14/08/2022

EXERCÍCIOS DO OLHAR. Entrevista com Mirian da Silva Cavalcanti conduzida por Francis Kurkievicz

 

Mirian Cavalcanti

Conheci a Mirian Cavalcanti numa feira literária em Vitória/ES, FLIC-ES em 2016. Como eu disse a ela naquela ocasião, “foi amor à primeira vista”. Desde então estabelecemos um vínculo não só literário e afetivo, mas também ideológico, já que Mirian é uma ativista progressista da velha guarda, com memória de elefante e olhar escrutinador.  Mirian é uma carioca vivendo na serra do Caparaó, em Divino de São Lourenço, desde 1993. Nesse lugar mágico ela tem se dedicado com intensidade a literatura, mas só debutou aos 65 anos, com o romance Confraria Van Gogh, romance cujo cenário principal é uma biblioteca na época da Ditadura Militar. Como ela mesma diz depois desta primeira experiência: “incorporei de vez à minha vida isso de escrever, essa aventura de ouvir personagens que não dão a mínima atenção ao que se tenta determinar para eles”, e desde então, não parou de imaginar mundos possíveis, de ouvir vozes suprimidas, de perscrutar o coração combalido da humanidade anônima. Mirian é organizadora do projeto Ao Pedro II, Tudo ou Nada? memórias dos ex-alunos do famoso Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, atualmente esta coleção conta com cinco volumes publicados. Mirian também ganhou o primeiro lugar no Edital de Publicação da SECULT/ES em 2017, com seu engenhoso romance polifônico Femina, Feminae. Mirian tem seus livros publicados pela Semente Editorial, apenas Rascunhos, seu primeiro livro de poema, foi publicado pela Kotter Editorial.


Francis Kurkievicz: Mirian, como você tem enfrentado a vida em meio a essa surpreendente crise econômica, política sanitária e ética que estamos experimentando hoje, e como tem sido o seu cotidiano e como isso afeta a sua vida e a literatura?

Mirian S. Cavalcanti: Especialmente apreensiva, aflita mesmo, quando penso nas novas gerações. Recuemos no tempo... Naquele miolo dos anos 50, 60, 70, houve um eclodir de lutas pró-mudanças básicas na sociedade. Quer dizer, enquanto (falando assim por alto) o final dos 40 e grande parte dos 50 haviam sido tempos da reconstrução da sociedade e da retomada das vidas individuais, a partir da segunda metade dos anos 50, a juventude em especial partiu para avanços maciços na área do comportamento, ao mesmo tempo em que retomava o coletivo, o político-social como foco de vida. Então, hoje, muito me assusta a ascensão mundial do nazifascismo. Uma página que, descobrimos, não chegou a ser efetivamente virada. De repente, me sinto na década de 1930, vivendo a terrível experiência de ser testemunha disso. Um repeteco de filme de terror.

Daí a preocupação voltada à geração atual, pois me parece que a luta que recentemente começou a se travar é mais desigual do que aquela da década de 1930, se considerarmos a facilidade com que, a partir de algoritmos e fake news, as pessoas têm suas decisões mecanicamente conduzidas.

Veja bem: nem cheguei a colocar a pandemia nessa abordagem inicial. Pois essa tragédia, além da clareza da visão de que a humanidade nunca está dentro do mesmo barco, ela confirma que não podemos nos dar o luxo da omissão. “É preciso estar atento e forte”, mais que nunca.

Por outro lado, além do impacto emocional sobre cada um de nós ante milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas por uma política real de saúde pública, a pandemia afeta bem diretamente nosso cotidiano.

O isolamento social é meio como o impacto da morte – a ficha da extensão de uma perda só cai realmente em um momento mais adiante. Mesmo de início mitigado pela internet e celulares e chamadas de vídeo, o isolamento não evita que a gente se depare de repente com a falta irreparável do olho no olho, do toque.

Quanto ao escrever, já nesses anos recentes eu vinha de uma desaceleração na escrita – e aqui me refiro aos versos, que são o que me acompanham desde sempre. Mas isso de perceber a vida se despovoando de modo tão abrupto fez com que voltasse naturalmente a escrever.

E quando uso a palavra escrever significa me derramar, pois nada mais é do que isso. Quando não damos conta do interno, ele dá um jeito de escapulir. Por isso não me preocupo se o eixo – no caso, imagens – se repete, pois há que se escrever enquanto determinado tema nos domina, até se desgastar e ficar seco; puro osso.

E houve outra mudança também, pois me parece que fomos inundados por debates, cursos, entrevistas via internet, em um grau maior do que antes. E isso passou também a fazer parte mais da minha vida.

 FK: O distanciamento social, a reclusão tem obrigado as pessoas a revisarem suas vidas, seus desejos, suas relações, suas prioridades. Você compreende esta nova condição?

MSC: O distanciamento social, para a minha geração, veio coincidir dolorosamente com a fase em que se vai perdendo amigos, por força natural do tempo. Tenho perdido muitas vidas. E a visão da estrada que se despovoa continuamente se instalou em mim. O que se torna especialmente cruel, pois partidas que aconteceriam como naturais da vida acabam nos soando como se antecipadas – e no caso do Brasil pode-se realmente pensar assim; muitas foram antecipadas. Então, o sentimento é de raiva, decepção. Sinto que a urgência de fechar determinadas pontas soltas ganhou uma dimensão duplicada, triplicada… Urgência. Mas uma urgência paralela a portas fechadas, estradas barradas, atalhos quase impossíveis. Esse, o peso extra com que não contávamos.

FK: Os novos hábitos durante esta pandemia, de alguma forma, impulsionaram a busca pela poesia, a poesia nunca ficou tão exposta, tão necessária neste momento. Você tem essa mesma impressão? Você acredita que a poesia, ou a literatura de modo geral, neste momento traduz a inquietação humana?

MSC: A respeito daquilo de se derramar o que não é possível conter ou compreender do interno. Sim. E também pela certeza da finitude – a única que se tem. Mesmo que sem data marcada, ela passa a nos rondar mais de perto. A nós e aos do nosso universo afetivo. E o isolamento imposto acaba sendo mais um fator a nos impelir à escrita. Escrever é, de certo modo, uma busca por se tentar entender o que está em estado bruto dentro de nós. Por isso, também, certos temas e mesmo imagens literárias são recorrentes. Escrever é rascunhar o incompreensível. E o momento atual é o do assombro, da perplexidade.

 FK: Qual a sua opinião sobre a poesia atual? O que você tem ouvido dos outros poetas, você tem percebido alguma urgência ou temor? O que você tem lido?

MSC: Na pergunta, duas palavras atuais: urgência e temor. Não apenas no tocante à pandemia. Ampliando o foco do estritamente pessoal, as notícias são preocupantes.

No tocante à poesia atual, lembro de imediato da carioca Cintia Barreto, cuja poesia mereceu texto de Thiago de Mello. Ela é (entre seus mil talentos) uma escritora de alma múltipla. E me levou, inclusive, a redescobrir Adélia Prado.

De mais recente, li o paranaense (já quase capixaba) Francis Kurkievicz, com seu recém-publicado B869.1 K96. Pois esse título intrigante revela uma temática densa mas, sem abrir mão do conteúdo, surpreendentemente transparente.

Ainda nesse universo capixaba, mais três nomes: Tamyres Batista Costa, Aline Maria e Laissa Gamaro. Excetuando Tamyres, que tem conto publicado em e-book, Aline e Laissa manifestam suas poesias a partir de letras de música.

Em Tamyres, a palavra urgência ganha um significado bem específico. Urgência de palmilhar cada dor, de repor cada perda. Em Aline e Laissa, a urgência de viver, sem barreiras ao por descobrir.

Cinco nomes atuais, que atiçam o prazer da leitura; leituras que nos ficam como perfume.

 FK: Como você decide o que e como escrever? Como você organiza as ideias para um romance ou poema ou conto? Há diferenças no teor da primeira ideia que direciona seu esforço ou não? Qual o seu método de trabalho literário? Qual gênero te atrai mais: romance, conto, poesia, crônica?

MSC: Sou pouco racional e bem caótica, daí, nem tenho chance de decidir sobre o que escrever. Tudo surge inesperadamente, e muitas vezes nem muito definido se poesia ou eixo de algum conto ou romance. Por exemplo, duas poesias, “Femina, feminae” e “Awaca”, acabaram dando origem ao romance Femina, feminae – Caetana Joana Isabel Ana. Os miolos de ambas se amalgamaram e foram se desdobrando e encorpando e gerando perfis femininos. Estou chegando à conclusão de que, no tocante a essa pergunta, a palavra caos aninha todas as respostas.

Não tenho também método de trabalho na escrita. Tempo físico?, nem falar. Qualquer nicho de manhã tarde noite madrugada pode ser precioso. Agora, quanto a método, o que acontece especialmente em termos de romance é que quando a ideia surge, ela vem aos pedaços, partida, e depois é que vou identificando a posição no conjunto. Já bem no final é que salvo como abertura, epílogo, e busco ter uma ideia de possíveis buracos no miolo.

Todos os gêneros me atraem com a mesma intensidade, seja como leitora seja no que escrevo.

 FK: Qual o seu poeta e/ou escritor preferido? Aquele poeta que te inspira, move seu ânimo em direção à criação poética? Aquele que te ensina coisas que a vida nos sonega?

MSC: Ah… são muitos os preferidos… A começar pela Cecília Meireles; desde quando adolescente. E Fernando Pessoa. Drummond, Bandeira. E Manoel de Barros e Cora Coralina.

Fernando Pessoa foi lido na adolescência, e nesse sentido de “ensinar coisas que a vida nos sonega…” o impacto causado por ele me acompanhou vida afora. Daí, mais recentes, Manoel de Barros e Cora Coralina. Uma puxada de tapete! São o “como assim?” pra minha sensibilidade. Agora, a Cecília, o Drummond e o Manuel Bandeira abriram portas e janelas no que sou, traduziram abstrações. E trouxeram ventos do mar, silêncio, doçuras, espantos. Fiquemos por aqui. Sem lembrar dos poetas da nossa música popular. Aí, então...

 FK: Como surgiu a vontade e a ideia para escrever e publicar Rascunhos, seu primeiro livro de poemas? E qual poema deste livro é um representante fiel da sua dicção poética?

MSC: Os primeiros versos aconteceram como é comum: na adolescência. E segui escrevendo pelo resto da vida. Escrita que era o meu diário, por isso não pensei nunca em publicar. Mas algumas coisas eu gostava com um certo chamego, e comecei a embutir em pensamentos de personagens ou mesmo em aberturas de capítulos de romance. Até que, por força de um conto incluído em antologia da Kotter Editorial, fui convidada a apresentar um original para possível publicação. Aí pensei no que viria a ser o Rascunhos. Mais como um teste. E quando foi aprovado não deu para recuar. E acrescentei um subtítulo pra me deixar mais confortável nisso de publicar “poesia”… Rascunhos – Exercícios do olhar poético. Que é como vejo o que escrevo.

Agora, difícil é determinar qual, daquele conjunto, representa minha fala poética… Talvez pela recorrência, que acaba por acompanhar o amadurecer do meu olhar, possam ser os “Outono, quinta-feira santa”. Mas poderia ser também “Um milhão de portos” ou “Brejo e trilhas”. É. Talvez “Brejo e trilhas”.

 FK: Você publicou o romance Femina, Feminae – Caetana Joana Isabel Ana, um texto polifônico que atravessa várias gerações de mulheres. Como foi escrever um texto de tão grande fôlego e complexidade? E como tem sido a sua recepção até hoje?

MSC:  Levei alguns anos escrevendo o Femina. A partir de duas poesias, como falei antes, acabei mergulhando no tema do silêncio como bagagem feminina, geração após geração. Isso porque sinto uma atração irresistível por esse desdobrar de heranças vida afora. Os personagens, em especial as mulheres, foram me surpreendendo com seus segredos, com suas dores engessadas, incompreensíveis até para elas. E posso dizer que caminhei com cada uma. Os insights ocorriam simultaneamente aos personagens e a mim, frente ao computador. Aí eu parava de digitar e ficava em silêncio olhando a mata. Precisava de tempo pra sentar a poeira do que me parecera uma hecatombe ou um farol.

A cena da abertura, por sua vez, foi escrita de uma só vez, a partir da imagem de uma das personagens girando a cabeça para olhar a lua e depois girando, braços abertos, ao luar. Logo senti que ali estava a abertura. O epílogo, que seria em princípio apenas o desenvolvido na poesia “Awaca”, foi acrescido da síntese de parte de três dos cinco personagens. Cinco de três… Agora é que me dei conta disso. Uma escolha? Me parece que não. As duas personagens avós e a neta. Alfa e ômega.

Tenho apenas dois romances publicados, e cada um deles me trouxe um prazer diferente na escrita. O Femina, feminae proporcionou o prazer de mergulhar no psiquismo feminino mas de um modo não didático, não sei se poderia falar assim… de um modo de ir caminhando com as personagens e ir percebendo com elas suas dores, medos e coragens. E outra grande satisfação foi a criação da parte interna das capas, com fotos de mulheres tanto de meu mundo afetivo como mulheres que despertam minha admiração, por uma infinidade de motivos. Lá estão representadas diferentes e opostas histórias de vida e posicionamentos políticos, por exemplo. Gostei muito disso.

Agora, quanto à recepção, tenho tido relatos de identificação e descobertas, em especial de parte de leitoras. Inclusive uma bem interessante, que foi a que revelou o despertar de um olhar diferente também ao mundo masculino.

 FK: Depois de ter publicado tanto, como tem sido a sua relação com os leitores? Como você lida com a opinião e perspectiva deles? Que benefício há para o escritor em ouvir os leitores?

MSC: Considerando que quem escreve o faz a partir de uma necessidade pessoal, e, creio, não pense propriamente no leitor enquanto escreve, um tal contato posterior é imprescindível. Conheço vários dos que leram o que publiquei, de modo que esse é um contato natural, facilitado, já que transitam nas mesmas paisagens que eu.

Me é bem valorosa a visão e reação de cada um, até por que se trata de pessoas diferentes umas das outras. Esse retorno pode nos revelar possíveis pontos obscuros no texto – não intencionais – ou mesmo cenas merecedoras de novos ângulos, enriquecedores. Lido com isso com acolhimento e simpatia. No Femina, por exemplo, alguma revisão será feita na reedição. Já no tocante ao Confraria Van Gogh – A vida secreta de um livro de biblioteca pública, para a reimpressão em 2022, acabei estendendo o enredo até o século 21. A curiosidade de duas leitoras acabou me proporcionado uma alegria imensa, que foi a de acompanhar os personagens por um tempo mais em suas vidas. Amadureci com eles.

 FK: O que é fundamental um escritor saber para trilhar o caminho da literatura? A poesia não é só um fazer literário, mas é também um modo de vida? Ler literatura e poesia liberta?

MSC: A poesia é um modo de vida na medida em que oportuniza um constante mergulhar interno. E esse exercício de colocar em palavras algo que muitas vezes ainda se encontra em estado de abstração ajuda a nos conhecermos um pouco além do que os espelhos nos mostram. Porque esse mergulhar talvez traga mais perguntas que respostas. Reler o que se escreve é algo excelente. Às vezes me surpreendo. Ou me reconecto a percepções quase perdidas.

Penso agora que nesse sentido de a escrita ser um modo de vida, talvez haja uma diferença entre poesia e prosa.

Enquanto a prosa nos abre horizontes ilimitados, na poesia tem-se continuamente o exercício da síntese. Isso é bem desafiador. Alcançar o osso, como gosto de dizer. Desbastar, desbastar, desbastar!

Quanto ao que o escritor precisa saber, creio que ter a sensibilidade voltada ao universo humano. Não necessariamente àquele universo rente aos precipícios, mas ao diluído nos cotidianos. E sem barreiras. Sem medo, inclusive, do mal. Somos individualmente múltiplos.

E, sim, literatura e poesia libertam. Especialmente quando nos jogam no chão. Haja vista Veias abertas da América Latina, do incrível Eduardo Galeano. Perdida uma (até então) imperceptível inocência, nunca mais fui a mesma. Mas me gosto mais.

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* Francis Kurkievicz é poeta. Publicou pela Editora Patuá o livro de poemas B869.1 k96. Têm colaborado com entrevistas, resenhas, artigos, traduções e poemas em diversas revistas digitais, tais como: Zunái, Acrobata, Arara, Aboio, Escamandro, Estrofe, Memai, Mallarmargens, entre outras publicações.

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente entrevista. Miriam se desnuda para alegria de seus leitores