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17/02/2022

Guido Batelli, o "apóstolo florbeliano" (Parte1- encontros)



A obra Charneca em Flor, de Florbela Espanca, além de colocar em evidência a personalidade poética de Rubén Darío, colocou em cena, também, outra personalidade, a do editor da obra em questão e pessoa responsável por apresentar a Florbela Espanca o livro dariano Cantos de vida y esperanza, Guido Battelli. Este artigo pretende lançar um olhar sobre essa relação a partir da epistolografia florbeliana e das cartas trocadas entre Túlio Espanca e Guido Battelli.Usaremos como aporte teórico os estudos comparativos.

Na carta que Florbela enviou a Guido Battelli (1869-1955) no dia 03-8-1930, a poeta diz: “Gosto imenso, imenso do seu grande Rubén Darío. Mas também são dele estes dois belos versos: “Pues no hay dolor más grande que el dolor de ser vivo, / Ni mayor pesadumbre que la vida consciente” (ESPANCA, 2002, p. 276). Guido Battelli (1869-1955) desempenhou um papel impactante na história da publicação e recepção da obra Charneca em Flor e de outros livros póstumos da poeta. Segundo Maria Lúcia Dal Farra (ESPANCA, 1995, p. 19), Battelli “insinuava aos leitores” que na obra de Florbela estava explicada a razão de sua morte, acionando uma forma de leitura mecanicista que acabou amalgamando a vida e a obra da poeta para críticos e leitores durante muitos anos:

 Foi certamente de mau gosto e perniciosa para a inaugural recepção da poetisa: para começar a palavra “suicídio” não se encontrava num posto privilegiado dentro da cartilha do bom-tom salazarista, sendo, por isso mesmo, interdita pela imprensa... De maneira que, de um lado, os dotes ímpares da sua poesia chamam a atenção do maior periódico português de então, o Diário de Notícias de Lisboa, através do seu editor Antônio Ferro e de Celestino David, correspondente em Évora – de outro, começam os embargos para empanar essa notoriedade, à qual se agregarão, paulatinamente, as mais desairosas pechas concernentes à imagem feminina (ESPANCA, 1995, p. 19).

 A respeito de Guido Battelli (1869-1955), sabemos que era professor visitante na Universidade de Coimbra, onde lecionava a disciplina História da Literatura Italiana, e que, por intermédio de um advogado amigo seu, teve contato com a poesia de Florbela. Guido leu um poema de Florbela na revista Portugal Feminino em meados de junho de 1930 e, então, escreveu para a revista buscando informações sobre a poeta. A própria escritora, que estava em Lisboa, lhe respondeu, dando início a uma interlocução que duraria todo o último ano da sua vida. Maria Lúcia Dal Farra publicou toda a correspondência que Florbela enviou para Guido nesse período, um total de vinte e quatro cartas, analisando-as de forma aprofundada. Esse material possibilita que tenhamos uma visão do relevo dessa personalidade no impacto que as publicações póstumas de Florbela causaram sobre a recepção da sua obra e sobre a sua imagem. E no meu estudo de doutorado, na Universidade de Évora, que me deparei com um conjunto de cartas trocadas entre Guido Battelli e Túlio Espanca, que revelam impressões e reflexões de Guido já na bastante idoso e perto de falecer. Foi em setembro de 2013, enquanto bolsista da Capes, que acessei esse espólio histórico adquirido pela Universidade em 2009, a partir de recursos da Fundação Calouste Gulbenkian. O espólio de Túlio Espanca, primo e afilhado de Florbela Espanca começou a ser limpo, identificado, classificado e acondicionado em 2010 e conta com 2.268 cartas, 467 cartões, 419 guias de roteiros, 44 catálogos gerais e 137 catálogos de exposições, 738 jornais e recortes, 24 revistas e 1954 postais ilustrados, além de um rico acervo fotográfico. Busquei algo que contribuísse para com a pesquisa que realizava e encontrei um conjunto de cartas e postais enviados por Guido Battelli à Túlio Espanca entre 1951 e 1954, ano em que faleceu o professor italiano. Esses documentos estavam acondicionados em uma caixa, cada um deles separados por pastas numeradas, num total de quarenta e, até então, não tinham sido submetidos a nenhum tipo de análise crítica. Solicitei à Biblioteca da UÉvora autorização para copiá-los, o que não nos foi concedido, mas recebemos permissão para transcrever o que fosse útil à nossa pesquisa. A partir dessa coleta, busquei ampliar o olhar para a personalidade de Guido Battelli e para as ações que, após a morte da poeta, ele implementou para divulgá-la dentro e fora de Portugal. O meu foco era encontrar algo que relacionasse Florbela a Rubén Dario, pois, ao buscar dentro dos estudos florbelianos referências ao escritor nicaraguense, encontrei, apenas, a declaração feita pela pesquisadora Liliana Maria Rodrigues Queirós Matias sobre o porquê de Florbela ter escolhido um poema dariano como epígrafe para o livro Charneca em flor. Ela diz:

 A coletânea, consideravelmente maior que as anteriores, é precedida por duas estrofes do poeta nicaraguano Rubén Darío que Florbela quer, assim, homenagear. Afinal na lírica de Rubén Darío há um misto de espiritualidade lírica e de sensualidade, duas vertentes tão caras à poesia portuguesa. As estrofes rubenianas são um cântico de amor sem fronteiras, são um convite à entrega total, constituem, certamente, o mote perfeito para o conteúdo do poema prefácio da coletânea [...] (MATIAS, 1998, p. 89, grifo nosso).

 Embora considerasse acertadas as palavras da pesquisadora sobre das vertentes afins entre os poetas, sentia que havia algo mais, uma motivação outra. Fui percebendo que o desejo de Florbela Espanca ultrapassava a simples homenagem a Rubén Darío e que escolher um poema da obra Cantos de vida y esperanza como epígrafe para Charneca em Flor sinalizava, também, a possibilidade da existência de um diálogo interno com a poética dariana. Esse tipo de operação pude observar desde o Livro de Mágoas, com Verlaine, e no Livro de Sóror Saudade, com o poeta Américo Durão. Pude conjecturar, então, que Florbela, muitíssimo agradecida a Guido Battelli por se oferecer para publicar o livro Charneca em flor, visto que ela não tinha dinheiro para fazê-lo, tenha dedicado especial atenção às leituras sugeridas pelo professor, dentre elas, a obra Canto de vida y esperanza, como podemos observar no fragmento da carta do dia 28-8-1930:

Não imagina como fiquei contente com a notícia que me deu a respeito do meu livro. Ainda me parece um sonho, e eu não costumo acreditar muito nos sonhos... Porque de todos se acorda. Estou realmente contente e esta alegria, a maior que me podia vir agora que tão poucas espero, devo-lha a si! [...] Como agradecer-lhe e pagar-lhe a minha dívida? [...] Na página anterior logo ao primeiro soneto, exatamente como vai esses belos versos de Rubén Darío (ESPANCA, 2002, p. 292-93, grifo nosso).

 Dediquei especial atenção, durante a pesquisa, ao livro Charneca em flor (1931), obra póstuma de Florbela, destacando a história de sua estruturação, que envolveu de forma irremediável – desde a sua nascente, passando pela sua estruturação, editoração, lançamento e recepção – o seu editor, Guido Battelli. Nessa altura da pesquisa, as cartas inéditas trocadas entre Guido Battelli e Túlio Espanca, foram iluminadoras. Selecioneis, cataloguei e analisei a parte desse material que interessavam á pesquisa, com vistas à ampliação do olhar para este personagem ambíguo que integra a história da editoração e divulgação da obra florbeliana. Antes de falar, propriamente, da obra Charneca em flor, acredito que se seja pertinente explicar a sua nascente, visto que nela se insere esse personagem relevante ao qual chamo de “apóstolo Florbeliano”, o seu editor, Guido Battelli, pessoa que apresentou à Florbela o livro Cantos de vida y esperança, de Darío, que foi pivô de variadas confusões que envolveram a publicação da obra póstuma da poeta.

 A morte de Florbela Espanca na madrugada do dia 8-12-1930, quando completaria 36 anos, gerou grande comoção entre os seus amigos. Embora a versão oficial tenha sido morte natural[1], o acontecido não deixava muito espaço para dúvidas: fora suicídio[2]. Dal Farra (ESPANCA, 1999, p. XIV) destacou que houve uma “maciça mistificação” em torno da morte de Florbela, afinal, a palavra suicídio era interditada nos jornais e a família, católica, tentava abafar o caso. Antes de morrer Florbela havia confiado a Guido Battelli os originais de Charneca em flor. Guido Battelli[3], segundo Dal Farra (ESPANCA,1999, p. XV), foi a primeira pessoa a equacionar a vida e a obra de Florbela, “no afã de prestigiar e de promover a poetisa”. Ainda para esta pesquisadora, essa postura do professor italiano transforma-o, a partir da morte de Florbela, numa espécie de porta-voz da poeta e de tudo o que lhe dizia respeito.


[1] Embora o marido de Florbela Espanca fosse médico, o laudo da morte da poeta foi assinado por um carpinteiro, Manuel Alves de Souza, e indicava que o motivo do falecimento era edema pulmonar.

[2] Edgard Morin (1997) descreve o suicídio como a “tentação plena” da morte. O suicídio é capaz de fazer romper “o isolamento da individualidade no mundo, o desprendimento de tudo, a solidão, fazendo com que nada mais prenda o indivíduo a uma vida que ele sabe estar fadada à destruição”, dessa maneira, essa seria uma forma de “reconciliação suprema e desesperada com o mundo” (MORIN, 1997, p. 49, grifo nosso).

[3] Guido Batteli foi o editor do póstumo Charneca em flor (1931), obra com cinquenta e seis sonetos, em cuja segunda edição o professor inseriu mais vinte e oito sonetos sob o título Reliquiae. Na terceira edição da obra foram inseridos mais cinco sonetos ao livro. Ainda em 1931, Battelli publicou Juvenília, no qual reuniu sonetos dispersos da poeta, a maior parte destes escritos antes da publicação do Livro de Mágoas (1919). Batteli também foi responsável pela publicação de parte da epistolografia de Florbela. O professor publicou as cartas que a poeta lhe enviara e as que ela enviara para Júlia Alves (Cartas de Florbela Espanca a Dona Júlia Alves e a Guido Battelli), porém, manipulou essas correspondências de forma deliberada. As cartas remetidas por Florbela à Battelli foram depositadas na Biblioteca Pública de Évora sob a condição de que só fossem abertas em 1941, ou seja, passados dez anos do depósito. Quanto às cartas que Florbela remeteu para Júlia Alves, acredita-se que foram levadas por Battelli para Florença e destruídas por um incêndio quando a casa do professor pegou fogo durante a Segunda Guerra Mundial. Maria Lúcia Dal Farra ressalta que a epistolografia florbeliana é marcada por “imprecisões, adulterações, montagens e interpolações” (ESPANCA, 2002, p. 163). Em 1979, as adulterações feitas por Battelli às cartas escritas por Florbela foram registradas por Agustina Bessa-Luís.

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