10/10/2022

O Coração da Medusa: Renata Bomfim e o Brasil (por Pedro Sevylla de Juana)

 

Se pode pensar que Vitória, capital do Espírito Santo, é uma ilha rodeada de praias cingidas por prédios altos. De certo modo é assim. Acontece também que, nas férias, as praias abraçadas pelos arranha-céus estão superpovoadas: pessoas de lá e forasteiros. Não obstante, é possível encontrar uma praia deserta; e eu a encontrei. Não era Namorados, nem Curva de Jurema; Era a longa, longa Praia de Camburi.

Em Camburi, a vida agita-se à noite como uma garrafa de champanhe e espuma. Mas na primeira hora da manhã eu passeava sozinho. Só não; Ali, perto, uma criança brincava na areia na beira da água, onde as ondas morriam e morriam. Pensava eu na enormidade complexa do Brasil, tentando decifrar a paisagem e as pessoas, enigma de natureza múltipla. Cheguei ao lado do menino e vi que estava ocupado enchendo um pequeno buraco, feito na areia com uma concha maior do que as mãos juntas. Com a mesma concha ele tomava a água que banhava seus pés para agonizar em silêncio, e depositou-a no buraco. Que fazes menino?, que jogo jogas?: perguntei. Sem interromper sua tarefa nem um momento, ele respondeu com uma voz que não parecia de criança, se não de adulto muito sério: Estou mudando de lugar toda a água do mar. Não entendi bem, e usando certa ironia perguntei: E onde a queres deixar? Neste buraco: respondeu ele com toda a firmeza do mundo.

Naquele momento, percebi a semelhança do meu encontro com o de São Agostinho, quando ele debatia em seu interior sobre o homem e a Santíssima Trindade. Eu estava pensando e pensando, para encontrar uma definição justa que abraçasse o Brasil sem deixar nada fora. Entendi que meu esforço era tão inútil quanto o do menino, bem como o do eminente santo. “Isto que vejo, tão complexo, tão exuberante, tão diverso, tão pobre, tão rico, tão escuro, tão colorido, tão árido, tão fértil, tão débil, tão forte, tão violento, tão terno; isto e mais: um conjunto de energias que somam e restam, um enigma intrigante que devo interpretar por mim mesmo; todo isso e bem mais, que não vou compreender nunca, é BRASIL.” Tardei meses, dia após dia, hora após hora, em chegar a essa conclusão; possivelmente incompleto e inexata.

Não obstante, gostei do resultado; parecia tão ajustado à realidade que eu queria transformá-lo em unidade e escala; definição que trata de ser exaustiva. Obstinação absurda, como eu vejo no instante de medir com ela O Coração da Medusa. No entanto, é nessa tentativa quando percebo que O Coração da Medusa é um livro profundamente brasileiro. E o excelente livro de poemas é tão profundamente brasileiro quanto sua autora, Renata Bomfim.

Renata Bomfim é uma poeta que embala os mitos infantis e os cultiva em seu seio, alimenta-os, mostra-lhes o caminho e leva-os à maturidade. Os mitos e o Brasil são consubstanciais. Me refiro a lendas e mitos muito diversos, de transmissão essencialmente oral. Há uma palavra que explica isso: Miscigenação. Mas Renata Bomfim não se conforma com a amplitude do significado daquela palavra de Gilberto Freyre, e desenvolve-a adicionando os mitos greco-romanos, que na juventude fez próprios por pura admiração. Renata procede dos índios Tupiniquim do Estado de Espírito Santo, de europeus portugueses e italianos, de africanos iorubas. Uns povos chegados pela força abominável da escravidão, e outros pela convocação interna que chama a cada um de acordo com sua natureza e suas necessidades: posse ou entrega; e as duas juntas às vezes. Miscigenação. Mas ela deseja conhecer causas e consequências; e estuda todo o que desperta em sua mente algum interesse. Se chega algo estranho, que ela considera valioso, o analisa, engole, digere e incorpora em seu ser. Antropofagia, na vontade pictórica de Tarsila do Amaral. Por esta razão, e pela origem de um dos ramos da família, Renata chega ao romano e, pouco depois, ao grego, incorporando-os em seu sentir e pensar.

Atuam em Renata as capacidades generativas que no Brasil, como nela, somam e subtraem. Luas crescentes e minguantes coexistindo e se impulsando até o equilíbrio. Renata Bomfin é uma excelente poeta dramática. Seus poemas mostram muito sentimento, abrangem e contêm muita vida, considerando a vida como aquele mistério que vamos decifrando a cada momento até o miolo indecifrável: o conhecimento-desconhecimento do próprio ser. Renata Bomfim é uma grande poeta da incerteza, entendendo a incerteza como um profundo conhecimento do desconhecido, da ausência, do que ainda falta completar. Esse conceito do Tudo / Nada, Vazio / Cheio, é a gênese da sua dualidade pessoal.

O afã da consolidação pessoal passa pela busca da verdade. Sempre a verdade, toda a verdade: perto e longe, abaixo e acima. Verdade que faz sua dotando-a de uma marca de água indelével muito pessoal. Sua escrita foge da imitação, não segue correntes; abre estradas e as consolida a força de transitar por ambos sentidos de direções diferentes. O paradoxo é sua arma mais desagregadora, a desintegração é sua ferramenta analítica, a análise é seu método de trabalho –atalho talvez, talvez rodeio- caminho da verdade última; se a verdade suprema existir, pois Renata Bomfim cavalga sobre a dúvida. A dúvida e a chegada à verdade são as faces da personalidade da artista capixaba, brasileira, universal. Vai ela captando o estranho mais afim, misturando-o com o melhor arraigado, para criar novos poemas enriquecidos, aprimorados.

O benefício e o dano estão considerados essenciais em O Coração da Medusa. Não como conformidade com o que não pode ser evitado, mas sim como reconhecimento de que, existente e inexistente, formam a essência em condições de igualdade. Não de forma estável e estática, senão de forma dinâmica e mutável. É o que é e o que ainda não é, unidos; e é ambas coisas endireitando as curvas na estrada, avançando, indo e progredindo. Como toda pessoa de pensamento e expressão, pensamento e expressão são baseados em fundamentos pessoais. Renata Bomfim se emociona com o simples e se intriga com o complexo, tentando separar seus elementos. Positiva o negativo, o dramatiza em seus versos, liquefazendo-o, sublimando-o. O drama desdobrado no papel resulta menos doloroso, facilita a pesquisa e sua eficácia terapêutica cresce. A dor nela é amiga, ferramenta em ocasiões, meio de purificação, ponto de embarque para a nova partida. Sai, depois de cada chegada, a lugares diferentes, que são os mesmos vistos com outro olhar. Suas feridas não apresentam cicatriz no contato, mas borbulham dentro do íntimo. A importância do mundo onírico é considerável na sua criatividade. Alguns de seus melhores poemas foram sonhos, nasceram de sonhos, sonhos com frequência reiterados.

As ideias sobre a origem e o fim, as teorias tecidas nesse ambiente, as práticas religiosas nas que participou ou das que teve conhecimento, moveram a sua olhada para O Grande Tudo, ou seu contrario equivalente O Grande Nada. Ou seja, aquilo que esvazia o cheio, o que preenche o vazio. Por ser dual em seu modo de ver o Universo -pessoa isolada e pessoa integrada no conjunto- ela explica nos seus poemas as imensuráveis magnitudes e a simplicidade próxima da ausência. Segundo suas experiências e conhecimentos, cada um dos inúmeros corpos dos quatro elementos, foi dotado de alma individual que forma parte da alma comum, essa alma infinita que respira a energia do Universo -matéria e antimatéria- procurando, não a nulidade, senão a síntese. Percebe Renata Bomfim o humano perseguindo a impossível integração de sensações, sentimentos, vontade, desejos, necessidades e objetivos na utópica felicidade, extensão da não menos utópica liberdade. Tudo o que existe real e imaginário, é animado; existe per se e ao mesmo tempo como consequência da existência geral. Causa e resultado, de acordo com sua poesia, formam uma unidade inseparável e agem e interagem dessa maneira no concerto universal.
Este livro de Renata, segundo a poeta pertence à Medusa, a intérprete. A razão pode vir de um eu lírico, autor verdadeiro e único, diferenciado, separado da pessoa da qual forma parte. E Renata Bomfim se justifica na crença de que o eu lírico possui conhecimentos e experiências localizados e adquiridos fora do resto da pessoa. Teoria do poema filho, posta em prática com rigor, o que pode explicar sua originalidade. Uma originalidade que não consiste apenas em levar o seu veleiro contra a corrente, senão em remar quando o vento entra em calma. Remar, trabalhar, experimentar todo: é um recurso que ela usa em seu progresso, um progresso evidente, ato por ato, verso por verso; que neste livro alcança o zênite.

Nada importante foi feito no tempo-mundo sem paixão. A paixão é a ilusão excedida, desencadeada, urgente, ágil, rápida, intensa: flecha impulsionada pelo arco em direção ao objetivo. Renata sabe disso e coloca a ênfase nisso. Os arquétipos femininos que ela estuda tanto, que tanto admira, viveram essa paixão; em alguns momentos oposta à felicidade com F, como ela a escreve, como ela a persegue sem resultado visível. Todos os aspectos aqui considerados, e os muitos beirados por pouco conhecidos, configuram, na soma das partes, o interior rico, real, vivo e ativo de Renata Bomfim; artista e literata de nervo e caráter, pessoa infrequente. O Coração da Medusa é o resultado de todo o anterior: lido, visto, imaginado, escrito, pintado, desenvolvido, sonhado, apreendido pela poeta. O Coração da Medusa é tudo o que foi dito acima, assimilado, refeito e entregado a outros pela autora com a intenção de mostrar-se em toda a sua completa integridade.

Pedro Sevylla de Juana.

Villeneuve sur Lot, Aquitânia, França. 

 

 

05/10/2022

RUBÉN DARÍO: RETRATO ÍNTIMO (Profa. Dra. Renata Bomfim)

 Renata Bomfim[1]

Visita ao túmulo de Rubén Darío. Catedral de León.

Dedico esta comunicação aos amigos(as) poetas nicaraguenses.

Foi pesquisando a literatura portuguesa que me deparei com a portentosa voz poética de Rubén Darío (18-01-1867- 06/02/1916). Desde então, visitei quatro vezes a Nicarágua, sua terra natal, onde tive a oportunidade de conhecer a casa onde nasceu, na antiga Metapa, hoje Cidade Darío, e a casa em León, onde passou a infância e adolescência com os tios-avós, o Coronel Ramirez e Dona Bernarda Sarmiento. Foi emocionante ver o retrato, tantas vezes observado em livros, do menino prodígio Félix Rubén García Sarmiento que, aos três anos de idade já sabia ler, aos oito escrevia poesias, e que submergia em leituras como O Quixote, As Mil e uma noites, a Bíblia; os Ofícios de Cícero e A Corina, de Madame Stãel”, nas incursões que fazia na biblioteca de seu tio-avô. (DARÍO, 1990, p. 8).  

Visitei a Catedral de Léon, conhecida como “Catedral da Luz” por sua luminosidade e amplitude, local onde estão sepultados os restos mortais do insigne poeta Rubén Darío, descansando guardado por uma escultura de rara beleza e dramaticidade: "O Leão que chora”. Sou profundamente agradecida pela oportunidade que tive e tenho de ter conhecido mais de perto a Nicarágua, sua gente e sua arte, e por poder dialogar com escritores, pesquisadores e poetas, muitos desses, para minha alegria, acabaram se tornando grandes amigos. 

Rubén Darío é uma das personalidades mais extraordinárias e inquietantes da história da literatura latino-americana. O poeta possui uma fortuna crítica de grande vulto, elaborada em diferentes épocas. Materiais vários que, no percurso da pesquisa de doutorado que realizei na Universidade Federal do Espírito Santo, entre os anos de 2010 e 2014, me permitiram delinear um “retrato íntimo” do poeta nicaraguense que busco compartilhar nessa comunicação. Esse retrato íntimo não ambiciona ser algo acabado, antes, busca destacar   aspectos que me marcaram de forma indelével durante o percurso de pesquisa da sua obra. 

O amor foi a porta por onde ingressei nos estudos darianos. Eros, esse arquétipo contraditório e extraordinário que abarca em si, tanto as necessidades do ser, quanto as suas potencialidades, a partir do poema “Amo, Amas”, de Cantos de Vida y esperanza, me guiou para novas e inusitadas paragens temáticas, como o mito e a política. Pedro Salinas (1948, p. 28) afirmou que “Es el amor a la poesía, la resulta voluntad de dedicar lo mejor de sí al arte”.

No poema “Amo, amas”, Darío repete sete vezes a palavra “amar”, uma vez a palavra “amo”, uma vez a palavra “amor”, e uma vez a palavra “amas”. No livro Historia de mis libros (2008, p. 30) o poeta fala a respeito deste poema: “pongo el segredo del vivir em el sacro incendio universal amoroso”. O amor, poeticamente cantado por Darío, tem como marca a continuidade: “Amar, amar, amar, amar siempre”, ou seja, para além do simples prazer que se esgota na carnalidade― embora esta seja uma das facetas complementares e privilegiadas da poesia dariana―, observamos um amor completo, íntegro, que se desprende das amarras da individualidade. Darío defende o amor como um exercício verbal que deve ser conjugado “con todo el ser /con  la tierra y con el cielo,/ con lo claro del sol y lo obscuro del lodo.(DARÍO, 2011, p. 427).

Na juventude, os primeiros arroubos amorosos do poetas lhe inflamaram a imaginação, ele afirma, na sua biografia, que após o ato amoroso: “Jamás escribiera tantos versos de amor como entonces. […] Esas exquisitas cosas de los amores primeros que nos perfuman la vida, dulce, inefable y misteriosamente (DARÍO, 1990, p. 22). Salinas (1948, p. 58) descreveria Darío com sendo: “el revolucionario máximo del concepto del amoroso”. E essa revolução pode ser observada no constante convite realizado pelo eu poético: “Ama tu ritmo e ritma tus acciones” (“Ama tu ritmo”), afinal, até “la fiera virgen ama” (“Estival”).

Para Francesco Alberoni (1998, p. 11) “erotismo não é um estado, é um processo” que traz como valor fundamental a alteridade, pois, ele se apresenta sob o signo da diferença. O longo percurso cumprido pelo eu poético dariano, mostra que o amor não respeita fronteiras: “Si te place, amor mio./ volvamos a la ruta/ que allá em la primavera/ ambos, de manos juntas/ seguimos embriagados/ de amor y de ternura” (“Pensamiento de Otoño”). Como diz o poema somente o amor torna possível superar “la montaña de la vida” (“Amo, amas”); é por isso que o amor, para Darío, se torna instrumento de revalidação do viver, se torna poesia e mito.

Amor, en fin, que todo diga y cante, 

amor que encante y deje sorprendida 

a la serpiente de ojos de diamante 

que está enroscada al árbol de la vida. 

(DARÍO, 2011, p. 299 ).

        

Darío compôs o poema “Amo, Amas” após ler Plotino e em diálogo estreito com Victor Hugo (1873-1907). Estes escritores persistem na repetição de palavras de caráter afetivo. Essa operação pode ser vista em Hipólito de Eurípedes, na voz do coro que clama: “amor, amor...”, “Eros, Eros”. O coro também se faz ouvir em Garcilaso de la Vega (soneto XXVII): “Amor, Amor” (MASSARO, 1954, p. 273).

No livro Azul... (1888), agrupados sob o título “El año lírico”, encontramos poemas que indicam que o tempo é propício para o amor e para a poesia. A floresta exuberante torna-se a casa de faunos, ninfas e deusas. Em “Primaveral” (DARÍO, 2011, p. 255), o eu poético dariano convida a amada para que possam tomar posse, juntos, do território sagrado da natureza: “Amada, ven. El gran bosque/ es nuestro templo; allí ondea/ y flora un santo perfume/ de amor”. As rimas, quais abelhas polinizadoras, “rondan a la vasta selva a recoger miel y aromas/ en las flores entreabiertas”.

Hoje, quando leio estes poemas, me vêm à mente o quanto a sociedade contemporânea dessacralizou a natureza, o que nos legou uma crise ambiental sem precedentes, e uma das lutas do movimento ambientalistas atual é que essa dimensão seja recuperada. É como se Darío orientasse a sua poesia como uma flecha certeira na direção desse nosso tempo.

Observamos que, na obra dariana, a natureza animada saúda os amantes que passam: “Es el Dulce tiempo de la primavera”. As ninfas desnudas brincam nesse reino, elas conhecem “himnos de amores en la hermosa lengua griega” (2011-g, p. 255). O eu lírico diz à amada que usará a flauta criada pelo deus grego Pã, em tempos antigos, para colocar nas suas rimas: “La palabra más soberbia/ de las frases, de los versos, /de los himnos de esa lengua”. Aquí, observamos uma característica cara ao movimento modernista hispano-americano, é o momento em que Darío se volta para o simbolismo francês e para o procedimento temático e estilístico dos chamados poetas decadentes. Juan Valera (DARÍO, 2011, p. 24) afirmou que na obra Azul..., “Cada composición parece um himno sagrado a Eros”.

Ainda no livro Azul..., o poeta se posiciona contra o homem prático e prosaico, o seu canto acontece em defesa da poesia e contra a mercantilização da arte. O poema “A un poeta” compara o poeta ao herói grego Hércules que, “louco”, ou seja, cegado pela paixão por Onfale, “la clava deja y el luchar rehúsa" (DARÍO, 2011, p. 276). Este poema é um alerta, uma convocação para que o poeta deixe o mundo idealizado dos poemas anteriores, onde impera o princípio do prazer, e se reinsira na realidade que é luta: “Cante valiente y al cantar trabaje”. O texto finaliza com a quadra: “Deje Sansón de Dalila el regazo:/Dálila engaña, y corta los cabellos. No pierda el fuerte el rayo de su brazo/ por ser esclavo de unos ojos bellos” (DARÍO, 2001, p. 277).

Este chamado será melhor entendido no poema seguinte, “Caupolicán”, que narra a heroica façanha do índio Toqui que se tornará chefe de sua tribo. Este poema é representativo da evolução da consciência poética dariana, indicando uma transição que se concretizará em Cantos de vida y esperanza, quando os valores hispano-americanos emergirão de forma mais contundente na sua escrita.

O mundo interior dariano, mítico e mágico, não é fechado nem imune a intervenções. A dimensão política anti-imperialista de sua obra pode ser observada no poema “Estival” que narra a invasão da floresta, a quebra do equilíbrio dinâmico do habitat natural, a desigualdade de condições entre a fera e o ser humano que, munido com armas, estabelece novas leis de confronto. Não há chance para a vítima, apenas a revolta e o sonho de vingança. Este poema segue a esteira dos contos que abrem a obra Azul..., como “El Rey burguês”, no qual o eu lírico denuncia o processo de subversão dos valores da sociedade, na qual o poeta se torna serviçal de um ignorante. No poema “Estival” vemos que as bestas amam e os seres humanos matam.

No prólogo de Azul..., Eduardo de la Barra (DARÍO, 2007, p. 148) destacou que Darío “pinta” os tigres de bengala ao estilo do escritor francês Laconte de Lisle, por conta das múltiplas e detalhadas imagens poéticas, como em uma pintura, mas, na sua crítica, não faz nenhuma menção a invasão Inglesa à Índia.

Esta poesia, de cunho eminentemente narrativo, mostra que o tigre sonha em devorar mulheres e crianças “rubios”, ou seja, de peles claras, como as crianças inglesas.  O eu lírico compara o rugido da tigresa que morre, com um “ay” de mulher, revelando a irmanação desta com o reino animal.  Ele compara, também, o tigre ao personagem sedutor Don Juan. O caçador é descrito com ironia, como se observa na referência a “fina raza” dos seus cães.  Além da nova estética, Rubén Darío teve uma posição firme frente aos movimentos políticos como defensor das causas liberais, exercendo “resistencia de las fuerzas conservadoras que se oponían a la modernización de esas sociedades”. (BLANDÓN GUEVARA, 2010, p. 105).

A obra Cantos de vida y esperanza se tornaria, para Darío, uma bandeira de resistência e afirmação da América hispânica, a partir do resgate histórico e literário da cultura pré-colombiana. Observemos o seu prólogo:

 

Si en estos cantos hay política, es porque aparece universal. Y si encontráis versos a un presidente, es porque son un clamor continental. Mañana podremos ser yanquis (y es lo más probable); de todas maneras mi protesta queda escrita sobre las alas de los inmaculados cisnes, tan ilustres como Júpiter (DARÍO, 2001-g, p. 378).

 

José Henrique Rodó havia dito que Darío não era o poeta da América, mas Darío, mostrou que os elementos de sua poesia iam sendo ressignificados, como por exemplo a imagem do Cisne que aparece em Prosas profanas y otros poemas. Em “Blasón” (DARÍO, 2011, p. 302) “el olímpico cisne de nieve”, animal de “estirpe sagrada”, surge como elemento artístico, vinculado as pinturas de Leonardo da Vinci, entretanto, logo a seguir, o poema “El Cisne” (2011, p. 339) mostra que “el Cisne que antes cantaba solo para morir”, agora abriga sob as suas brancas asas “la nueva poesia”, e no poema que encerra o livro, intitulado “Yo persigo una forma” (2011-g, p. 374), lê-se:“EL CUELLO DEL GRAN CISNE BLANCO QUE ME INTERROGA”. Vemos, assim, o cisne de Cantos de vida y esperanza emergir transformado, como esclarece o próprio poeta: “Por el símbolo císnico, torno a ver lucir la esperanza para la raza solar nuestra: elogio al pensador augurando el triunfo de la cruz; me estremezco ante el eterno amor” (DARÍO, 2008, p. 28).

A dimensão política da obra dariana pode ser observada em vários e importantes poemas como “A Roosevelt”, que preconiza a “solidaridad del alma Hispano-americana ante las posibles tentativas imperialistas de los hombres del norte”, proclamando a identidade espanhola desde a sua origem, a América “nuestra”, “católica” e “española”: (DARÍO, 2008-f, p. 26). 

Também no emblemático poema “Salutación del optimista”, observamos a autoridade religiosa com que o eu poético se enuncia: “Es con voz de la Biblia, o verso de Walt Whitman,/ que habría de llegar hasta ti, Cazador”. Nesse poema Darío fala como poeta da América e neto da Espanha, e adverte: “Tened cuidado. ¡Vive la América español!/  Hay mil cachorros sueltos del León Español”.

A autoridade do poema é corroborada, a partir do pressuposto bakhtiniano do dialogismo, pois, mesmo se apropriando de um discurso autoritário como é o discurso religioso, o poeta se vale de múltiplas vozes (polifonia) para que o seu canto seja ALTERITÁRIO. Na poética dariana a esperança está nos campos da resistência e da política.

O poema “Saluptación del otimista” foi escrito na Espanha, durante a madrugada, como relatou Vargas Vila, ele é uma resposta que Darío deu à desolação produzida pela guerra que testemunhou na Espanha. O poeta produziu esse poema motivado, também, pelo convite que recebeu, por parte do Ateneu de Madri, para ler um poema seu. Para Massaro (1974, p. 185) este poema poderia ser apenas uma “feliz improvisación”, afinal o poeta já havia declarado que costumava improvisar seus versos, seja na mesa de um café, seja na redação do jornal, mas, pode ser mais do que isso: a concatenação de suas ideias acerca do hispanismo, da poesia, e da política.

A Espanha havia enfrentado uma forte depressão a partir da derrota para os Estados Unidos na guerra de 1898, quando perdeu suas últimas colônias, incluindo Cuba. Este poema nasceu em 1905, depois que o poeta havia cumprido a sua missão como correspondente do La Nación em Madri, e no momento em Darío recebe o reconhecimento da intelectualidade espanhola. “Salutación del optimista” abriga uma constelação de versos raros. Nele, Rubén utilizou o hexâmetro como estratégia combativa na afirmação da hispanidade, uma forma de protesto contra a intervenção Norte-americana que ameaçava a América.  O poeta se designa ‘otimista’, volta à raiz da raça e saúda os seus pares: “Ínclitas razas ubérrimas”, posicionando-se como um neto da Espanha. O eu lírico saúda e convida à fraternidade: “espíritos fraternos, luminosas almas, ¡salve!”.  Como destacou Mário Mendes Campos (1968, p. 94), “o poeta, agora, emancipado de antigas seduções que o haviam enclausurado em solitários castelos, está identificado com as dores do mundo e as angústias da existência”. Mas, a sua postura é de otimismo, sentimento que brota do íntimo e se alimenta na fé inabalável que investe na raça hispânica: “Un continente y otro renovando las viejas prosapias,/ en espíritu unidos, en espíritu y ansias y lengua,/ ven llegar el momento en que habrán de cantar nuevos himnos. 

O eu poético em “Salutación del optimista” prenuncia o renascimento de um povo sob a égide da esperança: “y en la caja pandórica de que tantas desgracias surgieron/ encontramos de súbito, talismática, pura e riente,/ [...] La divina reina de luz, ¡La celeste Esperanza!”. Darío, como bem destacou no prólogo da obra, destaca a latinidade que coloca tanto a América, quanto a Pensínsula Ibérica como colonizadas, nesse caso, pela “Loba romana”. A “latina estirpe” tem os olhos voltados para o futuro e comprometidos com a esperança. Vale destacar que o poeta, desde menino, foi simpatizante do movimento liberal, bem como, militante do Movimento Unicionista Centro-Americano. Ele acreditava que as colônias: Guatemala, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica e Honduras, poderiam se juntar sob uma mesma bandeira. O Coronel Máximo Jerez, seu padrinho de batismo, foi um dos líderes desse movimento. A última tentativa de unificar a América Central foi realizada por Justo Rufino Barrios, ex-presidente da Guatemala, que era seguido pelos escritores liberais, entre eles o nicaraguense Enrique Gusmán. A poesia de Rubén Darío é uma poesia de resistência pois ativa a memória histórica do povo americano e, dessa forma, participa do processo de descolonização.

No ensaio intitulado “A construção de uma literatura”, publicado em 1960, Rama corrobora essa ideia salientando que “o espírito sopra onde quer, e quando o faz na Nicarágua, desponta um Rubén Darío''. Esse é o milagre da alta criação artística” (RAMA, 2008, p. 49).  Para Rama, o desafio e a premência de se “construir uma grande tradição” a partir de nós mesmos, latino-americanos, é uma tarefa que será possível, apenas, a partir da reordenação do passado (RAMA, 2008, p. 35).

Rubén Darío deixou para o mundo da literatura um legado poético construído com maestria e amor. Ele dedicou a vida às letras em um mundo onde cada vez mais elas viravam mercadoria. Darío aos meus olhos, é um poeta que viveu intensamente, ciente do seu papel enquanto intelectual latino-americano, ele é a prova de que uma obra de arte não deve ser encerrada dentro de um tempo, pois ela se atualiza e, assim como o seu retrato, ganha novos contornos. Observo na obra dariana um influxo misterioso, algo que não se deixa apreender, que emana encantamento e fascina, emociona, seduz, esse elemento misterioso, matéria sutil do poético, deve ser captado durante a leitura, como quem vislumbra na noite o brilho de um vaga-lume. 

Referências:

DARÍO, Rubén. Autobiografia: oro de Mallorca. Introducción de Antonio Piedra. España: Mondadori, 1990.


SALINAS, Pedro. La poesia de Rubén Darío. Buenos Aires: Editora Losada, 1948.


DARÍO, Rubén. Obra poética completa de Rubén Darío. Prólogo de Julio Valle Castillo e organización de Ernesto Mejía Sanchez. Managua: Editorial Hispamer, 2011.


DARÍO, Rubén.  Azul…: Rubén Darío: Barcelona: Editora Bröntes, 2011.


ALBERONI, Alberto. Enamoramento e Amor. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

MASSARO, Anturo. Rubén Darío y su creación poética. Bueno Aires: Editorial Kapelusz, 1954.


DARÍO, Rubén. Azul…, Cantos de vida y esperanza. Introducción y comentarios de José María Martínez. Madrid, Cátedra, 2007.


BLANDÓN GUEVARA, Erik. Discursos Transversales: La recepción de Rubén Darío en Nicaragua. Prólogo de Leonel Delgado Aburto. Managua: Banco Central de Nicarágua, 2011.


BLANDÓN GUEVARA, Erik. Rubén Darío: mutilación e monumentalización. In: BROWITT, Jeffrey; MACKENBACH, Werner. (Org.). Rubén Darío: cosmopolita arraigado. (Org.). Manágua: IHNCA-UCA, 2010. p. 104- 126.


BLANDÓN GUEVARA, Erik. Discursos Transversales: La recepción de Rubén Darío en Nicaragua. Prólogo de Leonel Delgado Aburto. Managua: Banco Central de Nicarágua, 2011.


BLANDÓN GUEVARA, Erik. Rubén Darío: mutilación e monumentalización. In: BROWITT, Jeffrey; MACKENBACH, Werner. (Org.). Rubén Darío: cosmopolita arraigado. (Org.). Manágua: IHNCA-UCA, 2010. p. 104- 126.


DARÍO, Rubén. Rubén Darío: Azul…, Prosas profanas, Canto de vida y esperanza. Introducción e comentarios de  Antonio Alvar Ezquierda, Edgardo Buitrago, Pedro Carrero Eras, Ricardo Llopesa y Nydia Palacios. León: UNAM/ Universidad de Alcalá Programa de cooperación con Centroamérica, 2008.


DARÍO, Rubén.  Historia de mis libros. Managua: Amerrisque, 2008.


RAMA, Angel. Literatura, Cultura e Sociedade na América Latina. Organização, seleção e apresentação de Pablo Rocca. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.


***Esse texto foi escrito e apresentado no I Simpósio Internacional Rubén Darío e Juan Ramón Molina, em Vitória, ES, Brasil.

04/10/2022

Dia Mundial dos Animais (Instituto Ambiental Reluz)


O Instituto Ambiental Reluz, desde a sua fundação, dedica esforços e cuidados para com os animais, seja por meio da manutenção da RPPN Reluz, com a soltura de animais silvestres, ou por meio da militância, que cobra do poder público, leis e proteção.

Conheça os trabalhos do Reluz 

www.ambientalreluz.com.br 


Os apaixonados do infinito (poema de Renata Bomfim)


Os apaixonados do infinito,

Sabem que vão morrer,

Mas sabem também que

permanecerão intactos,

No doce vazio do não ser. 


(Vitória, ES, 03 de outubro de 2022)


11/09/2022

X Bravos Companheiros e Fantasmas: Seminário do autor capixaba (16/09/ CCHN-UFES)


PROGRAMAÇÃO
16 de setembro de 2022
Auditório do IC-2 – CCHN - Ufes

Manhã:

9:00 Abertura
9:10 Palestra I
9:10 “Achilles Vivacqua, capixaba pioneiro do Modernismo”, 
de Francisco Aurélio Ribeiro. Mediação de Vitor Cei
10:00 Conversa com escritores/as I
10:00 Caê Guimarães
10:20 Renata Bomfim
Mediação de Igor Ahnert
11:30 Desfecho da programação da manhã.

Noite:
18:30 Palestra II
18:30 “Aspectos estéticos em Serenidade, de Achilles Vivacqua”, de Andressa Zoi Nathanailidis. Mediação de Paulo Roberto Sodré
19:30 Conversa com escritores/as II
19:30 Hugo Estanislau
20:00 Junia Zaidan
Mediação de Daniella Bertocchi
21:00 Encerramento.

As informações constam também no blog 
e no Instagram do Neples.

Academia de Letras de Vila Velha promove encontro com as escritoras Renata Bomfim e Anne Mahin.

Florbela Espanca (1894-1930) viveu uma época na qual Portugal vivia uma grande conturbação política, que passou pela queda da Monarquia, a ascensão da República e o Estado Novo, que instaurou um período de ditadura no país conhecido como "salazarismo". Todos esses acontecimentos atravessam a escrita poética dessa grande escritora portuguesa que, viveu um nomadismo marcante em busca de um lugar para chamar de seu no mundo.

09/09/2022

Amor e humor em Vento Sul, de Carmélia Maria de Sousa, a cronista do povo (Profa. Dra. Renata Bomfim)

  


 Carmélia Maria de Sousa (1936- 1974), a “cronista do povo”, como ela própria se intitulou em entrevista concedida para O Diário, em 1971, é uma cronista capixaba cuja obra é marcada pelo seu tempo, pois, a escritora surgiu no cenário literário encarnando a voz da contracultura, em 1958, traduzindo as inquietações de sua geração.

A irreverência de uma escrita marcada pela ironia e, ao mesmo tempo, poética e afetiva, fez com que a Carmélia angariasse um público cativo pelo qual tinha grande carinho: “me sinto honrada quando me chamam de “cronista do povo”, para este povo que eu respeito e amo que continuarei a escrever [...]. Já que não o posso carregar nos meus braços, carrego-o no coração” (SOUSA, 2002, p. 133).

Francisco Aurélio Ribeiro destaca que desde a década de 1940, as escritoras capixabas vinham conquistando espaços em variados âmbitos, especialmente após 1946, quando chegou ao fim o regime ditatorial de Vargas, que perseguiu escritoras feministas como Haydée Nicolussi, ¾que tinha o agravante de ser comunista¾, a escritora foi presa em 1935 e posteriormente vigiada pela polícia getulista, sendo, inclusive, impedida de trabalhar com o próprio nome. Com um pouco mais de liberdade, as escritoras capixabas foram se agregando e, em 1949, foi fundada a Academia Feminina Espírito-Santense de Letras (AFESL), entretanto, o passado esquerdista das escritoras Haydée Nicolissi e Lígia Besouchet fez com que ambas fossem excluídas do núcleo inicial da AFESL. Alguns anos depois, Carmélia Maria de Sousa teria a sua candidatura rejeitada na mesma Academia de Letras. Agostinho Lázaro considerou Carmélia Maria de Sousa uma das melhores cronistas do Espírito Santo e Francisco Aurélio Ribeiro declarou que ela foi a responsável por popularizar a crônica escrita por mulheres no Estado. A obra de Carmélia é permeada pela poesia, fala de amor, solidão, esperança e de outros temas que evocam vivencias que nos irmanam independente do tempo. Outro aspecto relevante nos seus escritos é a ironia, direcionada, especialmente, a alta sociedade capixaba, que ela “espinafrava” sem rodeios, e também às pessoas que ousavam falar mal da “Ilha”.

No ensaio intitulado “Muito além do Milk Shake” (2002, p. 183), Reinaldo Santos Neves perguntou: “Quem foi Carmélia Maria de Souza?” hoje, nós fazemos a mesma pergunta.

Chega-nos um retrato de mulher, “com jeito de homem”, com mania de usar sempre calça comprida e de viver sempre acompanhada por homens (2002, p. 184). Afastada de “joias, adereços, maquiagem”, Carmélia tinha como companheira dos últimos anos “a famosa bengala” e, pontual, usava um relógio de pulso para não se atrasar nos compromissos. “Ambição? Nenhuma”, afirma Santos Neves, que logo conclui ser “difícil, talvez impossível definir Carmélia”. Sabemos que o retrato é uma imagem que busca representar alguém, ele não é a pessoa, mas, guarda desta, traços fundamentais, imaginários e, muitas vezes delirantes. Assim compreendemos que tudo o que se falar sobre Carmélia, será um desdobramento dessas imagens, e que esses retratos vão se modificando de acordo com o tempo. Tanto os olhares se modificam com o tempo que, hoje, Carmélia Maria de Sousa é patrona de uma cadeira na AFESL. Compartilho com os senhores(as) a imagem que faço dessa mulher singular ansiando que outros pesquisadores lhe dê os devidos cortes ou retoques. 

         Amylton de Almeida, foi amigo da cronista das redações dos jornais[2] e da “boemia caseira, feita com pureza e humildade”, para ele Carmélia foi a “Miss Stein” da Geração fim de álcool de Vitória e o seu trabalho sempre guardava “o necessário senso de humor para enfrentar as asperezas e a grosseria de uma cidade que às vezes, não entendia [essa geração] a quem nada fora prometido e cuja única opção era utilizar a ironia e o sarcasmo para sobreviver às confusões” (2002, p. 25).

Agora, uma descrição de Carmélia, segundo ela mesma: “grossíssima, péssima companhia noturna, diurna ou vespertina; devemos a Deus e ao mundo, mau-caráter, desgraçada, temperamental, neurótica, falsa, inconstante, cínica e debochada. Favor não ficar sentado em nossa mesa quando não for convidado, não. Nós somos o fim da picada, se você quer saber”.

         Possivelmente, esse jeito carmeliano de ser, que a colocava na contramão do ideário feminino da época, tenha lhe impossibilitado ingressar na AFESL, e possivelmente, também, tenha imprimido à sua escrita, uma marca de solidão. Quixotesca, Joana D’Arc inspiradora de um “exército de bem intencionados”, Carmélia escandalizou a TSC (a Tradicional Família Capixaba) com a sua vida boêmia regada a uísque, vinho, conhaque e pinga, devidamente acompanhados pelo cigarro e por palavras e palavrões (2002, p. 184). Mas, na sua simplicidade, a escritora tinha consciência do que realmente era importante, ela afirma que trazia consigo, desde a infância, um ideal na alma, e valores herdados de seu pai que possuía “mãos honestas” e “olhos limpos”, mãos e olhos que a ensinaram a “amar a liberdade e a repartir a Verdade, o Amor e o Pão” (2002, p. 133). Apesar da incompreensão, Carmélia afirmou o seu compromisso de continuar “misturando palavras”. As vezes, segundo ela, tinha a necessidade de silenciar, mas as vezes sentia o desejo de gritar, especialmente quando o “medo” arranjava um jeito de entrar na sua vida. O grito de Carmélia é produto do assombro da escritora pela falta de amor. Na crônica “E me vieram perguntar” a escritora declara que “o maior problema que existe no Estado do Espírito Santo [...] é a falta de amor”, e que tinha encarado como “filosofia de vida”: “botar o amor acima de qualquer outra coisa que exista” (2002, p. 132). Há ainda nos seus escritos, a expressão de uma a saudade, ora indefinida, ora descrita como nostalgia do não vivido, esse sentimento possui raízes nas decepções que marcaram a vida da escritora desde a infância, vivências como a perda da mãe aos dois anos de idade, a doença que a obrigou a deixar o convívio familiar, de forma que Carmélia afirme ser impossível visitar a casa onde nasceu. Há uma crônica sem titulo na qual a escritora fala sobre a experiência da internação em uma clínica em Barbacena, Minas Gerias, quando tinha dezesseis anos: “Me mataram numa tarde [...], num quarto de hospital”:

A febre queimava meu rosto, minhas mãos, minhas esperanças destroçadas. O meu pulmão e a minha alma mutilados. Os pedaços de minha juventude e do meu coração. A minha vida partida pela metade [...]. E eu morria todas as manhãs, sem nunca ter vestido um vestido cor de rosa (SOUSA, 2002, p. 102-103).

A partir desse texto, podemos vislumbrar que esse episódio significou uma ruptura na vida de Carmélia, privando-a de um afeto essencial: “E amei errado, sem medir a quantidade” (SOUSA, 2002, p. 103).

Será a partir da segunda parte de Vento Sul que a tópica amorosa se fará mais presente na obra de Carmélia. A desmedida, ¾hybris¾, se reproduziu em outras instâncias da vida da escritora, inclusive com relação à bebida que lhe legou uma cirrose fatal.

Carmélia é conhecida como “a rainha da fossa”, ou seja, alguém que conhece de perto o sofrimento: “Não me envergonho de confessar que a vida me tem maltratado, e que vou aprendendo a sofrer quando é preciso” (SOUSA, 2002, p. 34). Mas as fossas “financeira”, “íntima”,  “jornalística”, entre outras, não abalaram o seu amor pela vida e, especialmente, o seu humor, como observamos na crônica “É tempo de otimismo, acho eu”: “Descobri que sou bárbara, dona de um estilo verdadeiramente universal, preciso urgentemente me mandar para Guanabara, pois Vitória já não está a altura de receber a minha genialidade, nem por aqui existiriam horizontes dignos e devidamente alargados onde eu pudesse caber. A mim me cabe, portanto, dar uma banana para vocês e me mandar de mala e cuia para o Rio de Janeiro” (SOUSA, 2002, p. 55).

Como observamos, Carmélia brinca com o seu leitor, mas, por traz dessa singela brincadeira, códigos que apenas os capixabas entenderão.

No decorrer da leitura da obra de Carmélia, observamos que a escritora empreende uma busca pelo sentido na vida “entre pedaços de noite e de saudade, fumando cigarros e ouvindo Bach em surdina”, nessa “vigília”, ela afirma esconder-se dos outros e fugir de si: “crucificada sobre todas as saudades” (2002, p. 66).  Observamos, também, o tom confessional com que a escritora afirma a sua incapacidade de escrever Vento Sul: “Não adianta insistir para eu escrever o meu livro, porque jamais conseguirei escrever livro algum” (SOUSA, 2002, p. 64). É com um sinal de menos, Carmélia vai se construindo ficcionalmente frente ao leitor, acabando por se tornar uma espécie de anti-heroína:

Há muito desisti de tudo, há muito que não sou capaz de acreditar em coisa nenhuma. Tenho até pensado em apelar, ir procurar uma cartomante bem doida, que faça o milagre de me devolver a fé nos outros e em mim (SOUSA, 2002, p. 65).

Em meio a uma “crise existencial-política-espinafrativa-avulsa” que a deixou “atacadíssima”, Carmélia colocará para tocar na “eletrola” a música “Guantanamera” e, nesse momento, compreenderá que o que realmente deseja é conversar com alguém pelo telefone, assim poderia “pedir socorro”, falaria então “o diabo, xingaria os homens, amaldiçoaria o Flamengo e a humanidade”, mas, ao final da crônica reconhece ser impossível o intento, pois: “não tenho telefone” (2002, p. 106). “Sob a longa noite” da sua vida, acompanhada da saudade do primeiro amor e dos amigos a quem confiou “a sua dor de cotovelo” e a “fossa de amor”, Carmélia caminha convicta de que é impossível esquecer “o tempo e o riso”.

         Retomamos a questão da hybris amorosa carmeliana, que parte do ímpeto do eu lírico de amar sem medidas e sem restrições. A parte segunda de Vento Sul apresenta uma série de poemas em prosa que mostram a potencia desse sentimento que, para a escritora dá significado à vida:

Amo você. Seu sorriso. Seu pranto. Sua ternura. Amo você. Seu passado. Seu presente. Seu sucesso. Seu fracasso. Amo você. Suas tardes. Suas noites. Suas manhãs de sol. Seus domingos sem sino batendo. Amo seus filhos, que não foram nascidos de mim. Amo o bar que você não frequenta. Amo o nome que você não aprendeu a chamar. Amo suas crises de solidão, suas lembranças, suas fugas. [...] Amo suas mãos, seu nariz, sua cor, seus cabelos. Amo tudo que você deixou de dizer e que por isso mesmo escutei. Amo o mundo que é feito de você. (SOUSA, 2002, p. 103).

O derramamento amoroso observado nesse poema poderá ser visto em outros textos, assim como o se “despedaçar de amor”, que fará com que emerja o Outro na escrita: Carmélia convidará “Félia” para que “seja testemunha desse amor” (SOUSA, 2002, p. 86).

Após um percurso de sofrimento e de dor, com relatos permeados pela ironia e pelo humor, nos deparamos com uma Carmélia bastante vulnerável, mas será a partir dessa falta fundamental e da abertura para o Outro que residirá a potência da sua escrita, pois, segundo a escritora, ela  é “o amor que não teve” (SOUSA, 2002, p. 102).

         Carmélia ama seus amigos, considera-os irmãos por escolha. Além dos amigos Carmélia elegerá outro objeto de amor: a cidade de Vitória. Delícia para Carmélia são os lugares onde nascem, vivem e morrem os amores que as pessoas possuem, assim, podemos compreender melhor o porquê da frase: “Essa Ilha é uma delícia”. O escritor e dramaturgo Milson Henriques, destacou em uma reportagem que uma boa dose de ironia fez nascer a famosa declaração, mas, que Vitória, para Carmélia, é um lugar único, destacado de todos os outros do mundo, inclusive Paris, centro de tudo o que é chique no mundo. A cidade de Vitória é elevada ao patamar de personagem nos escritos carmelianos. Na crônica intitulada “O deletério do povo Capixaba”, Carmélia “espinafra” as pessoas que falam mal da cidade por não compreenderem as suas peculiaridades. Essa Ilha (“ô Ilha”) será defendida por Carmélia em variados textos:

 O diabo é que vocês não aprendem a enxergar a coisa como ela é. E estão sempre prontos a me chamar de doida todas as vezes em que eu escrevo que a rua Duque de Caxias é linda, bárbara, importantíssima, [...] é uma rua com alma é coração, capaz de comover a gente por causa de seu lirismo, de sua beleza antiga, de sua poesia. Vocês não alcançam a importância de uma cidadezinha como Santa Tereza [...] o turista é capaz de sair daqui completamente gamado, [...] é capaz até de sentir inveja da gente. Enquanto vocês seus bobocas, não sabem valorizar as coisas que têm. Só querem mesmo é bagunçar o coreto, ficam aí reclamando e se esquecem de que nosso Estado, especialmente Vitória- possui coisas lindíssimas. Se esquecem de que a Ilha, também é uma cidade maravilhosa, à sua maneira.

(SOUZA, 2002, p. 76- 79).

Assim, Carmélia torna-se porta-voz da Ilha de Vitória: “A Ilha está pedindo para que vocês a deixem crescer”, “a Ilha quer saber se lá fora o seu nome é pronunciado com admiração e respeito” (SOUSA, 2002, p. 78). Como observamos, Carmélia ama sem limites, e essa desmesura, num crescente, a levará a fazer de si cidade, ou de fundir-se a ela: “Eu sou a Rua Duque de Caxias” (SOUSA, 2002, p. 78).

O ímpeto que levou Carmélia a chamar “Fèlia” para o diálogo dará forma a Dindí, símbolo romântico a quem a escritora recorrerá nos momentos de angústia e solidão. Carmélia se inspirou na personagem homônima da música criada por Tom Jobim e interpretada por Silvinha Teles. A Dindí carmeliana é depositária de grande confiança por parte da escritora, ela é a herdeira dos livros de Carmélia, a incumbida de cuidar do espólio e, especialmente, de fazer vir a lume o livro Vento Sul. No diálogo poético, com tom de despedida, intitulado “testamento”, Carmélia diz: “Deixo as minhas crônicas (publicadas ou inéditas) para você. Deixo também para você os personagens de um livro que jamais terminarei de escrever. Termine-o por mim, Dindi! Escreva o Vento Sul” (SOUZA, 2002, p. 173, grifo nosso). Os diálogos entre Carmélia e Dindí são de grande lirismo e intimidade, observemos no fragmento da “Crônica com endereço certo”:

Além do mais Dindi [...] Eu nunca soube falar as coisas que deveria falar, você me conhece bem, você sabe como sou imbecil, tímida, completamente desajeitada [...]. Sou, enfim, sou uma pessoa distraída e tresloucada, um caso perdido, uma pobre diaba. Viver, para a pessoa que sou hoje em dia, é esta aflição imutável, é este desespero de perder tudo, de repente descobrir que tudo voltou aos devidos lugares. Este viver de abrir os braços e dar a impressão muito falsa de que estou sempre preparada para o que der e vier. No fundo, você sabe, sou medrosa e covarde como o diabo. E, embora não pareça, tenho a alma atormentada e não me conformo com nada (SOUZA, 2002, p. 134)

 

Na crônica “testamento” (SOUZA, 2002, p. 173) Carmelia se despede, ela externa o desejo de que seus sapatos calcem “os pés descalços dos pobres”, e aos amigos declara: “parti feliz”, afinal, a esperam os braços de seu pai e a ternura de sua mãe, e aos que a condenaram fica a declaração de que foi “uma pessoa simples e bem intencionada”. A escritora finaliza a crônica declarando aos seus amigos: “O seu amor justificou o meu amor e a ternura dos meus gestos [...]. É assim que os espero nas esquinas dos astros, em alguma nuvenzinha azul” (SOUSA, 2002, p. 174).

A imersão na escrita de Carmélia Maria de Souza permite que vislumbremos um pouco espírito criativo dessa escritora irreverente, ousada, corajosa e que soube, como poucos, se comunicar com o público capixaba. Vento Sul é uma obra hibrida que abriga crônicas e poemas em prosa, além de acolher um rico repertório de temas ainda pouco estudados dentro da obra de Carmélia. Essa obra foi publicada postumamente em 1974, após dois anos da morte da escritora. A primeira edição veio a lume pela Fundação Cultural do Espírito Santo, com notas e introdução escritas pelo jornalista Amylton de Almeida. O livro teve ainda duas reedições, uma em 1994[3] e outra em 2002[4]. 

REFERÊNCIAS:

¾   SOUSA, Carmélia Maria de. Vento Sul. Conselho editorial da Gráfica Espírito Santo: Vitória, 2002.

¾   RIBEIRO, Francisco Aurélio. Aspectos do feminino na crônica das escritoras capixabas : Haydée Nicolussi (1905-1970), Guilly Furtado Bandeira (1890-?), Zeny Santos (1930-1986), Carmélia Maria de Souza (l936-1974) e Marzia Figueira (l938-2000).




[2] Carmélia Maria de Souza foi Funcionária Pública Federal, trabalhou no Museu de Arte Histórica de Vitória, situado no Solar Monjardim, na Biblioteca da FAVI, e durante dezessete anos de vida jornalística, colaborou com jornais e revistas estudantis, trabalhando nos principais jornais da capital: Sete Dias, O Diário, Vida Capixaba, A Tribuna, A Gazeta, O Debate e Jornal da Cidade (acesso em 23 de fev. 2008). Parte do acervo que continha seus escritos foi destruído em um incêndio na década de oitenta, eram crônicas publicadas em A Tribuna e O Diário

[3] Em 1994, fruto da parceria entre a Rede Gazeta de Comunicações e a Universidade Federal do Espírito, a obra chegou ao público leitor como encarte de jornal e, em 2002, após ter sofrido algumas supressões no texto, foi publicada completa, permanecendo na íntegra a introdução feita por Amylton, além de toda a matéria em homenagem à Carmélia publicada na revista Você, n. 24, de junho de 1994.

[4] Texto retirado do folder da exposição intitulada “Carmélia, Félia, Magnólia”, de fotos escritos de Carmélia Maria de Souza. Divisão de Memória do DEC