Mirian Cavalcanti
Conheci a Mirian Cavalcanti numa feira literária em Vitória/ES, FLIC-ES em 2016. Como eu disse a ela naquela ocasião, “foi amor à primeira vista”. Desde então estabelecemos um vínculo não só literário e afetivo, mas também ideológico, já que Mirian é uma ativista progressista da velha guarda, com memória de elefante e olhar escrutinador. Mirian é uma carioca vivendo na serra do Caparaó, em Divino de São Lourenço, desde 1993. Nesse lugar mágico ela tem se dedicado com intensidade a literatura, mas só debutou aos 65 anos, com o romance Confraria Van Gogh, romance cujo cenário principal é uma biblioteca na época da Ditadura Militar. Como ela mesma diz depois desta primeira experiência: “incorporei de vez à minha vida isso de escrever, essa aventura de ouvir personagens que não dão a mínima atenção ao que se tenta determinar para eles”, e desde então, não parou de imaginar mundos possíveis, de ouvir vozes suprimidas, de perscrutar o coração combalido da humanidade anônima. Mirian é organizadora do projeto Ao Pedro II, Tudo ou Nada? memórias dos ex-alunos do famoso Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, atualmente esta coleção conta com cinco volumes publicados. Mirian também ganhou o primeiro lugar no Edital de Publicação da SECULT/ES em 2017, com seu engenhoso romance polifônico Femina, Feminae. Mirian tem seus livros publicados pela Semente Editorial, apenas Rascunhos, seu primeiro livro de poema, foi publicado pela Kotter Editorial.
Francis Kurkievicz: Mirian, como você tem enfrentado a vida em meio a essa surpreendente crise econômica, política sanitária e ética que estamos experimentando hoje, e como tem sido o seu cotidiano e como isso afeta a sua vida e a literatura?
Mirian S. Cavalcanti: Especialmente apreensiva, aflita mesmo, quando
penso nas novas gerações. Recuemos no tempo... Naquele miolo dos anos 50, 60,
70, houve um eclodir de lutas pró-mudanças básicas na sociedade. Quer dizer,
enquanto (falando assim por alto) o final dos 40 e grande parte dos 50 haviam
sido tempos da reconstrução da sociedade e da retomada das vidas individuais, a
partir da segunda metade dos anos 50, a juventude em especial partiu para
avanços maciços na área do comportamento, ao mesmo tempo em que retomava o
coletivo, o político-social como foco de vida. Então, hoje, muito me assusta a
ascensão mundial do nazifascismo. Uma página que, descobrimos, não chegou a ser
efetivamente virada. De repente, me sinto na década de 1930, vivendo a terrível
experiência de ser testemunha disso. Um repeteco de filme de terror.
Daí a preocupação voltada à
geração atual, pois me parece que a luta que recentemente começou a se travar é
mais desigual do que aquela da década de 1930, se considerarmos a facilidade
com que, a partir de algoritmos e fake news, as pessoas têm suas
decisões mecanicamente conduzidas.
Veja bem: nem cheguei a
colocar a pandemia nessa abordagem inicial. Pois essa tragédia, além da clareza
da visão de que a humanidade nunca está dentro do mesmo barco, ela confirma que
não podemos nos dar o luxo da omissão. “É preciso estar atento e forte”, mais
que nunca.
Por outro lado, além do
impacto emocional sobre cada um de nós ante milhares de mortes que poderiam ter
sido evitadas por uma política real de saúde pública, a pandemia afeta bem
diretamente nosso cotidiano.
O isolamento social é meio
como o impacto da morte – a ficha da extensão de uma perda só cai realmente em
um momento mais adiante. Mesmo de início mitigado pela internet e celulares e
chamadas de vídeo, o isolamento não evita que a gente se depare de repente com
a falta irreparável do olho no olho, do toque.
Quanto ao escrever, já
nesses anos recentes eu vinha de uma desaceleração na escrita – e aqui me
refiro aos versos, que são o que me acompanham desde sempre. Mas isso de
perceber a vida se despovoando de modo tão abrupto fez com que voltasse
naturalmente a escrever.
E quando uso a palavra
escrever significa me derramar, pois nada mais é do que isso. Quando não damos
conta do interno, ele dá um jeito de escapulir. Por isso não me preocupo se o
eixo – no caso, imagens – se repete, pois há que se escrever enquanto
determinado tema nos domina, até se desgastar e ficar seco; puro osso.
E houve outra mudança
também, pois me parece que fomos inundados por debates, cursos, entrevistas via
internet, em um grau maior do que antes. E isso passou também a fazer parte
mais da minha vida.
MSC: O distanciamento social, para a minha geração, veio coincidir dolorosamente com a fase em que se vai perdendo amigos, por força natural do tempo. Tenho perdido muitas vidas. E a visão da estrada que se despovoa continuamente se instalou em mim. O que se torna especialmente cruel, pois partidas que aconteceriam como naturais da vida acabam nos soando como se antecipadas – e no caso do Brasil pode-se realmente pensar assim; muitas foram antecipadas. Então, o sentimento é de raiva, decepção. Sinto que a urgência de fechar determinadas pontas soltas ganhou uma dimensão duplicada, triplicada… Urgência. Mas uma urgência paralela a portas fechadas, estradas barradas, atalhos quase impossíveis. Esse, o peso extra com que não contávamos.
FK: Os novos hábitos durante esta pandemia, de
alguma forma, impulsionaram a busca pela poesia, a poesia nunca ficou tão
exposta, tão necessária neste momento. Você tem essa mesma impressão? Você
acredita que a poesia, ou a literatura de modo geral, neste momento traduz a
inquietação humana?
MSC: A respeito daquilo de se derramar o que não é
possível conter ou compreender do interno. Sim. E também pela certeza da
finitude – a única que se tem. Mesmo que sem data marcada, ela passa a nos
rondar mais de perto. A nós e aos do nosso universo afetivo. E o isolamento
imposto acaba sendo mais um fator a nos impelir à escrita. Escrever é, de certo
modo, uma busca por se tentar entender o que está em estado bruto dentro de
nós. Por isso, também, certos temas e mesmo imagens literárias são recorrentes.
Escrever é rascunhar o incompreensível. E o momento atual é o do assombro, da
perplexidade.
MSC: Na pergunta, duas palavras atuais: urgência e
temor. Não apenas no tocante à pandemia. Ampliando o foco do estritamente
pessoal, as notícias são preocupantes.
No tocante à poesia atual,
lembro de imediato da carioca Cintia Barreto, cuja poesia mereceu texto de
Thiago de Mello. Ela é (entre seus mil talentos) uma escritora de alma
múltipla. E me levou, inclusive, a redescobrir Adélia Prado.
De mais recente, li o
paranaense (já quase capixaba) Francis Kurkievicz, com seu recém-publicado B869.1
K96. Pois esse título intrigante revela uma temática densa mas, sem abrir
mão do conteúdo, surpreendentemente transparente.
Ainda nesse universo
capixaba, mais três nomes: Tamyres Batista Costa, Aline Maria e Laissa Gamaro.
Excetuando Tamyres, que tem conto publicado em e-book, Aline e Laissa
manifestam suas poesias a partir de letras de música.
Em Tamyres, a palavra
urgência ganha um significado bem específico. Urgência de palmilhar cada dor,
de repor cada perda. Em Aline e Laissa, a urgência de viver, sem barreiras ao
por descobrir.
Cinco nomes atuais, que
atiçam o prazer da leitura; leituras que nos ficam como perfume.
MSC: Sou pouco racional e bem caótica, daí, nem
tenho chance de decidir sobre o que escrever. Tudo surge inesperadamente, e
muitas vezes nem muito definido se poesia ou eixo de algum conto ou romance.
Por exemplo, duas poesias, “Femina, feminae” e “Awaca”, acabaram dando origem
ao romance Femina, feminae – Caetana Joana Isabel Ana. Os miolos de
ambas se amalgamaram e foram se desdobrando e encorpando e gerando perfis
femininos. Estou chegando à conclusão de que, no tocante a essa pergunta, a
palavra caos aninha todas as respostas.
Não tenho também método de
trabalho na escrita. Tempo físico?, nem falar. Qualquer nicho de manhã tarde
noite madrugada pode ser precioso. Agora, quanto a método, o que acontece
especialmente em termos de romance é que quando a ideia surge, ela vem aos
pedaços, partida, e depois é que vou identificando a posição no conjunto. Já bem
no final é que salvo como abertura, epílogo, e busco ter uma ideia de possíveis
buracos no miolo.
Todos os gêneros me atraem
com a mesma intensidade, seja como leitora seja no que escrevo.
MSC: Ah… são muitos os preferidos… A começar pela
Cecília Meireles; desde quando adolescente. E Fernando Pessoa. Drummond,
Bandeira. E Manoel de Barros e Cora Coralina.
Fernando Pessoa foi lido na
adolescência, e nesse sentido de “ensinar coisas que a vida nos sonega…” o
impacto causado por ele me acompanhou vida afora. Daí, mais recentes, Manoel de
Barros e Cora Coralina. Uma puxada de tapete! São o “como assim?” pra minha
sensibilidade. Agora, a Cecília, o Drummond e o Manuel Bandeira abriram portas
e janelas no que sou, traduziram abstrações. E trouxeram ventos do mar,
silêncio, doçuras, espantos. Fiquemos por aqui. Sem lembrar dos poetas da nossa
música popular. Aí, então...
MSC: Os primeiros versos aconteceram como é comum: na
adolescência. E segui escrevendo pelo resto da vida. Escrita que era o meu
diário, por isso não pensei nunca em publicar. Mas algumas coisas eu gostava
com um certo chamego, e comecei a embutir em pensamentos de personagens ou
mesmo em aberturas de capítulos de romance. Até que, por força de um conto
incluído em antologia da Kotter Editorial, fui convidada a apresentar um
original para possível publicação. Aí pensei no que viria a ser o Rascunhos.
Mais como um teste. E quando foi aprovado não deu para recuar. E acrescentei um
subtítulo pra me deixar mais confortável nisso de publicar “poesia”… Rascunhos
– Exercícios do olhar poético. Que é como vejo o que escrevo.
Agora, difícil é determinar
qual, daquele conjunto, representa minha fala poética… Talvez pela recorrência,
que acaba por acompanhar o amadurecer do meu olhar, possam ser os “Outono,
quinta-feira santa”. Mas poderia ser também “Um milhão de portos” ou “Brejo e
trilhas”. É. Talvez “Brejo e trilhas”.
MSC: Levei
alguns anos escrevendo o Femina. A partir de duas poesias, como falei
antes, acabei mergulhando no tema do silêncio como bagagem feminina, geração
após geração. Isso porque sinto uma atração irresistível por esse desdobrar de
heranças vida afora. Os personagens, em especial as mulheres, foram me
surpreendendo com seus segredos, com suas dores engessadas, incompreensíveis
até para elas. E posso dizer que caminhei com cada uma. Os insights
ocorriam simultaneamente aos personagens e a mim, frente ao computador. Aí eu
parava de digitar e ficava em silêncio olhando a mata. Precisava de tempo pra
sentar a poeira do que me parecera uma hecatombe ou um farol.
A cena da abertura, por sua
vez, foi escrita de uma só vez, a partir da imagem de uma das personagens
girando a cabeça para olhar a lua e depois girando, braços abertos, ao luar.
Logo senti que ali estava a abertura. O epílogo, que seria em princípio apenas
o desenvolvido na poesia “Awaca”, foi acrescido da síntese de parte de três dos
cinco personagens. Cinco de três… Agora é que me dei conta disso. Uma escolha?
Me parece que não. As duas personagens avós e a neta. Alfa e ômega.
Tenho apenas dois romances
publicados, e cada um deles me trouxe um prazer diferente na escrita. O Femina,
feminae proporcionou o prazer de mergulhar no psiquismo feminino mas de um
modo não didático, não sei se poderia falar assim… de um modo de ir caminhando
com as personagens e ir percebendo com elas suas dores, medos e coragens. E
outra grande satisfação foi a criação da parte interna das capas, com fotos de
mulheres tanto de meu mundo afetivo como mulheres que despertam minha
admiração, por uma infinidade de motivos. Lá estão representadas diferentes e
opostas histórias de vida e posicionamentos políticos, por exemplo. Gostei muito
disso.
Agora, quanto à recepção,
tenho tido relatos de identificação e descobertas, em especial de parte de
leitoras. Inclusive uma bem interessante, que foi a que revelou o despertar de
um olhar diferente também ao mundo masculino.
MSC: Considerando que quem escreve o faz a partir de
uma necessidade pessoal, e, creio, não pense propriamente no leitor enquanto
escreve, um tal contato posterior é imprescindível. Conheço vários dos que
leram o que publiquei, de modo que esse é um contato natural, facilitado, já
que transitam nas mesmas paisagens que eu.
Me é bem valorosa a visão e
reação de cada um, até por que se trata de pessoas diferentes umas das outras.
Esse retorno pode nos revelar possíveis pontos obscuros no texto – não
intencionais – ou mesmo cenas merecedoras de novos ângulos, enriquecedores.
Lido com isso com acolhimento e simpatia. No Femina, por exemplo, alguma
revisão será feita na reedição. Já no tocante ao Confraria Van Gogh – A vida
secreta de um livro de biblioteca pública, para a reimpressão em 2022,
acabei estendendo o enredo até o século 21. A curiosidade de duas leitoras
acabou me proporcionado uma alegria imensa, que foi a de acompanhar os
personagens por um tempo mais em suas vidas. Amadureci com eles.
MSC: A poesia é um modo de vida na medida em que
oportuniza um constante mergulhar interno. E esse exercício de colocar em
palavras algo que muitas vezes ainda se encontra em estado de abstração ajuda a
nos conhecermos um pouco além do que os espelhos nos mostram. Porque esse
mergulhar talvez traga mais perguntas que respostas. Reler o que se escreve é
algo excelente. Às vezes me surpreendo. Ou me reconecto a percepções quase
perdidas.
Penso agora que nesse
sentido de a escrita ser um modo de vida, talvez haja uma diferença entre
poesia e prosa.
Enquanto a prosa nos abre
horizontes ilimitados, na poesia tem-se continuamente o exercício da síntese.
Isso é bem desafiador. Alcançar o osso, como gosto de dizer. Desbastar,
desbastar, desbastar!
Quanto ao que o escritor
precisa saber, creio que ter a sensibilidade voltada ao universo humano. Não
necessariamente àquele universo rente aos precipícios, mas ao diluído nos
cotidianos. E sem barreiras. Sem medo, inclusive, do mal. Somos individualmente
múltiplos.
E, sim, literatura e poesia libertam. Especialmente quando nos jogam no chão. Haja vista Veias abertas da América Latina, do incrível Eduardo Galeano. Perdida uma (até então) imperceptível inocência, nunca mais fui a mesma. Mas me gosto mais.
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* Francis Kurkievicz é
poeta. Publicou pela Editora Patuá o livro de poemas B869.1 k96. Têm colaborado com entrevistas, resenhas, artigos, traduções
e poemas em diversas revistas digitais, tais como: Zunái, Acrobata, Arara, Aboio,
Escamandro, Estrofe, Memai, Mallarmargens, entre outras publicações.
Um comentário:
Excelente entrevista. Miriam se desnuda para alegria de seus leitores
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