01/09/2025

CARMÉLIA MARIA DE SOUZA: DESESPERADA E LÍRICA ( Renata Bomfim - parte 2)

 

Cartaz do peça teatral feita homenagem à Carmélia após o seu falecimento.

A ironia é um recurso narrativo que requer cumplicidade entre o produtor e o destinatário da mensagem, é fácil constatar que entre Carmélia e seus leitores existia esse entendimento, o que mostra que a cronista conseguiu desenvolver um jeito próprio de se comunicar com o povo capixaba. Amylton de Almeida relatou que Carmélia não sobre viveu aos anos 70, mas que a cronista conheceu pela primeira vez o reconhecimento profissional, “trabalhando como redatora anônima na redação do jornal O Diário, depois de ter feito da crônica assinada o seu paraíso pessoal”. Esse relato dá a entender que a cronista experimentou um jeito diferente de se expressar, literariamente, escrevendo no anonimato. A história mostra que, em diferentes épocas, muitas mulheres ocultaram a autoria de seus textos ou escreveram sob a más cara do pseudônimo.

É sabido que a inserção da mulher no campo do discurso foi uma conquista nada fácil. Francisco Aurélio Ribeiro destaca: “esta deve ser vista juntamente com a marginalização a que foram submetidas pela sociedade machista e falocrata até muito recentemente, ao lado dos homossexuais, crianças, idosos e dos étnica e racialmente discriminados: negros, judeus, ciganos, curdos, dentre outros”. Os primeiros jornais do Espírito Santo não foram campos elísios para as vozes da alteridade, ao contrário, eles serviram a determinados grupos de homens da elite e albergaram ideologias conservadoras do período colonial, depois, continuaram atuando em prol das novas formas de poder. Francisco Aurélio Ribeiro aponta que, no século XX, houve um “reposicionamento da mulher na sociedade, a discussão do seu papel social, a sua profissionalização”, e destaca o pioneirismo de Haydée Nicolussi (1905- 1970) e Lídia Besouchet (1908-1989) como colunistas, em jornais e revistas da época. 

Uma visada histórica mostra que o voto feminino foi constitucionalmente garantido em 1934. O Estado Novo (1937- 1945), estabelecido por Vargas através de um golpe de estado, dificultou muito os avanços da pauta feminista e, especialmente a vida das militantes, foram tempos de repressão. A redemocratização, em 1946, permitiu que às mulheres voltarem a se organizar em coletivos. No Espírito Santo, em 1949, foi fundada a Academia Feminina Espírito-santense Letras (AFESL). Carmélia demonstrou interesse em ingressar na AFESL, mas a sua entrada não foi vista com bons olhos, possivelmente pela sua vida extemporânea. No ano de 1992, buscando retratar a injustiça, a instituição tornou-a patrona da cadeira de número 30. A primeira ocupante dessa cadeira foi Marzia Figueira (1938-2000), que segundo Ribeiro era “oriunda de família da elite” e teve grande destaque no cenário jornalístico capixaba, atuando por trinta anos. Embora ambas tenham produzido na mesma época e fossem humanistas, a escrita de Carmélia e de Marzia diferiam, pois, Carmélia escrevia ancorada pelos valores da contracultura, e Marzia produzia crônicas mais conservadoras. 

Carmélia transitou com determinação nesse cenário jornalístico e literário, levando para o jornal, alguns deles de grande circulação, temas que encontraram ressonância em diferentes grupos, assim, com o passar dos anos, ela se consolidou como uma cronista implicada com a ótica da diferença. O jornalista Álvaro Silva relatou que “até o início da década de 1970, não existia imprensa profissional, eram pes soas que trabalhavam nas redações de jornal depois do expediente, era médico, professor, funcionário público, e quando ele terminava o expediente ia para jornal ganhar mais um dinheirinho. Carmélia não tinha formação [acadêmica] como jornalista, tinha formação como gente, ela foi uma intelectual pura, que viveu a vida como ela deveria ser vivida. Por que ela era discriminada? Porque ela vivia, e tinha uma vida que, na época, era chamada de libertina. Ela era uma pessoa pura, sabe o que é uma pessoa pura? A pessoa que não tem satisfação a dar a ninguém, ela era... não sei como classifica ria Carmélia hoje, sei lá, não sei”. Álvaro relatou, ainda, que Marien Calixte lhe contou um episódio no qual Carmélia chegou para ele e disse: “A primavera chegou uma semana antes em Vitória, está na Praça Costa Pereira, em uma flor que só eu vi”. A partir dessa confidência, Calixte passou a chamá-la de “a mulher que descobriu a primavera”.
Renata Bomfim.

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