Maria Nilce, Milson Henriques e Carmélia Maria de Souza.
Carmélia enxergou a sociedade capixaba sem filtros,
ela não se inseriu no campo do discurso para agradar, ao contrário, buscou “espinafrar”, questionar verdades, desvelar preconceitos e o que mais pudesse estar camuflado sob
o verniz da conveniência, tudo isso ela fez ciente do seu papel como intelectual e escritora. O seu trabalho cimentou
caminho para outras pessoas na escrita, como observamos
na crônica “Minha Félia”: “Quando nada, vou cumprindo a
tarefa de aperfeiçoar a ferramenta para os outros, que certa
mente virão. Quando nada, é possível que eu me saiba um
pedaço desta ponte que deverá conduzir a humanidade até
um mundo melhor. Tenho pena de não haver esperado para
nascer no ano de 2050. Porque até lá, a imortalidade seja possível e a vida seja feita de colaboração e não de competição.
Todavia, isso não passa de uma conjetura, apenas desejável.
No momento, a disputa por um pedaço de pão atirado no
lixo, a dura luta contra a escravidão [...] é o que constitui a
presente e amarga realidade que me foi dada para contemplar [...] Mas ela passou a ser minha preocupação maior, a
minha verdade, a minha poesia. Ela é hoje a minha consciência – a minha clara e nítida consciência, minha promessa
única de realização nessa vida”.
A cronista foi alguém que viveu a cidade e conviveu
com os seus personagens. Reinaldo Santos Neves afirmou
que “Carmélia não fixava fronteiras para a troca de calor
humano. Se dava bem com a esposa do magnata e com o
pescador fodido que afogava as mágoas na pinga, não tinha
preconceitos: não fazia distinção de sexo, credo, cor, nem pedigree social ou econômico — nem muito menos de idade”31.
Carmélia fez da escrita um instrumento de diálogo e espaço
para a fruição de afetos. Para a cronista, havia sacralidade
no contato humano, mas ela abdicava “dos mistérios da divindade” e clamava por um Cristo “com a simplicidade dos
mansos”: “O meu Cristo é assim: leal, compreensivo, solidário, fala gíria, frequenta o mesmo bar da corriola, lê poesia, e
acha essa ilha uma delícia. Adora Chico Buarque, não suporta Proust, expulsa os chatos da mesa e se faz respeitar e amar
como amigo que está em todas as coisas que eu amo e é por
isso que está comigo”.
Carmélia tinha amigos importantes, entre eles o governador. O Jornalista Álvaro Silva contou que, na época da dita
dura, Élcio Alvares ascendeu ao cargo de Governador do estado por indicação, sem eleição direta. Silva relatou que, em
uma ocasião, no Cine Juparanã, viu Carmélia chegar e saudar
em auto e bom som o Governador Élcio Alvares, que se encontrava longe dela, e que este saiu de onde estava e veio cumprimentar a cronista. A jornalista Glecy Coutinho, em entre
vista, contou que na época da ditadura, Carmélia “respondeu
processo” porque “escondeu umas pessoas na casa dela”, e que
quando veio o AI-5, “então a barra pesou muito”. Essa é uma
imagem da escritora que se opõe a de uma pessoa apolítica.
A crônica “E me vieram perguntar, originalmente publicada
sem título no jornal A Tribuna do dia 18 de fevereiro de 1968,
diz assim: “Chegou um tempo, aqui no Brasil, em que todos
os poetas — principalmente os mais humildes, os mais limpos
— estão sendo encarados como elementos perigosíssimos à
segurança da nação. Tenho um amigo poeta que passou seis
meses trancafiado na prisão. [...] Como se ele pretendesse
enfrentar sozinho as forças armadas e avacalhar com a revolução”. Nos seus escritos, a cronista se afirmou como livre
pensadora, ela se posicionou junto àqueles com os quais tinha
afinidade na defesa dos valores que acreditava e, defendeu o
estilo de vida que escolheu viver: “Sou livre para fazer isto,
[...] enquanto não me prendem eu vou bebendo o meu vinho todas as noites, entre os supostos e alegres solda
dos que compõem esta ingênua e inofensiva esquerda festiva.
Na verdade, mesmo, não me prenderei mais a nenhum grupo e a ideologia nenhuma”34. Na crônica “Considerações ou
tonais e chatas”, vemos Carmélia ironizar as “gloriosas” forças nacionais e debochar do histórico símbolo de liberdade nacional que é o grito do Ipiranga: “Há muito cansei de ouvir dizerem a mim que as coisas estão ruins e vão melhorar, pois, o
Presidente da República e as Gloriosas Forças Armadas estão
tomando as providências para botar essa joça no seu devido
lugar. [...] Para mim isso acabou de uma vez por todas, não
vem que não tem:[...] “Independência ou Marte!”, “sim, quero
me mandar para Marte, com a maior urgência”.
Política e Poética são temáticas que se imbricam. Se
pensarmos que Carmélia viveu em uma sociedade estamental e religiosa, podemos perceber que os seus textos criticam
os grupos da elite, um exemplo desse olhar está na crônica
“Os dez mais idiotas”, na qual a cronista, por meio do humor, chama a atenção para o uso do suplemento do jornal
para o “fora de moda”. Ela se referia às listas dos ‘dez mais’,
uma irrelevância que encobria “o tempo que passa na janela
e só Carolina não vê”36. Em uma época em que o colunismo social foi muito forte em Vitória, a cronista não deixava
de “espinafrar” esse e outros gostos da pequena burguesia.
Carmélia debocha das ‘listas’, afirmando logo de entrada que
isso era coisa que teria começado com “o finado Adão”, que
havia se elegido “um dos dez mais do paraíso e deixado a
pobre Eva na reserva”. Ela afirma que seria difícil fazer uma
lista de chatos, pois, “esta ilha tem chato que não acaba mais”,
mas, para não escandalizar a “carneirada”, resolveu escrever a
sua própria lista: “Coisas que eu detesto; caviar, champanha,
festa estilo soçaite, soçaite, Jorge Amado, programa “um instante maestro”, praia, telenovela, reunião com muita mulher,
mulher (em geral), livro best-seller, dona bibi ferreira, muqueca de peixe, o samba “apelo”, homem bonito (só abro exceção para o alain delon — ele é demais) e almoço em família. Coisas que eu adoro: inverno, vento sul, café sem açúcar,
frescura, desgraça alheia, jiló, música clássica, noite, irmãos
metralha ltda., trocadilho infame, homem feio, simplicidade, pinga, gripe e sogra”37.
O crítico e poeta Octávio Paz defendeu que “atividade de poética é revolucionária por natureza”. O pensamento do
filósofo francês Jacques Rancière caminha na mesma direção na obra Políticas da escrita, onde consta: “a escrita é coisa
política, pois ela alegoriza a constituição estética de uma comunidade, apontando a forma como essa comunidade partilha o sensível e delimita os seus espaços reais e simbólicos”. A
partir desse entendimento, compreendemos que a política e
a escrita se inscrevem, de forma radical, no campo da comunidade.
Carmélia não foi uma escritora panfletária, mas usou
a escrita para ocupar espaços relevantes na sociedade, e abrir
outros, igualmente relevantes, especialmente para as mulheres. A reescrita da ‘lista’ foi feita de forma paródica, de forma
a desnudar os valores esvaziados da “soçaite”, aos quais, agora
sabemos, ela afirma que “detesta”. A crônica mostra também
ser um espaço para experimentações com a linguagem e a
subvertendo valores e gostos, com a cronista se colocando
como apreciadora do que esse grupo não aprecia.
Carmélia apontou que leitores capazes de a compreender eram o seu público ideal: “escrevemos para um grupo
fechadíssimo, inteligente, de bom gosto, merecedor do nosso
talento redacional em toda linha. Um grupo que ainda encontra sentido nas coisas mais simples e que entende a doçura
e a poesia que a gente tira de dentro do coração”. Amylton
de Almeida declarou que Carmélia seguiu firme trabalhando
no jornal, enfrentando com senso de humor as asperezas e
grosserias da cidade.
Renata Bomfim.
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