Marechal Floriano, ES, 19 de fevereiro de 2021.
Querida Irmã Cleusa Carolina Rody,
Que a paz de Deus esteja com a Senhora. Aqui do vale de provas e expiações, onde me encontro, elevo os olhos até o horizonte e vejo uma luz tênue e difusa. O coração entoa uma prece ao altíssimo e uma onda de calor inunda o meu corpo. Estranho amor esse que grita ansioso dentro de mim fazendo vibrar as entranhas. Que contradição ser bruta, ácida e ansiar a brandura e pureza do lírio. Talvez, haja pureza dentro de mim, talvez sejamos todos puros quando nos colocamos sob os cuidados do amor: amor-tempo, Irmã.
Escrevo para que saiba que sempre é lembrada com carinho por aqui, na terrinha, especialmente pela sua amiga próxima no trabalho do bem, a irmã Maria Josefina. A comunidade que leva o seu nome, segue firme e é interessante que o bairro onde ela se encontra se chame Padre José de Anchieta II. Anchieta foi canonizado pelo Vaticano em 2014, e a senhora, em processo de canonização, poderá se tornar a primeira santa capixaba. Interessante, também, a ligação da Senhora e de São José de Anchieta com o Espírito Santo, refiro--me, nesse caso, ao Estado, e às artes. São José de Anchieta fez formação em Letras, em Portugal, antes de vir para o Brasil, ele era um conhecedor do teatro de Gil Vicente. Chegando por aqui, tornou-se dramaturgo, gramático e poeta. A Senhora também tinha inclinação para as letras, pois cursou Letras-alemão na Universidade Federal do Espírito Santo e, fluente em espanhol, inglês, francês italiano e alemão, ajudou a muitos, sobretudo, aos estrangeiros, muitos deles imigrantes sem família, totalmente desassistidos.
Conversei com o Wanderli e ele disse que os membros da Paróquia estão bem, seguem driblando a crise com fé e trabalho duro. Irmã Cleusa, preciso dizer que uma pandemia terrível assola o mundo neste momento e que aqui no nosso Espírito Santo, assim como em todo Brasil, é grande a dor e o desespero de quem perdeu amigos e familiares. À reboque nesta tragédia sanitária, vem a crise política e social, há desemprego e desesperança. Mas a caridade tem brotado e se fortalecido, e aquele(a) que pode ajudar ampara os irmãos mais necessitados. Sim, o cenário é de crise, a devastação ambiental ameaça biomas inteiros, sob os olhares complacentes e criminosos dos poderosos.
As comunidades buscam se fortalecer e fazem frente a esse horror, especialmente as comunidades tradicionais e os indígenas apurinãs que a Senhora tanto amou. Irmã, o ser humano esqueceu que é feito de terra, que é húmus e agride a Mãe Natureza de forma vil e inconsequente, parece que perdeu endereço de si mesmo, ele viola a sua pátria interior, devastando o seu mundo íntimo. É o medo, camuflado sob a máscara do ódio, que cega as pessoas para a verdade: somos interdependentes!
Lembro ainda, na minha memória de artista, do dia em que um
grupo de homens desgarrados chegou à Capitania do Espírito Santo, vi nos seus olhos a mesma
fome que devorava
as entranhas dos colonizadores dos paraísos, onde o tempo
não existia. Chegaram alterados, buscando riquezas
e interpretaram a nudez do índio
da
pior maneira, julgaram
que eles eram pobres e desprovidos de tudo. Que arrogância, não é, irmã? E esse menosprezo
transformou-se em desrespeito e eles passaram a cometer variados
tipos de atrocidades e violações. Um salto temporal me traz de volta ao século XXI, parece que foram apenas alguns
dias, pois pouco mudou.
Falo ao teu espírito-memória, Irmã Cleusa Carolina, como uma amiga muito próxima fala à outra amiga. Busco forças para vencer o
destino e me afirmar humanamente, vivendo na poesia. Conhecestes bem a indiferença produtora de marginais e miseráveis da sociedade, é inacreditável que, nessa terra fértil e ensolarada, quase sempre é noite para aquele que passa fome, e que
as estrelas ameacem despencar sobre a cabeça dos desvalidos do mundo. A vergonha foi expulsa
do seio da sociedade, vive-se como se nada disso acontecesse. Como transformar
a revolta em amor-ação? Jesus, o
nosso mestre e guia querido, trouxe-nos a lei do amor e pediu que fizéssemos da vida um ato de devoção ao próximo.
Um dia desses tive um sonho. Uma criança
brincava correndo por ruas esburacadas e sem calçamento. A despeito dos buracos, ela sorria exibindo o
seu vestido de flores
amarelas. Assim que acordei,
o primeiro impulso foi pedir a Deus que aquela menininha
nunca deixasse de sorrir e que a violência e o preconceito não a alcançassem.
São tantas meninas e meninos por este Brasil que necessitam de cuidado, de proteção,
pão, lar, amor, são os filhos do calvário. A Senhora
foi acusada de “acobertar trombadinhas”, quando passou a levar para casa várias
crianças que dormiam
nas praças. À noite, dignamente acomodadas, elas tomavam sopa quentinha
e estou certa de que algo dentro delas
se refazia, assim como sinto
algo se refazendo dentro de mim, enquanto teço estas linhas.
Sabe, Irmã Cleusa,
eu amo gatos. Tive 50 gatos quando morei
no morro da Boa Vista.
Na verdade, eu tinha seis gatos, mas a notícia
de que tinha uma “mulher
doida” que amava gatos fez o morro famoso e, literalmente, passou
a chover gatos
no meu quintal. Por vezes, eles jogavam os gatos por cima do muro, noutros momentos, deixavam eles em caixas no portão, e assim foi, até que completei 50
gatos. Eu, que me restabelecia de um acidente automobilístico, nem tinha tempo
de sentir dor e, entre as sessões
de fisioterapia, encontrava um jeito de castrar, alimentar,
fazer a limpeza do ambiente, essa rotina durou
cerca de um ano. Decorrido esse tempo, precisei mudar para um apartamento, mas consegui encaminhar cada um dos gatinhos para a adoção,
ficando com os seis gatos
que tinha originalmente. Lembro dessa história porque quando amamos, por vezes,
somos considerados loucos e nos sobrevêm
responsabilidades que, às vezes, não deveriam ser apenas nossas. A Senhora
amou os irmãos indígenas de uma
forma intensa, ao ponto de envolver-se irremediavelmente com os seus dilemas, muitos deles seculares como a opressão do mais forte sobre o mais fraco. Quando foste para Lábrea,
conhecias o tamanho do desafio, a pressão que os latifundiários exerciam
sobre a floresta e sobre as populações originárias era de um furor assassino.
Mas fostes.
Fecho os olhos e imagino a beleza do pedaço de chão amazônico, único no mundo, com floresta densa, igarapés, lagos. Lutar pelo indígena e pela floresta contra o desmatamento e o extrativismo predatório fizeram da Senhora uma pessoa mal vista por ali. O seu esforço foi contínuo e a sua entrega, até o momento final, foi marcada pela coragem. Sinto, Irmã, um calafrio e o mover das entranhas quando imagino aqueles momentos assombrosos, terríveis, mas sei que nunca estivestes só, o Altíssimo lhe cobria com as suas asas. E hoje compreendo que algumas almas possuem a capacidade de se entregar de forma ilimitada a um ideal e essas almas nos inspiram, então buscamos ser melhores e mais justos: a humanidade é construção e conquista. Bem, voltando aos felinos, antes dos 50 gatos, eu já defendia os animais da temível carrocinha. Quando a carretinha da morte passava pelo bairro, eu dava um jeito para que ela não encontrasse os cães de rua, e quando eram pegos, eu me dirigia à zoonose para resgatá-los e para que não fossem sacrificados. Passados alguns anos, esses cuidados se estenderam para os animais silvestres, e hoje eu e o Luiz cuidamos de muitos animais da floresta, especialmente dos macacos-prego-de-crista e às abelhas Uruçu Capixaba, endêmica e ameaçadas de extinção. Aos gatos e cachorros se juntaram os macacos, as abelhas e pássaros, tatus, jacupembas, lagartos, um mundo de vida e de luz que faz parte da Mata Atlântica.
O que faço é nada, uma gotinha no oceano, mas aquece o meu coração essa ação miúda. Não se trata de seres humanos, são animais, mas eles estão sujeitos à opressão semelhante àquela sofrida pelos nossos irmãos indígenas: a perda de seus lares, familiares, da liberdade e, muitas vezes, da própria vida. Eles são retirados do convívio familiar na mata, caçados, mortos, vendidos, explorados e essa violência é silenciosa, pois, para muitos, eles não importam, “são apenas animais”. Mas, para mim, eles são tudo, são os filhos que não gerei. São os meus filhos!
É surpreendente a incapacidade humana de lidar com paradoxos e antinomias. É fato que, ainda hoje, matam e morrem pela terra, mas Gaia não pertence a ninguém, ela pertence a todos os seres, vive-se como se a morte não existisse. Acredito que a finitude é o maior segredo da humanidade a ser descoberto. O indivíduo sabe que a morte virá um dia, mas pensa que não virá para ele e, assim, passa a vida construindo castelos para se isolar, cercado de luxo, explora o (des)semelhante, pois julga-se no direito, por acreditar-se esse ser acima da lei da vida, ou seja, não sujeito à morte. Mas esse indivíduo, um dia, descobrirá que os anos passaram e que ele é o mais pobre entre os pobres, pois possui apenas muito dinheiro. Irmã Cleusa, Jesus alertou para isso, ele pediu que não ajuntássemos “tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam”. Quando seremos capazes de compartilhar os nossos tesouros de amor e de solidariedade?
A Mata Atlântica é um bioma que resiste há mais de cinco séculos à destruição sistematizada e contínua, mas o pouco que resta dele precisa ser preservado, a pressão é muita. Cantam por aqui os sabiás, saíras das mais variadas cores, tucanos e um passarinho especial entre muitos, o meu Trica-ferro. Dizem que ao serem aprisionados, muitos pássaros entram em processo depressivo, é sabido que suas asas atrofiam, acredito que pássaro na gaiola, canta é de desgosto. Durante esses anos, pude observar que os pássaros que chegam para serem soltos na Reserva Natural Reluz levam um tempo para se adaptarem à liberdade, ensaiam pequenos voos e, somente depois de um tempo, entram para mais longe na mata. Deve doer sustentar por muito tempo o voo após anos de paralisação forçada, então, eles passam um tempo experimentando a si mesmos. É lindo ver como eles ficam batendo as asinhas no galho, como fazem os filhotes que estão aprendendo a voar. Nós somos assim também, precisamos abandonar gaiolas como o egoísmo e a ganância e experimentar as asas da liberdade que Deus nos deu.
Irmã Cleusa, a Senhora viveu na Amazônia e, pertinho do Rio Purus, os seus olhos se fecharam para esta vida. A Amazônia nos permite vislumbrar o paraíso. Árvores centenárias elevam seus galhos para o céu, como se fossem braços buscando alcançar a eternidade. É milagroso ouvir a melodia que atravessa esse rincão verde-escuro, sentir o perfume das flores mais exclusivas.
O uirapuru
potente lança o seu grito
e não podemos ignorá-lo, o seu grito
deve ser o nosso
grito! Há 36 anos, a Senhora foi assassinada brutalmente, mas o seu
martírio e morte lançam luz sobre a necessidade de que continuemos lutando
pela vida, pela democracia, pelo direito de existência do próximo, seja ele humano
ou animal. Infelizmente, a desigualdade
persiste, muitos irmãos
e irmãs se esgueiram pelos becos do craque, vagam como zumbis em busca de uma
palavra de amor, de aceitação. Tornamo-nos uma
sociedade narcótica e alienada, a percepção
da realidade está comprometida e há pessoas
imaginando que, com armas, promoverão a paz. Aqui na
Ilha, o vazio fez da Ponte um trampolim, e das estradas, corredores da morte.
A Senhora deixou um legado de amor na Missão da Prelazia de Lábrea, testemunhamos o poder da simplicidade e de um coração que se entrega sem esperar receber nada em troca: pobres, presidiários, ribeirinhos indígenas, os mais vulneráveis e sofridos da sociedade encontraram, e ainda encontram, forças no seu exemplo de fé.
Um dia era o teu aniversário e pediste a Deus, como presente, que pudesses se doar ao mundo, que pudesses “te comprometer com o índio, o mais pobre, desprezado, explorado”, Deus lhe concedeu a graça desejada, desejos de luz. O pássaro mágico continua cantando, convidando todos e todas para as bodas do Cristo Cósmico. A vida verdadeira se reconhece humanamente falível, mas se fortalece no coletivo.
Irmã Cleusa, tenho bordado: flores, pássaros, pessoas, besouros, casinhas, rios, acredito que seja possível reconstruir o mundo por meio do bordado. A irmã Maria Josefina também borda, e sinto que, juntas, bordamos uma saudade incrível da senhora, do seu sorriso e da energia de amor que emanava do seu coração e contagiava a todos que estavam ao seu redor. Bordamos celebrando a vida. Deus permitiu que estivéssemos aqui, nesse momento, pelo seu amor e pela sua misericórdia, e não precisamos fazer mais nada além de amar. Bem, a senhora soube amar plenamente, mas eu sou, ainda, uma aprendiz.
Daqui onde estou, vale de provas e expiações, os meus olhos de poeta enxergam para além do sofrimento, vejo um horizonte de paz. Sim, há ódio, miséria e dor, mas a esperança se renova a cada dia e lutamos e lutaremos contra o ódio e o egoísmo com as armas do amor: fé, perseverança e caridade.
Que a paz de Deus esteja com a Senhora, irmã querida.
O
meu coração entoa uma prece ao altíssimo, grata pela vida. Amém!
O uirapuru canta, mas quem estará disposto a escutá-lo? Carta para irmã Cleusa Carolina Rody Coelho. Texto da poeta e ambientalista capixaba Renata Bomfim. Originalmente publicado no livro Cartas femininas: por uma escrita afetiva. ISBN: 978-85- 7772-550-2.
2 comentários:
Querida Renata,
Que carta!
Confesso que chorei copiosamente!
Muita emoção e muita alegria ao perceber o carinho e respeito pela irmã Cleusa e pela vida .
Muita luz!
Beijos
Estimada Renata,
Quantos sentimentos de ternura nessa carta. E esses lindos bordados?
Postar um comentário