14/12/2020

Os guardas do Paraíso (Renata Bomfim)

 

No centro da minha cidade

Existe uma Árvore.

Guardada por homens 
armados. Não são anjos,
São  os guardas do paraíso.

Um dia atrevi-me.

Tomei conselho com as sombras,

Planejei sob o manto escuro da noite

um jeito, uma forma de provar do fruto.

Há palmeiras rebuscadas
e sabiás nesse paraíso seguro.
Há também macacos prego

Espreitando bananeiras
do lado de fora dos muros.

O abacateiro do paraíso, protegido

Por homens de dentes de ferro, de pesado  

arriou os galhos.        

Embora haja muitas frutas é proibido
sucumbir ao pecado da gula.
Por isso regulam a distribuição 
de alimentos: "um cuidado adicional",
é o que dizem os guardas do paraíso.
Mas, da Árvore que fica no centro

da cidade, não se pode nunca provar o fruto.

Desejo sentir o sabor desconhecido,

Sussurro palavras de amor baixinho e,

Ao longe, observo o vento balançar 
os longos galhos Verde-amarelados. 
Algo em mim tremula.

Os frutos da Árvore não são vermelhos
e nem arredondados.

Parecem espirais resplandecentes e criam

Um halo de luz no centro da minha cidade.
O povo vive sob o fascínio da luz, embora
quase sempre faminto.
Tudo parece lindo!

Os homens serram a Árvore, afinal,

é a guarda especializada do paraíso.

Resisto e tramo, na noite, apoiada

Pelo demônio da revolta.

Busco um jeito, uma forma

De alimentar essa fome específica.

Serei eu a primeira e a única rebelar?

Lá estão eles, os malditos 
homens com dentes de ferro. Agora,

seguram punhais e escopetas
no centro da minha cidade.

Vitória, dia 21/09/2018 (dia da árvore) 

 


Vi o teu rosto (Renata Bomfim)


Vi o teu rosto

Por trás da máscara da máscara.

Um deus de carne e osso

Cujos olhos vicejavam luz.

Vi o teu rosto belo de

Imperfeições e assimetrias.

Amo-te desde aquele momento.


TEMPOS DE CHUMBO (Renata Bomfim)


Tuas mãos enormes

Seguram o peso do mundo.

Polegar e indicador se tocam

Tentando pinçar o cotidiano.

Mas, meu bem, nem as maiores

mãos do mundo poderão 

suspender a dor desse momento

e nem aniquilar o sombrio

desses tempos de chumbo.

 

(Vitória, 23/09/2018)

09/12/2020

O escritor Francis Kurkievicz lança o livro de poesias B869.1 k96 (Editora Patuá)


Adquira a obra

Os poemas de B869.1 k96 são frutos da safra de 2018 e foram colhidos ao longo de um ano difícil, cheio de perplexidades e reflexões. O que o leitor encontrará é uma pequena parte de uma produção ainda inédita oculta nos porões ordinários e binários do HD. Pondero e acrescento, inútil qualquer tentativa de explicar o poema ou mesmo de justificar a sua necessidade e urgência, seu lugar no mundo ou no vácuo (tudo o que existe está para ser, não há como fugir dessa premissa). O importante em nossa jornada de criaturas é experimentar, criar e estender os horizontes de qualquer cosmovisão, seja ela inspirada no que for. Estar na pele sensível e demasiadamente humana não é tarefa pouca, exige alguma fibra, ou poesia, do contrário o cenário desaba sobre os atores. Esse teatro, para alguns, possui a mesma substância espinhal, para outros, é aquela substância alquímica, extraída ao fogo pelo pranayama. 

Seja como for, confio que é a poesia que nos dá sentido e força, direção e luz na longa jornada desta espessa noite que cremos obscura, mas que, na verdade, é de luz tão intensa que confunde nossos sentidos ainda lunares. (texto fornecido pela Editora Patuá)


                                                               

Francis Kurkievicz é poeta libriano com ascendente em gêmeos, budista de esquerda, autoexilado em Vitória/ES, tem quase nada publicado em livro, apesar da vasta produção inédita e inaudita; mantém distância civilizada de blogs, publicações em portais e revistas eletrônicas, obviamente não por escolha. Romântico e desiludido, ainda acredita no livro de papel.


Conheça 5 poemas do livro B869.1 k96, de Francis Kurkievicz

VII

Nem toda motivação, motiva

Nem toda justificativa, justifica

Nem todo sentido, significa:

somos uma civilização

que necessita demais da razão

que explica tudo e compreende nada:

uma dose de mistério e perplexidade

impulsiona a existência para frente

sempre.

 

***

 

XXVII

 

Fantasmas incertos

levantam-se do solo amuralhando sob o horizonte

onde o sol pondo-se

esparge luz e sombras

naquele oeste inalcançável

ocultando o infinito que nos cabe.

 

***

 

XLVII

 

Distraído,

dei de cara com a esfinge

à entrada da ponte,

me rosnou ela seu enigma,

mas como não sei grego e nem latim,

mantive o passo sobre a ponte

ignorando o símbolo do destino

e a fome da criatura.

 

***

 

LII

 

Adoro-te, Parker,

pela tua literatura escrita com a mão esquerda.

Adoro-te, Stang,

pela coragem em dar as costas à morte,

mas nunca à derrota.

Adoro-te, Wang,

pelas curvas sino-sibilinas em sua beleza performática.

Adoro-te, Vaughan,

pela matemática de tua raça já em rota de voo.

Adoro-te, Gale,

pela guirlanda que penduraste em nossa imaginação.

 

***

 

LXVI

 

Fumar preocupações

beber ressentimentos

inalar ilusões

roer medos

regurgitar raivas

digerir preconceitos

defecar sofrimentos.

Poemas de Santiago Montobbio

 


Le chasseur abstrait éditeu, responsável pela edição da revista eletrônica Revue d'Art et de Littérature, Musique, publicou no início de dezembro, na seção "À la Une", um texto do escritor e amigo Santiago Montobbio intitulado “Veneza. Poesia ”.


LER POESIA


19/11/2020

IRMÃ CLEUSA CAROLINA RODY COELHO, EDUCADORA E MÁRTIR (Renata Bomfim)


A história de vida,¾ e de morte¾, da irmã Cleusa Carolina Rody Coelho (1933-1985) trouxe-me à memória a proposição de Walter Benjamim de que “cada época ao sonhar a seguinte, força-a a despertar”. Benjamim não sobreviveu ao tempo sombrio do nazismo, assim como irmã Cleusa Carolina, professora capixaba que optou pela vida religiosa, sucumbiu lutando pelos valores nos quais acreditava. O pensamento de Benjamim é um alerta sobre o perigo do esquecimento e a importância de se trazer à luz a memória dos oprimidos, pois, apenas assim poderá ser criada uma barreira contra a barbárie.

Vivemos um período de grande obscurantismo no Brasil, no qual a educação sofre graves ataques e, barbáries como a ditadura e o genocídio indígena, são minimizadas e, até mesmo, negadas. A história de irmã Cleusa Carolina explicita questões como a violência contra mulheres, pacifistas, ambientalistas e o genocídio dos povos originários, que remonta a colonização. Ao rememorarmos esse passado que se presentrifica de forma perversa, auscultamos a contrapelo da história, ecos da resistência e da luta dessas minorias, de humanistas e dos índios brasileiros, quiçá forçando um despertar coletivo para questões tão prementes.

Irmão Cleusa Carolina pediu dispensa do trabalho que realizava e, sem remuneração, mas determinada, foi viver entre os índios Apurinã, na Amazônia. Na sua última transferência para a cidade de Lábrea, em 1982, a freira capixaba uniu forças com aqueles que ela considerava serem os mais vulneráveis da sociedade, “os mais pobres e marginalizados”, apoiando as comunidades na luta pela demarcação, em um momento no qual os latifundiários invadiam e ocupavam as terras indígenas, muitas vezes com a conivência de autoridades locais. Representante do Conselho Missionário Indigenista, irmã Cleusa Carolina era professora de formação e a sua trajetória como missionária sempre esteve ligada à educação.

A história de vida dessa freira que dedicou 32 anos ao serviço missionário começa em Cachoeiro de Itapemirim, ES, no dia 12 de novembro de 1933. Aluna brilhante, ao final do curso de magistério, recebeu do Governo do Estado do Espírito Santo o prêmio de escolher em qual escola lecionaria, foi nesse momento que optou pela vida religiosa. Em 1952, na Comunidade de Ilha das Flores, no Rio de Janeiro, Cleusa Carolina adotou o hábito e tornou-se Sór Maria Ângelis.

Em 1954 quando foi enviada pela primeira vez para as Missões de Lábrea, iniciou a criação do Educandário Santa Rita, destinado às crianças carentes da cidade, onde trabalhou como professora primária. No ano de 1958, de volta ao ES, em Colatina, emitiu votos perpétuos de pobreza, obediência e castidade.  Mais tarde, irmã Cleusa Carolina decidiria não vestir mais o hábito religioso, usando apenas roupas simples recebidas como doação, ato motivado pelo desejo de diminuir diferenças e distâncias entre ela e as pessoas que atendia no trabalho fraternal.

Irmã Cleusa Carolina abraçou a sua vocação como educadora e o período que passou em Vitória, que se estendeu até 1973, dirigiu o Colégio Agostiniano e obteve Licenciatura Plena em Letras Anglo-germânicas, na UFES, dedicando-se, também, à formação de lideranças para criar Comunidades Eclesiais de Base. Foi nessa época irmã Cleusa Carolina voltou a adotar o nome de batismo. O trabalho missionário estendeu-se dos centros educacionais para presídios, lares de pessoas doentes e leprosário. No período que esteve em Manaus, a freira ia para as praças ao encontro dos meninos de ruas, levando para a sua casa alguns deles que corriam perigo de vida, passando assim a ser mal vista pela polícia, acusada de ser conivente com a desordem e protetora de infratores e marginais. O compromisso para com a justiça pode ser observada no trecho de uma carta enviada à outra freira, irmã Lourdes, em maio de 1978 que diz: “Temos que construir fraternidade, é necessário, mas a justiça tem que estar na base de toda a convivência humana”. Foi assim, colocando a justiça como um pilar da fraternidade que irmã Cleusa Carolina cumpriu a sua missão como integrante da irmandade das Missionárias Agostinianas Recoletas


. Irmã Cleusa manifestou, em carta, o desejo de desenvolver um trabalho de alfabetização para adultos com os povos ribeirinhos, a “pastoral das curvas”, dos Purus, preocupando-se, também, com “os irmãos espalhados pelas estradas”.

A participação ativa na causa indigenista fez com que a freira se tornasse querida entre os índios, mas por outro lado, incomodou aqueles que os perseguia. Irmã Cleusa Carolina foi assassinada no dia 26 de abril de 1985, o seu corpo foi encontrado dois dias depois, nu e escalpelado, com mais de cinquenta chumbos de arma de caça na cabeça e no tórax, várias costelas quebradas, braço direito decepado e a sua mão direita nunca foi encontrada. Os ossos do braço direito da irmã Cleusa Carolina estão depositados na Catedral Metropolitana de Vitória e, tramita hoje, no Vaticano, um processo para a sua beatificação.

O martírio da religiosa capixaba faz parte da história de violência que abrange os conflitos que envolvem terras indígenas e extrativismo e que ainda vitima muitos indígenas. Irmã Cleusa Carolina foi um exemplo de amor ao próximo e à educação, e foi honrando esse legado e buscando que a sua memória não caiam no esquecimento, que a Academia Feminina Espírito-santense de Letras (AFESL) tornou-a Patrona da cadeira de número 24, ocupada hoje pela escritora Beatriz Monjardim F. Santos Rabello.

Renata Bomfim

Poeta, ambientalista e presidente da AFESL

TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NO JORNAL DE LETRAS, RJ

NOVEMBRO DE 2020

 

08/11/2020

A escritora brasileira Renata Bomfim representará o Brasil no XVII Festival Internacional de Granada, na Nicarágua, em 2021.



A escritora Renata Bomfim foi convidada para representar o Brasil no XVII Festival Internacional de Poesia de Granada, que será realizado em formato virtual e será transmitido via Facebook a partir do dia 14 de março 2021. 

Esta próxima edição se realizará no marco do Bicentenário de  Independência da Centroamerica e em Homenagem a poeta nicaraguense Ana Ilce Gómez e a poeta salvadorenha Claudia Lars.




14/10/2020

O exuberante realismo imaginativo de Renata Bomfim, por Pedro Sevylla/| Oct 12, 2020

Imagem da escritora Renata Bomfim presidindo a 
Academia Feminina Espírito-santense de Letras/ 2019. 

Estimados leitores(as),

Segue o link para um trabalho espetacular de recolha e análise da minha obra literária, poética e ensaísta, realizada pelo escritor e crítico literário espanhol Pedro Sevylla de Juana.

LEIA NA ÍNTEGRA

O exuberante realismo imaginativo de Renata Bomfim

"Poesía pura, selvática, iconoclasta y exuberante; de un realismo, además, muy imaginativo. Recibí un chasquido interior y regresé a letraefel para leer y traducir los poemas que aparecían. También ensaios muy bien documentados. Me esforcé para que los lectores de mis dos idiomas y mis dos patrias conocieran a la autora a través de su obra" 

PEDRO SEVYLLA DE JUANA

Académico Correspondiente de la Academia de Letras del Estado de Espírito Santo en Brasil, y Premio Internacional Vargas Llosa de Novela / Romance, Pedro Sevylla de Juana nació en plena agricultura de secano, allá donde se juntan la Tierra de Campos y El Cerrato; en Valdepero, provincia de Palencia y España. La economía de los recursos a la espera de tiempos peores, ajustó su comportamiento. Con la intención de entender los misterios de la existencia, aprendió a leer a los tres años. A los nueve inició sus estudios en el internado del colegio La Salle de Palencia. En Madrid cursó los superiores. Para explicar sus razones, a los doce se inició en la escritura. Ha cumplido ya los setenta y cuatro, y transita la etapa de mayor libertad y osadía; le obligan muy pocas responsabilidades y sujeta temores y esperanzas. Ha vivido en Palencia, Valladolid, Barcelona y Madrid; pasando temporadas en Cornwall, Ginebra, Estoril, Tánger, París, Ámsterdam, La Habana, Villeneuve sur Lot y Vitória ES, Brasil. Publicitario, conferenciante, traductor, articulista, poeta, ensayista, editor, investigador, crítico y narrador; ha publicado veintiocho libros, y colabora con diversas revistas de Europa y América, tanto en lengua española como portuguesa. Trabajos suyos integran siete antologías internacionales. Reside en El Escorial, dedicado por entero a sus pasiones más arraigadas: vivir, leer y escribir.
http://pedrosevylla.co

29/02/2020

A MILITÂNCIA FEMININA CAPIXABA E O PIONEIRISMO DE JUDITH LEÃO CASTELLO RIBEIRO NA POLÍTICA (Prof. Drª. Renata Bomfim)



RE - REVISTA ELETRÔNICA                                                              

                             DA ALES-ES Seção 01 artigos

Renata Bomfim é mestre e doutora em letras pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professora, escritora e ativista ambiental é gestora e proprietária da Reserva Natural Reluz, RPPN localizada em Marechal Floriano. Presidente da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, ocupando a cadeira de nº 16; Membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do ES e Diretora técnica da Associação Capixaba do Patrimônio Natural (ACPN). Representou o Brasil em Festivais de poesia no exterior e presidiu a 6ª Feira Literária Capixaba, em maio de 2019. Possui artigos e ensaios publicados, é autora da Revista Literária Letra e fel (www.letraefel.com) e dos livros de poemas Mina (2010); Arcano dezenove (2012), Colóquio das árvores (2015) e O Coração da Medusa (no prelo). 


Falar acerca da força e da coragem das mulheres espírito-santense é algo que nos comove, mas também nos desconforta, pois, infelizmente é uma história ainda pouco conhecida pela sociedade capixaba e marcada pelo silenciamento. A pesquisadora Maria Stella de Novaes, personalidade importantíssima da historiografia do Espírito Santo e autora da obra A mulher na História do Espírito Santo (História e folclore), escrita entre 1957 e 1959, chamou a atenção para essa “omissão de referências às mulheres”. Dona Stelinha, como carinhosamente era chamada, denunciou que esse silêncio sobre a produção intelectual feminina e suas ações de resistência remontam os registros da colonização. Segundo registros, o donatário Vasco Fernandes Coutinho, quando veio tomar posse da Capitania no dia 23 de maio de 1535, não trouxe mulheres na sua comitiva e a epistolografia dos padres Jesuítas atesta que os portugueses se casavam com as índias. 

As mulheres indígenas das tribos que habitavam o Espírito Santo na época da colonização exerciam autoridade na tribo, tanto que nos chegam relatos como o da esposa do índio Maracaiaguaçu (Gato grande), batizada como Branca Coutinho, em homenagem à mãe do donatário, e da viúva de Guajaraba (Cabelo de Cão), que guiou o seu povo na descida do Sertão para a aldeia dos Reis Magos. As índias foram as primeiras mães dos cidadãos nascidos na terra recém-batizada e o papel fundamental e marcante da mulher indígena na indústria caseira e na arte manual, deu forma a uma das tradições mais destacadas do ES, ¾ a tradição da panela e das paneleiras¾. Não ficou de fora do relato de Dona Stelinha a importância histórica de Luísa Grimaldi, que governou o Espírito Santo com êxito entre os anos de 1589 e 1593.

A literatura produzida por mulheres no Espírito Santo tem preenchido muitas lacunas deixadas pela história, exemplo disso é a obra A Capitoa, da escritora barrense Bernadette Lyra, que fala da coragem dessa mulher que foi uma das primeiras da comandar um estado brasileiro no século XVI. Outra personalidade feminina de grande relevo para o Brasil é Maria Ortiz, heroína capixaba filha de espanhóis que defendeu a Catania da invasão holandesa, em 1625. Em um artigo intitulado “Cadê a Maria Ortiz?”, Francisco Aurélio Ribeiro relata que visitou a exposição “Brasil feminino”, no Rio de Janeiro, e pode ver entre as personalidades cronologicamente destacadas, Dora Vivacqua, mais conhecida como Luz Del Fuego; a cantora Nara Leão e a escritora Marly de Oliveira, mas, aponta para a ausência de referência a Maria Ortiz que é, inclusive, alguns séculos anterior a revolucionária Maria Quitéria e a Ana Néri, pioneira da enfermagem no Brasil. Dona Stelinha destacou que os séculos passaram e “humildes e ignoradas, alheias, mesmo aos resultados sociais e econômicos dos seus esforços”, as mulheres capixabas chegaram ao século XVIII ainda condicionadas por conceitos patriarcais religiosos, sociais e legais que as caracterizavam como inferiores ao homem: “fadas incógnitas que salvaguardavam as bases da sociedade”, as capixabas eram consideradas “máquina de trabalho doméstico”.

A mulher oitocentista teve a sua liberdade fortemente cerceada e as jovens eram criadas e educadas para o casamento, mas, a escolarização foi essencial para que esse cenário começasse a mudar. Em 1827, Dom Pedro I outorgou a lei que criou escolas nas vilas e cidades mais populosas do império, entretanto, as escolas para meninas seriam permitidas apenas se aprovadas pelo conselho, e caso fossem aprovadas, a elas não se ensinaria aritmética e nem geometria, apenas as quatro operações básicas, ficando o programa restrito às prendas da economia doméstica. Essa realidade estendeu-se até meados do século XIX, quando as mulheres começaram a conquistar espaços sociais fora de casa e as senhoras do Espírito Santo se organizavam em torno de novos interesses, como o jornal de moda parisiense A Estação. Em Vitória e Vila Velha as rendas, parte do aprendizado de trabalhos manuais das moças, eram famosas.

No Espírito Santo, a primeira escola pública primária para meninas, foi fundada em Vitória, em 1835, mas ficou dez anos sem funcionar por falta de professora, até que em 1845 a primeira professora foi contratada, o seu nome é Maria Carolina Ibrense. A escolarização feminina associada à emergência de ações coletivas abriu horizontes para as mulheres no século XX. Maria Stela de Novaes afirmou que o século XIX poderia ser chamado de “O século das mulheres”. A partir de então as mulheres passaram a ser professoras e diretoras de escolas primárias e normais, bem como escritoras, mas, o direito ao voto e a elegibilidade ainda lhe eram negados. Nesse sentido, podemos perceber a relevância da vida e da obra de Judith Leão Castello Ribeiro, professora, escritora e primeira deputada estadual no Espírito Santo. Judith Leão Castello Ribeiro nasceu na Serra, no dia 31-08-1898, seu pai João Dalmácio Castello e sua mãe Maria Grata Leão Castello, primaram pela educação dos filhos e da fizeram questão que a filha também estudasse. Judith Leão se insere no contexto de luta e resistência das primeiras sufragistas capixabas. Vale recordar a importância do feminismo emergente na luta pelos direitos das mulheres e que a exclusão dessas da categoria de cidadãs, na constituição inglesa de 1791, levou a escritora Mary Wollstonecraft a escrever Reivindicação dos direitos da mulher e essa obra, que denunciava a opressão no tempo do iluminismo, ecoou no Brasil e, insuflado por Nísia Floresta com o seu Direito das mulheres e injustiça dos homens, de 1832, floresceu o movimento feminista brasileiro. Berta Lutz, na década de 1920, liderou a criação da FEDERAÇÃO BRASILEIRA PELO PROGRESSO FEMININO e esse feminismo de primeira hora, que tinha como foco a melhoria das condições da mulher na sociedade e a conquista do direito ao voto feminino, só alcançou o pleito em 1932. Segundo Maria Stella de Novaes, o movimento feminista capixaba delineou-se paralelamente ao movimento nacional, liderados pela Sra. Silvia Meireles da Silva Santos, em Vitória. Nessa época, a organização das mulheres em entidades organizadas fomentou importantes debates políticos e, em vários estados da federação, o feminismo se fortaleceu. No Espírito Santo não foi diferente, as intelectuais capixabas já chamavam a atenção pela atuação destacada no cenário cultural local, mesmo assim, alguns espaços ainda lhe eram negados, e um desses espaços era o político.
O interesse de Judith pela política possui raízes profundas, pois, nascida em uma família tradicional da Serra, o seu bisavô, Manoel Cardoso Castello, avô dos educadores Kosciuszko e Aristóbulo Barbosa Leão, foi vereador na época que a localidade era conhecida como freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Serra, antes de ser elevada à condição de Vila, em 1822. Ela foi, também, casada com Talma Rodrigues Ribeiro, que foi prefeito da Serra entre 1945 e 1946 e que a apoiava incondicionalmente.  

Judith foi uma defensora ardorosa dos direitos políticos das mulheres, mas, o ambiente conservador da época exigiu uma sensibilização das capixabas para a luta política. Maria Stella de Novaes expõe as dificuldades das mulheres que ousavam desafiar a ordem patriarcal adentrando espaços públicos, relata que ela mesma sofreu para ingressar como catedrática no corpo doente do Ginásio do Espírito Santo e na escola normal do Estado, e que “as escritoras e as poetisas amargaram” da mesma forma, “bebendo o cálice da crítica ferina e da oposição implacável”. Em 1933 um grupo de senhoras vitorienses fundou a FEDERAÇÃO ESPÍRITO-SANTENSE PELO PROGRESSO FEMININO, buscando incentivar o alistamento de mulheres e, sem compromisso partidário, a CRUZADA CÍVICA DO ALISTAMENTO, cuja presidente foi Silvia Meireles da Silva Santos, vice-presidente, Judith Castello Leão Ribeiro, e tesoureira Maria Stella de Novaes. Judith Leão já era professora desde o ano anterior, quando tinha sido aprovada, em concurso público, e ingressado como docente no Grupo Escolar Gomes Cardim. Segundo João Luiz Castello, sobrinho de Judith, são vários os exemplos de que Judith mostrava interesse em trabalhar em prol do coletivo, tanto que desejando estimular o aprimoramento cultural de seus alunos fundou o Museu Pedagógico (1930-1946), na Escola Normal Pedro II, e iniciou  o jornal “Folha escolar”, de circulação interna na mesma instituição.
A arte e a cultura sempre foram considerados, por Judith Leão, um instrumento de transformação social, de forma que, enquanto professora, estabeleceu um tempo para os seus alunos terem iniciação literária e musical. Foi como professora que Judith, em 1934, candidatou-se a deputada estadual pela primeira vez, mas como não estava filiada a nenhum partido, acabou não se elegendo. Judith Leão optou por disputar sem legenda por apoiar o Movimento Revolucionário Constitucionalista de São Paulo, de 1932, e por discordar da política estadual em vigor na época. A sessão capixaba da Federação contribuiu para com o movimento no Rio de Janeiro, te esse esforço coletivo fez com que, em 1936, o direito ao voto fosse mantido sem restrições na Constituição Federal.


A movimentação feminista vitoriense repercutiu no interior do estado e uma delegação da UNIÃO CÍVICA FEMININA, de Cachoeiro de Itapemirim, em 1936, enviou uma delegada para participar do Congresso Nacional Feminino. O “esforço titânico”, ¾ como diria Maria Stella de Novaes ¾, de Judith Leão e de muitas outras mulheres capixabas, entre elas Guilly Furtado Bandeira, Ilza Etienne Dessaune, Maria Antonieta Tatagiba, Lidia Besouchet, Virgínia Tamanini, Yponéia de Oliveira, Zeni Santo e Haydée Nicolussi, precisa ser conhecido pela sociedade, precisa ganhar destaque na historiografia. Um grupo de mulheres uniu forças com Judith Leão para a fundação da ACADEMIA FEMININA ESPÍRITO-SANTENSE DE LETRAS (AFESL), no dia 18 de julho de 1949. Francisco Aurélio Riberio, dedicado pesquisador da vida e da obra das escritoras capixabas, nos faz saber que apenas muito recentemente as mulheres foram aceitas nas academias de Letras, e destaca a extemporaneidade e o pioneirismo da capixaba Guilly Furtado Bandeira que, em 1913, ingressou como acadêmica na Academia de Letras do Pará. A escritora é, também, a primeira capixaba a publicar um livro, em 1913, Esmaltes e Camafeus.

A acadêmica da AFESL Ailse Therezinha Cypreste Romanelli salienta que era “um despautério”, na década de quarenta, uma mulher como Judith cumprir quatro  legislaturas como deputada e, ainda, tentar entrar para a Academia Espírito-santense de letras e não ser aceita. Judith se candidatou para uma cadeira da Academia Espírito-santense de Letras (AEL), mas “as academias eram exclusivamente masculinas”, então num movimento de afirmação feminista, Judith, fundou a Academia Feminina Espírito-santense de Letras (AFESL) e foi a sua primeira patrona. Participaram dessa primeira diretoria Arlette Cypreste de Cypreste, como vice-presidente, Zeni Santos e Iamara Soneghetti como secretárias e Virgínia Tamanini como bibliotecária, a elas se juntaram Ida Vervloet Finamore, Hilda Prado e outras escritoras e musicistas, o que fez com que a instituição fosse se firmando no cenário cultural capixaba.
Nos seus setenta anos de existência, a AFESL vem lutando para ser um espaço de livre produção para as intelectuais no Espírito Santo, desde os seus primórdios quando Annette de Castro Mattos, em 1950, organizou a “Vitrine literária”, primeiro registro das escritoras espírito-santenses, passando pelo programa “Mulher e perfume”, dirigido por Arlete Cyprete de Cypreste, na Rádio Capixaba, e que deu voz a muitas escritoras e artistas; a escritora Zeny Santos, que fundou a “Casa do capixaba”, o apoio dado pela AFESL ao Instituto Braile na sua criação, a criação do “Lar da Menina”, por Beatriz Nobre de Almeida e tantas outras ações das intelectuais capixabas.

É preciso criar espaços para que as mulheres do passado e do presente possam ter visibilidade, é fato. O Centro de Memória e Bens Culturais da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, em maio de 2019, realizou uma exposição de fotos e telas sobre a vida de Judith Leão Castello Ribeiro em comemoração aos 120 anos do nascimento da escritora e ex-deputada. Judith Leão foi também, a homenageada da 6ª Feira Literária Capixaba, presidida pela Academia Feminina Espírito-santense de Letras, na UFES, ocasião na qual o seu sobrinho, João Luiz Castello, ofereceu como doação à AFESL e hoje em exposição na ALES, uma estátua em bronze da escritora realizada pelo artista plástico capixaba Hipólito Alves. João Luiz doou para o acervo permanente da ALES todas as fotografias da exposição. A mostra foi uma iniciativa das Deputadas Iriny Lopes (PT), Janete de Sá (PMN) e Raquel Lessa (Pros) e idealizada pelo fotógrafo da Casa Antônio Carlos Sessa, em parceria com a AFESL. Foi graças ao esforço e a luta dessas pioneiras que as mulheres capixabas brilham, hoje, nos mais variados âmbitos da sociedade, no parlamento, nas academias, mas, ainda há muito pelo que lutar contra o preconceito de gênero e a violência. A representatividade das mulheres no espaço político ainda é pequena e o debate sobre questões importantes como a (des)igualdade e a cidadania das mulheres, especialmente das mulheres negras, devem ganhar o cotidiano.


Abraçar o legado deixados por essas mulheres excepcionais é necessário, especialmente em um momento histórico como o atual, no qual o Brasil vive um obscurantismo com relação às questões de gênero, exemplo disso é que o tema vem sendo subtraído das metas da educação nacional, acreditamos que resgatar a história de luta e conquistas de mulheres como Judith Leão Castello Ribeiro inspira os cidadãos e as cidadãs a militarem em prol da educação e pelo direito à livre expressão. 

26/09/2019

A hybris na poética florbeliana (prof.ª Dr.ª Renata Bomfim)


A mitologia grega registra variados casos nos quais o ser humano cometeu excessos, exagerou, violando o limite que lhe foi imposto pelos deuses, o metron. Esse pecado, sempre punido exemplarmente pelos deuses ou pelo destino, denomina-se hybris. O destino, representado pela Parcas (Clóto, Laquésis e Átropos) designava o quinhão a que cada homem teria direito, o seu lote de felicidade e/ou de desgraça, de vida e de morte. Entretanto, o orgulho, a arrogância, a paixão desmedida, davam origem a nêmesis, ciúme divino, e sobre o herói recaía a cegueira da razão.
            Acteon incorreu na hybris quando observou, escondido, a deusa Diana banhara-se nua sob o luar. A deusa transformou o ousado caçador num corvo e fez com que ele fosse devorado pelos próprios cães. Aracne, exímia tecelã, desafiou Atena para uma competição acreditando que teceria mais rápido e com maior destreza que a deusa. Vencida, a ninfa foi transformada em aranha e condenada a tecer pelo resto de sua existência. Entre os inúmeros casos de hybris na mitologia destaca-se o de uma jovem que se orgulhava imensamente de sua beleza, seu nome era Medusa. Esta julgou-se mais bela que a deusa Atena e foi severamente castigada, a deusa transformou-a num ser horripilante: fez com que seu maior orgulho, seus cabelos, se transformassem em serpentes, e com que o seu olhar petrificasse aquele que ousasse fitá-la.
            Na mitologia judaico-cristã Deus fez o homem “do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente”[1]. Entretanto, este ser feito de humo[2] (humano), nunca aceitou que a sua existência, por mais breve e efêmera, se resumisse a “pó, cinza e nada”[3], ele ansiou a eternidade,  sentiu fome e sede de infinito: o homem quis ser igual a Deus.
            Orgulho, arrebatamento e desejo de eternidade fazem de Charneca em Flor um caso de hybris poética. A ousadia de Florbela Espanca, assim como a da jovem Medusa, foi punida severamente. A poetisa, pelo seu canto insurreto e prenhe de estados nascentes, foi submetida a um processo disciplinar. As suas cartas nos dão conta do quanto a poeta sofreu com a calúnias e as maledicências durante a sua vida e como, depois de morta, teve o seu nome difamado e sua obra sofreu “estapafúrdias, desencontradas e insidiosas apropriações ideológicas”, como destacou a crítica Maria Lúcia Dal Farra[4]
            O livro Charneca em flor (1919) reúne a quintessência da produção poética de Florbela Espanca. Vale destacar como, desde a nascente desta obra, e os primeiros passos para a sua materialização, Florbela Espanca dedicou-lhe especial atenção, basta observarmos a minúcia com que a poeta pensou em cada detalhe: “a capa”, “o nome depois do título”, a revisão em “absolutamente todas as folhas”, o cuidado de mandar datilografar o manuscrito para guardar o original, com receio de que este se perdesse no correio, e a pressa dos amantes que, “não espera nem mais um dia[5]”, para que o livro fosse publicado. É sabido que Florbela não viu o livro publicado, Charneca em Flor foi a sua primeira obra póstuma.
            Em Charneca em Flor variadas imagens arquetípicas femininas nos arrebatam, dominam, e nos fazem ascender o “mais alto, sim, mais alto, mais além, do sonho, onde mora a dor da vida”[6], por meio delas tocamos, epifanicamente, o sublime. De acordo com Alfredo Bosi (2000) a imagem antecede a palavra e se enraíza no corpo. Amadas ou temidas, elas iemergem nos sonhos e se perpetuam, como ídolo ou como tabu, nos rondando e enredando, pois, está imbuída de algo que lhe transcende: Os símbolos. É no mito que os símbolos emergem desvelando os registros dramáticos das experiências vividas pelo eu lírico, seus encontros e desencontros. Este teatro é encenado como por meio dos ritos. Para Luís Alberto Ayala Blanco[7] o mito cumpre outra função, ele é uma porta pela qual o ser humano passa buscando elevar-se da miséria de ser um resíduo, ou seja, de ser pequenas migalhas que refletem o devastador resplendor do princípio, como observamos expresso neste fragmento do soneto intitulado Mendiga[8]:
[...]
No silêncio das noites estreladas
Caminho, sem saber para onde vou!

Tinha o manto do sol... quem mo roubou?!Quem pisou minhas rosas desfolhadas?!
Quem foi que sobre as ondas revoltadas
A minha taça de oiro espedaçou?!

Agora vou andando e mendigando,
Sem que um olhar dos mundos infinitos
Veja passar o verme, rastejando...


            Charneca em flor expressa de maneira singular essa busca pela origem, na qual o eu “Judeu Errante”[9], não se fixa e nem  é absoluto, mas, fragmentário, plural, precário, ou seja, detentor de uma humanidade profunda. Florbela Espanca escolheu para si o mundo da multiplicidade e sua poética joga com as formas do mundo: “Visões de mundos novos, de infinitos,/ Cadências de soluços e de gritos,/ Fogueira a esbrasear que me consome!”[10]. Os mundos criados por Florbela são híbridos, incorporam a completude e a incompletude, a fragmentação e a continuidade, o orgânico e inorgânico, e esta característica confere a sua poesia, especialmente as contidas no livro Charneca em Flor, uma sedução própria da alteridade.
            No poema O meu mal [11] observamos o eu lírico examinando a origem da “ânsia estranha” que sente, e da “saudade louca” que faz de si um buscador. Tal reflexão leva-o a desafiar titãs da tradição: dogmas, preconceitos e tabus que comandam o sistema patriarcal e falocrata, depreciador da mulher e dos valores femininos e terrenos. Num ato desafiador o eu lírico florbeliano despe a “mortalha”, num compromisso radical com a vida, e faz de si a própria charneca alentejana em floração, como observamos no poema de abertura do livro, seu homônimo:
[...]
Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim
? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...

Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
(ESPANCA, 1999, p. 209)

            O judaísmo, matriz do cristianismo, é um poderoso “protesto contra a natureza”[12] , da qual Florbela se ergue como porta-voz e representante. Esta doutrina fez com que as divindades femininas ligadas a terra fossem consideradas abominações, e com que os seus cultos fossem proibidos. Observemos que a palavra hebraica adam[13] significa “terra”, o que estabelece para a humanidade um pai-terra, Adão, e não da mãe-terra. Esta designação contrasta com as crenças que imperaram na antiguidade. Na Grécia, antes da ascensão dos deuses masculinos, o lugar mais sagrado do antigo mediterrâneo era o oráculo de Delfos, também chamado de Pítias ou Pitonisa, nome que deriva de Píton, gigantesca serpente que foi morta pelo deus masculino, Apolo. Esse rebaixamento das divindades femininas e ascensão das masculinas, fez com que o locus criativo da terra se transferisse para o céu, e com que a magia passasse do ventre para a cabeça. A mulher procriadora, bem como, o conceito de uma mãe-terra, integram a natureza ctônica combatida a milênios pelo patriarcado, e a cultura ocidental nasceu, especificamente, deste desvio da feminilidade. É aí que a poesia de Florbela Espanca, imbuída de um “ encanto mago”, adquire potência política e ideológica, evocando para o feminino, e seu representante máximo, a mulher, o lugar de direito. Florbela poetiza as múltiplas facetas do feminino, ela encarna tanto a Grande-mãe terra (Gaia): “E a erva altiva e dura do Marão/ É o meu corpo transformado em monte!”[14] , quanto a Grande-mãe cósmica (Nut): “Eu sou a manhã: apago estrelas!”[15].
            Natália Correia[16] no prefácio do Diário de último ano (1982) definiu Florbela como modelo de “sacerdotisa do feminino”, atributo venatório que iluminaria o seu ser mitológico, fazendo dela curadora e portadora de encantamentos: “Eu trago-te nas mãos o esquecimento/ Das horas más que tens vivido, Amor!/ E para as tuas chagas o unguento/ Com que sarei a minha própria dor”[17]. Observamos que na poética florbeliana as divindades femininas reprimidas retornam para participar da vida, deixam de ser ídolos fechados sobre si mesmos. A operação mítica, que transcende os espaços históricos e geográfico, possibilita as múltiplas metamorfoses do eu poético que, por meio da experimentação, pode torna-se “a charneca rude a abrir em flor”, “princesa entre plebeus”, “Aquela que tens saudade,/ A Princesa do conto: “era uma vez...”, “menina”, “Infanta do Oriente”, “Essa que nas ruas esmolou/ [...] a que habitou Paços Reais;/[...] Sereia que nasceu de navegantes.../ Essas que fui,/ As que me lembro ter sido ... dantes!” e,  muitas outras,  marcadas pelo desejo de “amar, amar perdidamente”[18].A celebração dos valores terrenos são expressos por meio do desejo do eu poético de adentrar o espaço sagrado da natureza, visto que os sentidos deste estão “postos, absortos / Nas coisas luminosas desse mundo”, o que faz com que se sinta “asa no ar, erva no chão” [19].
            No poema Podre de Cristo[20] observamos o reconhecimento da terra como o lugar gerador de sustento e abrigo: “Minha terra que nunca viste o mar,/ Onde tenho o meu pão e a minha casa”; “Minha terra onde meu irmão nasceu,/ Aonde a mãe que eu tive e que morreu/ Foi moça e loira, amou e foi amada!”. Ao fim do soneto o eu poético pede a terra que lhe alivie do cansaço da errância: “Sou um pobre de longe, é quase noite,/ Terra, quero dormir, dá-me pousada”. A terra guarda mistérios que não podem ser explicados pelo eu, apenas vividos, a “alma da charneca sacrossanta”, que é “Irmã da alma rútila” do eu lírico, encontra expressão. A chuva diz “coisas que ninguém entende”, dela, “Uma alada canção palpita e ascende,/ Frases que a nossa boca não apreende”, ao passar pelo rosto desperta “o lúgubre arrepio/ Das sensações estranhas, dolorosas...”. \o eu poético vivencia a tudo isso reconhecendo-se parte do mistério da vida guardada na morte: “Talvez um dia entenda o teu mistério...,/ Quando, inerte, na paz do cemitério,/ O meu corpo matar a fome às rosas!”[21]

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Outros textos sobre Florbela:

O AMOR NAS POÉTICAS DE FLORBELA ESPANCA E RUBÉN DARÍO. / Revista Interdisciplinar/ UFSE

Florbela Espanca e o devir monstro de uma poética fragmentada./ Revista Criola/USP