13/10/2024

Dois anos sem Jeanne Bilich.


Jeanne Bilich (1948-2022)

Há dois anos, no dia 27 de março, a escritora Jeanne Bilich nos deixou. Faleceu em sua residência, na Praia do Canto, em Vitória, deixando uma obra literária e jornalística de grande valor. A Dama do Jornalismo Capixaba, trabalhou como apresentadora, redatora, radialista e assessora de comunicação nos mais destacados veículos de comunicação do Espírito Santo, além de também ter se dedicado à advocacia. Tenho a alegria de ser sua sucessora na cadeira de nº 7 na Academia Espírito-santense de Letras. No momento tenho me dedicado as crônicas de Jeanne na minha  pesquisa de pós-doutoramento. Espero, em breve, apresentar o meu olhar sobre a sua escrita aos "sagazes leitores". Esse texto, de minha autoria, foi publicado, primeiramente, no Jornal A Gazeta.  

Jeanne Bilich nasceu no Rio de Janeiro, no dia 12 de outubro de 1948, ela veio para o Espírito Santo com a família após o falecimento de seu pai, na década de 1960. Aluna no internato do Colégio do Carmo e, posteriormente, estudando no Colégio Estadual, Jeanne se formou em Direito pela UNESC, em Colatina, em 1975. Ela fez mestrado em História Social das Relações Políticas, na UFES, e defendeu a dissertação intitulada “As múltiplas Trincheiras de Amylton de Almeida: o cinema como mundo, a arte como universo”, que foi publicada em 2005. 

Jeanne Bilich surgiu no cenário jornalístico capixaba na década de 1970 e fez história sendo a primeira apresentadora do Telejornal da Rede Gazeta, em 1976. É sabido que a hierarquia de gênero faz parte da história de muitas profissões, inclusive do jornalismo. A determinação e a competência de Jeanne contribuíram para a feminilização dessa profissão majoritariamente exercida por homens, na sua época. As conquistas da jornalista também se estenderam para o campo da literatura. No dia 10 de junho de 2013 ela foi eleita para a cadeira nº 7 da Academia Espírito-santense de Letras. A escritora tem uma produção rica em textos para sites, ensaios, coletâneas. Ela possui dois livros de crônicas,  Zeitgeist – O Espírito do Tempo (2009) e Viajantes da nave Tempo (2013). Na obra Zeitgeist, a crônica intitulada "Transgressão às regras da boa crônica”, descreve a existência dos “Cadernos de Anotar Vida”, ou seja, uma coletânea que começou a ser escrita em 1972 e que, na época, já contava com “26 volumosos tomos”, “hemorragias gráficas" que segundo revelação da autora, a impulsionaram para a pesquisa e, que mais do que instrumentos para “mapear a alma” e "autoconhecimento", serviam para “diluir raiva, frustração, mágoas ou ressentimentos”. Jeanne Bilich foi a primeira mulher a ocupar a cadeira de nº 7, na AEL, cujo patrono é José Fernandes da Costa Pereira. A escritora Josina (Jô) Drummond afirma que "há uma porcentagem mínima de mulheres na AEL: 13 entre 150 acadêmicos”, sendo que, ocupando o lugar de presidência, apenas duas, Maria Helena Teixeira de Siqueira, já falecida, e, atualmente, Ester Abreu Vieira de Oliveira”. No artigo intitulado “Mulheres notáveis na Academia Espírito-santense de Letras”, Drummond destacou, ainda, que das 40 Cadeiras existentes, apenas uma, a de nº 32, possui uma escritora como Patrona, a poetisa Maria Antonieta Tatagiba. As mulheres estiveram presentes na produção jornalística e cronística do Espírito Santo desde o final do século XIX, de forma reduzida ainda e, muitas vezes, as publicações eram assinadas com um pseudônimo, entretanto, essas contribuições, nem sempre foram valorizadas ao ponto de alcançarem destaque nos registros historiográficos. A década de 1970, época que Jeanne Bilich surgiu no cenário jornalístico, foi avivada pela crítica feminista e pelos os estudos culturais, quando as mulheres puderam exercer maior liberdade nas profissões ligadas à escrita.

Lanço um olhar sobre a obra Zeitgeist: o Espírito do tempo, de 2009, que reúne 56 crônicas publicadas no Caderno Dois do Jornal A Gazeta, entre os anos de 2007 e 2009. 

“Interativo leitor”, como Jeanne se refere às pessoas que aceitam compartilhar das suas “mais íntimas e até publicamente inconfessáveis impressões, emoções, pensamentos e análises”, ao iniciar a leitura, você será inserido em um espaço onde as certezas não são absolutas: “Duvidar é preciso”. É parodiando Fernando Pessoa e citando na epígrafe Dom Quixote de la Mancha; “O que preferes; a loucura sábia ou a sanidade tola”? que a escritora pergunta, na crônica que abre a obra: “Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado de espírito? Não sei! A escritora destaca que esse "peremptório” “Não sei”, veio das primeiras crônicas que Clarice Lispector escreveu para o Jornal do Brasil. A crônica de abertura de Zeitgeist: espírito do tempo, chamada “De Mestras e ousadas aprendizes'', nos apresenta uma Jeanne surpreendida com a missão de cobrir as férias da escritora Bernadette Lyra no Caderno Dois do jornal A Gazeta. Essa deliciosa leitura descortina o rico campo de diálogos que envolve essa obra e o vasto cabedal de leitura da escritora. A cronista destaca o relevante papel das “Mestras” Bernadette Lyra e Clarice Lispector na sua história pessoal e para o campo da escrita cronística, e topa iniciar a “aventura” que a levará para “inovadoras trilhas”, que ela percebe já estarem se tornando muito pessoais. A escritora deixa clara a sua determinação, e que pretende não sucumbir ao medo, pois é impulsionada pela “coragem” e pela “ousadia” para “voos incertos” e “desafiantes”. 

Clarice Lispector e uma miríade de outras personalidades mundo afora, entre elas escritores(as), pensadores(as), cineastas, músicos, bem como personagens de livros e de filmes, são convidados para o seu banquete de ideias. Amylton de Almeida, A.A, “maior crítico de cinema que o Espírito Santo já produziu…”, é tratado com doçura e, para Jeanne, ele permanecerá, mesmo após o seu falecimento, “inesquecível”, uma presença afetiva importante “entre nós, [...] Pelo menos nos corações e nas mentes de quantos o amaram. E admiraram” (“O Bergman de cada um de nós”). Na escrita cronística de Jeanne Bilich há um dialógico com o Espírito do Tempo expresso pelo embate entre a modernidade que promoveu a “ruptura com o passado, as tradições que vinculam as nossas experiências pessoais às das gerações passadas” e a solidez de um outro tempo, esse de fluxo menos acelerado. Viver nesse limbo, - “Eis o enigma” -, refletir sobre tais contradições é a proposição da crônica “Navegando no presente continuo”. O tempo é o mar desafiado e percorrido pela cronista, nele, o sujeito da escrita experimenta “a estranha sensação de vertigem” e, por vezes, o medo do naufrágio, “redemoinho” que “já ameaça a nossa sanidade mental e até as identidades". Essa profusão de eventos submerge o ser num “caudal de fatos factóides, celebridades, internet, tecnologia high-tech, comportamentos bizarros, cascatas de imagens multicoloridas, enlaces e desenlaces (profissionais e amorosos) instantâneos. Fugacidade”. Leitora de Zygmunt Bauman, pensador que captou o caráter volátil da “modernidade líquida”, e de Eric Hobsbawm, historiador britânico autor de “A Era das revoluções" e que problematizou a revolução industrial, Jeanne completa a sua tríade, inserindo na mesma crônica “o velho Marx: Tudo que é sólido se desmancha no ar”. 

Observamos que o sentimento de estar à deriva, “mal-estar, insegurança, ansiedade”, faz emergir a saudade “dos velhos tempos, bons e sólidos tempos”, mas, destaca a autora, é certo que “felizes, ou infelizes”, “o calendário biológico avança”, restando ao sujeito singrar como Ulisses, em busca de sua Ítaca. “Saber envelhecer” é uma crônica na qual a escritora revisita a infância e se lembra que os seus olhos de menina viam “as pessoas de idade como livros volumosos, plenos de histórias e saberes”. “Defrontar-se com o próprio envelhecimento” e suas reações a faz tecer uma crítica sobre a mercantilização da vida. Para a Jeanne, o termo “terceira idade” não é agradável, ela prefere “idoso”, ou mesmo “velho”, porque são designações que não alijam a pessoa do vivido, não as despoja da “experiência, valentia e garbo de haver vencido as etapas cronológicas anteriores”. Cada crônica, como bem destacou Rodrigues, é um “portal”, por onde o leitor pode, de acordo com o seu desejo, penetrar mais profundamente. Há, ainda, em Zeitgeist, uma profusão de elementos que remetem para o sutil, espiritual e, por que não, para o esotérico? Não é à toa que a escritora, entre os pensadores com quem dialoga, insere Carl Gustav Jung, autor que fez uma cartografia singular da psique humana, descrevendo-a como território habitado por uma profusão de arquétipos, muitos deles antiquíssimos. Esse portal muito me interessa e o seu guardião é um gato persa de fina estirpe, Nietzsche, “nigerissimo”, “com olhos de farol, sábio e reflexivo amigo”. 

Quando penetramos no campo dos símbolos e da magia, assim como guiados pela deusa Hécate, nos surpreendemos com a experimentação de um outro tempo, um tempo cíclico, mandálico, no qual “já fomos essas crianças de hoje, Depois? Rebeldes adolescentes, desafiantes jovens, adultos responsáveis; e, na maturidade, arcamos com pesados fardos. Imersos no incessante “contínuum” das elipticas”. Na crônica “O círculo do Ouroborus”, vemos o símbolo que “representa o ciclo da vida”, - a serpente mordendo a própria cauda -, constelar, como diria Carl Jung. No panteão grego, a deusa Hécate, arquétipo tríplice, - criança,  jovem e anciã- , atuava tanto no mundo dos mortos, como a padroeira a quem os cidadão recorriam para serem livrados dos perigos e das maldições, quanto no dos vivos, regendo nascimentos e processo de renovação. Essa deusa possui alguns epítetos, um deles é Propylaia, que significa aquela que fica na frente do portão, por isso o seu culto era, muitas vezes, realizado em portões e portais de entrada, onde estátuas eram colocadas em sua homenagem. Outra designação é Phosphoros, ou seja, aquela que traz a luz. Filha de Nyx, a Noite primordial, ela era a única deusa portadora de duas tochas, que trazia nas mãos.  Vida e morte, duas pontas de um mesmo fio, são poeticamente trabalhados na crônica “O filho herdado” que, não por acaso, ao rascunhar o texto, cometi o ato falho e chamei de poema: “nesse poema…”. Nesse texto vemos a assinatura de Jeanne como cronista. O “locus despido de autocensura”, “íntimo” e “personalíssimo” que ela nos convida para entrar é um cadinho de emoções. O ano é 2009 e Jeanne recorda que, em 1995, no dia 12 de outubro, seu aniversário de 47 anos, era realizada a “cerimônia de adeus” de seu querido amigo Amylton de Almeida: “amizade tão estreita e rica, que nos atou num laço inquebrantável ao longo de três décadas: dos meus 16 anos, e ele aos 18 anos, até aquele funesto dia”. Entretanto, afirma a escritora, “coincidentemente?”, “Presente dos deuses ou derradeiro ‘mimo’ de despedida de A,A.?”, mas o fato é que nesse dia, ela afirma ter "herdado'' o filho de Amylton de Almeida, o escritor Sidemberg Rodrigues.  “Misteriosos os meandros da vida”, afirma Jeanne: “a vida é regida por correntes mais profundas e por uma magia impenetrável” que o pensamento não consegue alcançar, apenas os sentidos. “Cargas ao mar”. De forma “consciente” ou "inconsciente", a preparação para a “ancoragem suave no desconhecido porto” vai se desenhando. O retorno à crônica “O círculo do ouroboros”, revela que a escritora havia completado 60 anos logo após prestar o seu "particularismo Vestibular para a Velhice". Observamos que o campo foi preparado para uma confissão, e a cronista alerta ao leitor que “é de uma franqueza cortante. [...] Bela Virtude, grave defeito”, ela confessa que recusou “botox”, “lipo”, “silicone”, etc., preferindo observar “a geografia que se desenha no seu rosto e corpo”. Essa escolha de vida, na contramão das cobranças sociais a que comumente estão sujeitas as mulheres, a levou a um momento sublime, quando percebeu que os dedos da “estreante velha” se entrelaçam amorosamente aos da “menina Jeanne”, “isenta de culpas, mágoas ou ressentimentos" e que “À alma felina,- independente e libertária - amalgamou-se à leveza dos beija-flores que fazem sorrir as orquídeas na janela”. 

A crônica "Zeitgeist ou espírito do Tempo” evoca as palavras de Virgínia Woolf em Orlando: “poder-se-ia ver o espírito da época soprando, ora quente, ora frio sobre as suas faces”. Para Jeanne há algo de indizível neste termo do idioma alemão que é “quase mágica”. O escritor João Batista Herkenhoff, analisando essa mesma obra, pergunta: “Qual é esta essência que Jeanne Bilich persegue no seu livro?”, e chega ao parecer de que “é aquela [essência] que se alcança quando se tem a sensibilidade de perceber os fios que tecem a História, que ligam os seres humanos ao seu destino comum”.  Acredito que a magia da obra de Jeanne está na conjugação entre consciência histórica, capacidade de maravilhamento e contentamento nas coisas simples, algo possível apenas às almas sensíveis. Jeanne Bilich, deu significado ao seu viver e descansou em paz, após ter amealhado um tesouro: “amigos diletos, paredes revestidas de livros, o gatinho Nietzsche e você, fiel leitor dominical".  

 

Renata Bomfim

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