Carmélia Maria de Souza- desenho de Milson Henriques.
Estamos acostumados a ver ressaltado, nos retratos de
Carmélia, o traço “Musa da fossa”. Conversando com pessoas
que conviveram com a cronista ganha destaque a personali
dade alegre e divertida de Carmélia. José Augusto Carvalho
ressaltou esse jeito brincalhão da cronista: “Ela mesma pegava o uísque, tão à vontade se sentia em minha casa, e sentava-se à minha frente, e falava de si, de mim, de seus projetos, de seus amigos”. Carvalho descreve Carmélia como uma
pessoa relacional, inclusive ela tentou apaziguar um atrito
surgido entre ele e a colunista social Maria Nilce. O crítico
conclui que “foi por intermédio de Carmélia que aqueles que
a conheceram se tornaram membros de uma grande família capixaba”.
Glecy Coutinho, jornalista que também conviveu com Carmélia, teve um papel importante na criação
do TEATRO CARMÉLIA MARIA DE SOUZA, em 1986. Ela
também enfatizou essa característica da cronista: “Olha, você
sabe que eu não trabalhava no mesmo jornal que ela, eu trabalhava no Jornal A Gazeta e ela era do Diário, deve ter sido muito divertido o convívio com ela no jornal, porque ela era
divertida, não tinha esse negócio de ficar na fossa não”.
A cronista gostava de ajudar as pessoas e declarava
contentamento em ver “um amigo do mesmo tempo, e das
mesmas esperanças nossas [...] mostrar, principalmente para
aqueles que não acreditavam na gente, que a geração que
eles chamaram de PERDIDA, nunca esteve tão grandemente
achada”.
Carmélia tinha uma vida preenchida com livros, música, amigos. Ela foi leitora de Sartre, Drummond, Fernando
Pessoa, Baudelaire, entre outros e brincava com esses personagens em suas crônicas: “Kafka é uma mentira, nunca
existiu, Proust é chatíssimo e José de Alencar, se não tivesse
morrido, a gente estrangulava ele” .
Amylton de Almeida, no prefácio de Vento Sul, declarou que “Foi através de uma canção imortalizada por Silvinha Teles, ‘Dindi’, que Carmélia escolheu um tema que repetiria para o resto de sua vida”. Logo surgiria Maysa, com a
canção “Barquinho”, iniciando a expressão de um estado de
espírito que dominou a época: “a fossa”, que se traduzia em
um estilo de vida, “seguido pela ‘corja’, e que escandalizava a
Tradicional Família Capixaba”. A “fossa” é um tema importante na obra de Carmélia. No texto Fossa & amizade ela diz:
“já se tornou tradicional me ouvirem dizer, de vez em quando, que estou numa fossa desgraçada. Isso dá para entender
quando não me envergonho de confessar que a vida me tem
maltratado, que vou aprendendo a sofrer quando é preciso”.
A dor e o sofrimento são importantes alavancas criativas e
levam a escritora a desenvolver a “Teoria geral da fossa” e “A
Fossa (II.)”. Logo de saída Carmélia declara: “A minha fossa é
linda. Lírica. Poética. Profunda. Imutável. Colorida [...] Uma
fossa assim, destas de fazer inveja ao próprio Baudelaire, que em matéria de fossa ameaçava jamais encontrar rival. Ou ao
finado Kafka, que entre uma e outra crise carpitiva costumava suspirar dizendo: Comigo ninguém pode! Eis, pois, que
resolvo entender e falar de fossa, começando por classificar,
de acordo com a atualidade, os mais diversos tipos” 24. Dando
sequência a sua “teoria”, Carmélia classificou vários tipos de
fossa: a “fossa pororoca”, a “fossa-de-não-ter-fossa”, a “fossa
matrimonial”, e faz recomendações do tipo “como evitar” a
fossa e como “dar cabo da bruta”. E para não se contradizer,
advertia: “não pretendo mais ser confidente de fossinhas mixurucas: só aceito drama de alto gabarito, [...] e não tente,
principalmente, curar as minhas [fossas], são heranças”.
Os escritos sobre a fossa continuam, em Fossa II, novos tipos emergem: a “fossa financeira”, a “fossa balneária”, a “fossa
íntima”, a “fossa jornalística”, mas, para além das teorias da
fossa, em novembro de 1967, a cronista escreveu a crônica “É
tempo de otimismo acho eu”.
A fossa possibilitou que a nossa persona dramatis realizasse variadas performances perante os seus leitores, e
essa atitude literária ajudou a formação de uma aura mítica
em torno da cronista que, na casa dos trinta anos, costumava dizer que tinha “oitenta e um anos de idade”. Tomando
a escrita de si como performance, a própria Carmélia dirá,
no texto “Fossa e amizade”: “É natural o pranto e o riso, na
geração de onde eu vim e na geração deste tempo que nos
foi dado para viver. Sou decididamente uma jovem velha
[...], às vezes choro porque me sinto triste. Isso não me impede, todavia, que eu me sinta uma pessoa perdidamente
feliz27. A aura mítica que foi se formando em torno da personagem carmeliana, também foi alimentada pelos famosos
bilhetinhos nas mesas dos bares dizendo: “Não se aproxime”; pela surpresa dos seus arroubos, quando, do nada, se
levantava e, em alta voz, dizia: Viva o Simpósio! Ela criou
siglas como TFC, Tradicional Família Capixaba; FUNAP,
Fundação Nossa de Assistência ao Pecado e GREET, Grupo
Experimental dos Existencialistas Traumatizados. Carmélia foi uma pessoa invulgar, como relembrou Sandra Medeiros. A amiga de Carmélia declarou que a cronista misturava
fantasia, bastidores das redações todas da cidade, da política, dos personagens que ocupavam as colunas sociais, com
coisa mais séria: cinema e existencialismo. [...] Pequenas
bobagens para fazer graça. [...]. Ela mesma se divertia e ria
muito com isso”.
Carmélia andava carregando uma “bengala”, mas a despeito de toda fortaleza de seus quase 80 quilos, e de se dizer “grossíssima, péssima companhia noturna,
diurna ou vespertina; [...] mau-caráter, desgraçada, temperamental, neurótica, falsa, inconstante, cínica e debochada”,
ela era “carinhosa e afetiva”, como a descreveu a amiga Mariangela Pellerano, lembrando que a cronista “chorava fácil
e ficava de mal”29.
Ruy Dias de Souza, sobrinho de Carmélia, relatou a importância da tia na sua vida, e lembra com carinho do tempo
de convívio em que costumava dirigir para ela, levando-a aos
bares e aos eventos da cidade. Traçou o perfil de uma mulher
alegre, e que enfrentou com coragem os desafios de viver em
uma época de grande repressão.
Foi no embalo das tragicomédias ensaiadas pela fossa, e no jeito novo do artista compor, tocar, cantar e de se
apresentar, que “Dindi” se tornou o mito amoroso carmeliano. Foi com Dindi que Carmélia dialogou poeticamente nos
momentos de solidão, apresentando-se como Félia, Magnólia Cardin, Magnolérrima. A Dindí carmeliana consta como
herdeira das crônicas e dos livros de Carmélia, personagem
incumbida de cuidar do seu espólio e, especialmente, de fazer vir a lume o livro Vento Sul.
Renata Bomfim.
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