Cartaz do peça teatral feita homenagem à Carmélia após o seu falecimento.
A ironia é um recurso narrativo que requer cumplicidade entre o produtor e o destinatário da mensagem, é fácil
constatar que entre Carmélia e seus leitores existia esse entendimento, o que mostra que a cronista conseguiu desenvolver
um jeito próprio de se comunicar com o povo capixaba.
Amylton de Almeida relatou que Carmélia não sobre
viveu aos anos 70, mas que a cronista conheceu pela primeira vez o reconhecimento profissional, “trabalhando como redatora anônima na redação do jornal O Diário, depois de ter
feito da crônica assinada o seu paraíso pessoal”. Esse relato
dá a entender que a cronista experimentou um jeito diferente
de se expressar, literariamente, escrevendo no anonimato. A
história mostra que, em diferentes épocas, muitas mulheres
ocultaram a autoria de seus textos ou escreveram sob a más
cara do pseudônimo.
É sabido que a inserção da mulher no campo do discurso foi uma conquista nada fácil. Francisco Aurélio Ribeiro
destaca: “esta deve ser vista juntamente com a marginalização
a que foram submetidas pela sociedade machista e falocrata
até muito recentemente, ao lado dos homossexuais, crianças,
idosos e dos étnica e racialmente discriminados: negros, judeus, ciganos, curdos, dentre outros”. Os primeiros jornais
do Espírito Santo não foram campos elísios para as vozes da
alteridade, ao contrário, eles serviram a determinados grupos de homens da elite e albergaram ideologias conservadoras do período colonial, depois, continuaram atuando em
prol das novas formas de poder. Francisco Aurélio Ribeiro
aponta que, no século XX, houve um “reposicionamento da
mulher na sociedade, a discussão do seu papel social, a sua
profissionalização”, e destaca o pioneirismo de Haydée Nicolussi (1905- 1970) e Lídia Besouchet (1908-1989) como
colunistas, em jornais e revistas da época.
Uma visada histórica mostra que o voto feminino foi
constitucionalmente garantido em 1934. O Estado Novo
(1937- 1945), estabelecido por Vargas através de um golpe
de estado, dificultou muito os avanços da pauta feminista e,
especialmente a vida das militantes, foram tempos de repressão. A redemocratização, em 1946, permitiu que às mulheres
voltarem a se organizar em coletivos. No Espírito Santo, em
1949, foi fundada a Academia Feminina Espírito-santense Letras (AFESL). Carmélia demonstrou interesse em ingressar na AFESL, mas a sua entrada não foi vista com bons
olhos, possivelmente pela sua vida extemporânea. No ano
de 1992, buscando retratar a injustiça, a instituição tornou-a
patrona da cadeira de número 30. A primeira ocupante dessa
cadeira foi Marzia Figueira (1938-2000), que segundo Ribeiro era “oriunda de família da elite” e teve grande destaque
no cenário jornalístico capixaba, atuando por trinta anos.
Embora ambas tenham produzido na mesma época e fossem
humanistas, a escrita de Carmélia e de Marzia diferiam, pois,
Carmélia escrevia ancorada pelos valores da contracultura, e
Marzia produzia crônicas mais conservadoras.
Carmélia transitou com determinação nesse cenário
jornalístico e literário, levando para o jornal, alguns deles de
grande circulação, temas que encontraram ressonância em
diferentes grupos, assim, com o passar dos anos, ela se consolidou como uma cronista implicada com a ótica da diferença. O jornalista Álvaro Silva relatou que “até o início da
década de 1970, não existia imprensa profissional, eram pes
soas que trabalhavam nas redações de jornal depois do expediente, era médico, professor, funcionário público, e quando
ele terminava o expediente ia para jornal ganhar mais um dinheirinho. Carmélia não tinha formação [acadêmica] como
jornalista, tinha formação como gente, ela foi uma intelectual pura, que viveu a vida como ela deveria ser vivida. Por
que ela era discriminada? Porque ela vivia, e tinha uma vida
que, na época, era chamada de libertina. Ela era uma pessoa
pura, sabe o que é uma pessoa pura? A pessoa que não tem
satisfação a dar a ninguém, ela era... não sei como classifica
ria Carmélia hoje, sei lá, não sei”. Álvaro relatou, ainda, que
Marien Calixte lhe contou um episódio no qual Carmélia
chegou para ele e disse: “A primavera chegou uma semana
antes em Vitória, está na Praça Costa Pereira, em uma flor
que só eu vi”. A partir dessa confidência, Calixte passou a
chamá-la de “a mulher que descobriu a primavera”.
Renata Bomfim.
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