemas Florbela escreveu depois dessa data, nem quais receberam o influxo da obra dariana, também não há como afirmar que a poeta modificou algo nos sonetos já escritos a partir desse diálogo, qualquer declaração ficaria devendo comprovação. Na carta seguinte, dia 02-9-1930, Florbela declarou: “Gosto imenso, imenso do seu grande Rubén Darío. Mas, também são dele estes dois belos versos: Pues no hay dolor más grande que el dolor de ser vivo, / Ni mayor pesadumbre que la vida consciente” (ESPANCA, 2002, p. 276).



[1] Guido Battelli, natural de Sarsana, província de Gênova, segundo Gabriel Rui Silva (2014), transferiu-se para Portugal graças à influência de seu genro, o Guido Vitaletti (1886-1936), casado com Fiorela, cujo nome recorda muito o de Florbela. Vitaletti era medievalista, especialista em Dante e elemento de confiança do regime fascista italiano, instalado em Portugal em 1926. Lecionou Literatura Italiana na Universidade de Coimbra e depois em Lisboa, tornando-se adido cultural do seu país junto a Portugal e depois em Londres, quando passou o posto da Universidade ao seu sogro.

[2] Livro de prosa e poesia franciscana reunida, organizada e ilustrada por Guido Battelli.

[3] Nessa mesma carta, Florbela Espanca declara para Guido que não conhece Cantos de vida y esperança, de Rubén Darío, mas que irá procurar a obra nas livrarias do Porto. Nessa ocasião, ela o convida para visitá-la em Matosinhos e lhe envia duas fotografias como recordação de seu “exílio na charneca’ (ESPANCA, 2002, p. 274).

[4] Termo em latim que significa “a paz é boa”.

[5] Na carta datada de 1208/1930 Florbela diz a Battelli que “não só a moral cristã é bela” e lhe aponta o indiano Gandi, “esse homem-luz, divino como um Cristo e grande, como ninguém!”, a poeta afirma admirá-lo muito (ESPANCA, 2002, p. 279).

[6] Antigo convento que abrigou jovens condenados pela inquisição por se desviarem da fé católica e ofenderem a moral e os bons costumes, mas que, posteriormente, se transformou em hospital para alienados.

[7] Florbela Espanca traduziu para a editora Figueirinhas do Porto os romances A ilha azul, de George Thiery (1926); O segredo do marido, de M. Maryan (Biblioteca das famílias, 1926); O segredo de Solange, (Biblioteca das famílias, 1927); Dona Quixota, de Georges de Peyrebrune (Biblioteca do lar, 1927); O Romance da felicidade, de Jean Rameau (Biblioteca do lar, 1927); O castelo dos noivos, de Claude Saint-Jean, 1927; Dois noivados, de Champol (Biblioteca do Lar, 1927); Mademoiselle de la Ferté (Romance da atualidade), de Pierre Benoit (Série Amarela, 1929); Máxima, de A. Palácio Valdez (Romance da Atualidade, coleção de Hoje, 1932) (ESPANCA, 2002, p. 62).

[8] Nessa correspondência, Florbela contou à Battelli o quanto se sentia diferente das outras pessoas, que viviam de acordo com demanda social da época: “O meu talento!... De que me tem servido? [...] O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que se não sente bem onde está, que tem saudades... sei lá de que! (ESPANCA, 2002, p. 271).

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