01/09/2025

A MULHER QUE DESCOBRIU A PRIMAVERA: CARMÉLIA MARIA DE SOUZA, FORÇA QUE NASCE DA TERNURA ( Renata Bomfim - parte 3)


Carmélia Maria de Souza aos 2 anos de idade.

A inserção de Carmélia no mundo da crônica aconteceu no tempo que ela ainda era estudante e escrevia para a revista Comandos, do Colégio Estadual do Espírito Santo. É de 1954 a crônica “La vida es sueño”, que diz: “estoy segura que yo no soy la única persona a soñar en el mundo”. A primeira crônica como profissional, intitulada “O lotação, a gorda e eu”, Carmélia publicou em 1958, na Revista Vida Capixaba. Posteriormente, a cronista trabalhou nos principais jornais da capital: Sete Dias, O Diário, A Tribuna, A Gazeta, O Debate e Jornal da Cidade. Após anos de produção, na década de 1980, parte do acervo que continha seus escritos foi destruído em um incêndio, eram crônicas publicadas nos jornais A Tribuna e O Diário.

 Conforme relatamos anteriormente, Carmélia tinha um amor declarado pelo ofício de escritora. Apaixonada pela palavra, ela produzia com paixão e os seus textos tinham uma forte carga de lirismo: “Há uma necessidade em mim de dizer as palavras que ainda não foram ditas”17. A escritora também escreveu poemas, em guardanapos, que ofertava aos amigos, nas noites, em bares como o Britz e o Shakesbeer. A leitura de Vento Sul indica que Carmélia não se fechou na crônica, há na obra, também, poesia. Infelizmente, não temos ideia do que o fogo consumiu do seu trabalho e nem o que esse material abriria de possibilidade para a pesquisa. A entrega genuína à produção literária, alinhada com os valores que acreditou e defendeu, fez com que a cronista marcasse uma época e se tornasse a porta-voz do espírito de contestação dos anos 60 e da desilusão dos anos 70.

As luzes que permitiram que a escrita de autoria feminina fosse vista com mais interesse e se tornasse linha de pesquisa em variados centros acadêmicos, começaram a brilhar a partir da década de 1970, especialmente instigada pela crítica feminista. Foi então que passou a acontecer um revisionismo crítico da produção das mulheres de diferentes épocas, o que contribuiu para a territorialização do espaço da escrita em ofícios tradicionalmente tomados como sendo “de alçada masculina” como o jornalismo. 

 A crônica, gênero híbrido que transita entre o jornalístico e o literário, nasceu irremediavelmente atrelado ao jornal. A palavra crônica, derivada do grego Khronos, mostra a associação do gênero ao tempo. A escrita de Carmélia possibilita um olhar, — que deve ser feito à contrapelo —, para a cidade e a sociedade do seu tempo e, se levarmos em conta que o jornal é um suporte temerário, — pois as notícias são atualizadas e o jornal do dia anterior acaba fadado ao esquecimento—, podemos dizer que Carmélia é uma sobrevivente. 

A primeira crônica “oficial” de Carmélia permite entre ver o olhar sensível da escritora, capaz de enxergar poesia em uma cena corriqueira da cidade. Essa crônica também é uma mostra da poeticidade de sua prosa. A escolha do lotação, ou seja, do ônibus, como cenário de observação para a escrita, indica a proximidade da cronista com o universo do trabalho, do público e do coletivo. O texto expõe o desconforto dos passageiros “que se comprimiam” dentro do coletivo, e a atitude de uma mulher que, sentada, reclamava do aperto com um outro passageiro que estava de pé. Esse foi o ponto de partida da cronista para variadas reflexões. A descrição da personagem como “gorda e feia” revela uma antipatia da personagem por parte da narradora que pode ter sido despertada pela falação da mulher e agravada pelo cansaço, pois, Carmélia confidencia ao leitor que teve um “dia horrível”. A narradora observou que, logo, todos os passageiros passaram a reclamar do lotação. Segundo Carmélia, além de reclama rem da situação momentânea, passaram a falar mal “de todos os lotações do mundo”. No decorrer da crônica podemos ver que esse mal-estar, aos poucos, foi cedendo ao sentimento de ternura e gratidão. A cena despertou em Carmélia o que ela definiu como uma “ternura toda esquisita” pelos lotações da cidade e pelo motorista “carrancudo” e de “mãos caleja das” que o dirigia. Na narrativa, observamos que a cronista se sensibilizou com a situação do trabalhador e sentiu gratidão pelo “cacareco” que, gentilmente, ao final do dia, a deixava na esquina de casa. Na parte final da crônica, bastante poética, essa viagem de ônibus se torna uma metáfora da vida, e Carmélia diz que esperava um dia, ao vir “os destroços” do velho lotação, em “algum canto da vida”, e lembrar dos tempos em que “rabiscava crônicas como esta, na esperança de que [lhe estivesse] reservado um lugar ao sol”. Um texto emocionante que mostra o desejo de uma jovem escritora de 22 anos, de encontrar espaço como profissional e alcançar o reconhecimento pelo seu trabalho.

Renata Bomfim.

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