11/02/2023

O emparedado (Cruz e Souza/ 1861- 1898)

 

Ah! Noite! Feiticeira Noite! Ó Noite misericordiosa, coroada no trono das Constelações pela tiara de prata e diamantes do Luar, Tu, que ressuscitas dos sepulcros solenes do Passado tantas Esperanças, tantas Ilusões, tantas e tamanhas Saudades, ó Noite! Melancólica! Soturna! Voz triste, recordativamente triste, de tudo o que está morto, acabado, perdido nas correntes eternas dos abismos bramantes do Nada, ó Noite meditativa! Fecunda-me, penetra-me dos fluidos magnéticos do grande Sonho das tuas Solidões panteístas e assinaladas, dá-me as tuas brumas paradisíacas, dá-me os teus cismares de Monja, dá-me as tuas asas reveladoras, dá-me as tuas auréolas tenebrosas, a eloquência de ouro das tuas Estrelas, a profundidade misteriosa dos teus sugestionadores fantasmas, todos os surdos soluços que rugem e rasgam o majestoso Mediterrâneo dos teus evocativos e pacificadores Silêncios! 

Uma tristeza fina e incoercível errava nos tons violáceos vivos daquele fim suntuoso de tarde aceso ainda nos vermelhos sanguíneos, cuja cor cantava-me nos olhos, quente, inflamada, na linha longe dos horizontes em largas faixas rutilantes. O fulvo e voluptuoso Rajá celeste derramara além os fugitivos esplendores da sua magnificência astral e rendilhara d’alto e de leve as nuvens da delicadeza arquitetural, decorativa, dos estilos manuelinos.

Mas as ardentes formas da luz pouco a pouco quebravam-se, velavam-se e os tons violáceos vivos, destacados, mais agora flagrantemente crepusculavam a tarde, que expirava anelante, num anseio indefinido, vago, dolorido, de inquieta aspiração e de inquieto sonho... E, descidas, afinal, as névoas, as sombras claustrais da noite, tímidas e vagarosas Estrelas começavam a desabrochar florescentemente, numa tonalidade peregrina e nebulosa de brancas e erradias fadas de Lendas...

Era aquela, assim religiosa e enevoada, a hora eterna, a hora infinita da Esperança...

Eu ficara a contemplar, como que sonambulizado, como o espírito indeciso e febricitante dos que esperam, a avalanche de impressões e de sentimentos que se acumulavam em mim à proporção que a noite chegava com o séquito radiante e real das fabulosas Estrelas.

Recordações, desejos, sensações, alegrias, saudades, triunfos, passavam-me na Imaginação como relâmpagos sagrados e cintilantes do esplendor litúrgico de pálios e viáticos, de casulas e dalmáticas fulgurantes, de tochas acesas e fumosas, de turíbulos cinzelados, numa procissão lenta, pomposa, em aparatos cerimoniais, de Corpus Christi, ao fundo longínquo de uma província sugestiva e serena, pitorescamente aureolada por mares cantantes. Vinha-me à flor melindrosa dos sentidos a melopeia, o ritmo fugidio de momentos, horas, instantes, tempos deixados para trás na arrebatada confusão do mundo.

Certos lados curiosos, expressivos e tocantes do Sentimento, que a lembrança venera e santifica; lados virgens, de majestade significativa, parecia-me surgirem do suntuoso fundo estrelado daquela noite larga, da amplidão saudosa daqueles céus...

Desdobrava-se o vasto silforama opulento de uma vida inteira, circulada de acidentes, de longos lances tempestuosos, de desolamentos, de palpitações ignoradas, como do rumor, das aclamações e dos fogos de cem cidades tenebrosas de tumulto e de pasmo...

Era como que todo o branco idílio místico da adolescência, que de um tufo claro de nuvens, em Imagens e Visões do Desconhecido, caminhava para mim, leve, etéreo, através das imutáveis formas.

Ou, então, massas cerradas, compactas, de harmonias wagnerianas, que cresciam, cresciam, subiam em gritos, em convulsões, em alaridos nervosos, em estrépitos nervosos, em sonoridades nervosas, em dilaceramentos nervosos, em catadupas vertiginosas de vibrações, ecoando longe e alastrando tudo, por entre a delicada alma sutil dos ritmos religiosos, alados, procurando a serenidade dos Astros...

As Estrelas, d’alto, claras, pareciam cautelosamente escutar e sentir, com os caprichos de relicários inviolados da sua luz, o desenvolvimento mudo, mas intenso, a abstrata função mental que estava naquela hora se operando dentro em mim, como um fenômeno de aurora boreal que se revelasse no cérebro, acordando chamas mortas, fazendo viver ilusões e cadáveres.

Ah! àquela hora era bem a hora infinita da Esperança!

De que subterrâneos viera eu já, de que torvos caminhos, trôpego de cansaço, as pernas bambaleantes, com a fadiga de um século, recalcando nos tremendos e majestosos Infernos do Orgulho o coração lacerado, ouvindo sempre por toda a parte exclamarem as vãs e vagas bocas: Esperar! Esperar! Esperar!

Porque estradas caminhei, monge hirto das desilusões, conhecendo os gelos e os fundamentos da Dor, dessa Dor estranha, formidável, terrível, que canta e chora Réquiens nas árvores, nos mares, nos ventos, nas tempestades, só e taciturnamente ouvindo: Esperar! Esperar! Esperar!

Por isso é que essa hora sugestiva era para mim então a hora da Esperança, que evocava tudo quanto eu sonhara e se desfizera e vagara e mergulhara no Vácuo... Tudo quanto eu mais eloquentemente amara com o delírio e a fé suprema de solenes assinalamentos e vitórias.

Mas as grandes ironias trágicas germinadas do Absoluto, conclamadas, em anátemas e deprecações inquisitoriais cruzadas no ar violentamente em línguas de fogo, caíram martirizantes sobre a minha cabeça, implacáveis como a peste.

Então, à beira de caóticos, sinistros despenhadeiros, como outrora o doce e arcangélico Deus Negro, o trimegisto, de cornos agrogalhardos, de fagulhantes, estriadas asas enigmáticas, idealmente meditando a Culpa imeditável; então, perdido, arrebatado dentre essas mágicas e poderosas correntes de elementos antipáticos que a Natureza regulariza, e sob a influência de desconhecidos e venenosos filtros, a minha vida ficou como a longa, muito longa véspera de um dia desejado, anelado, ansiosamente, inquietamente desejado, procurado através do deserto dos tempos, com angústia, com agonia, com esquisita e doentia nevrose, mas que não chega nunca, nunca!!

Fiquei como a alma velada de um cego onde os tormentos e os flagelos amargamente vegetam como cardos hirtos. De um cego onde parece que vaporosamente dormem certos sentimentos que só com a palpitante vertigem, só com a febre matinal da luz clara dos olhos acordariam; sentimentos que dormem ou que não chegaram jamais a nascer porque a densa e amortalhante cegueira como que apagou para sempre toda a claridade serena, toda a chama original que os poderia fecundar e fazer florir na alma...

Elevando o Espírito a amplidões inacessíveis, quase que não vi esses lados comuns da Vida humana, e, igual ao cego, fui sombra, fui sombra!

Como os martirizados de outros Gólgotas mais amargos, mais tristes, fui subindo a escalvada montanha, através de urzes eriçadas, e de brenhas, como os martirizados de outros Gólgotas mais amargos, mais tristes.

De outros Gólgotas mais amargos subindo a montanha imensa, — vulto sombrio, tetro, extra-humano! — a face escorrendo sangue, a boca escorrendo sangue, o peito escorrendo sangue, as mãos escorrendo sangue, o flanco escorrendo sangue, os pés escorrendo sangue, sangue, sangue, sangue, caminhando para tão longe, para muito longe, ao rumo infinito das regiões melancólicas da Desilusão e da Saudade, transfiguradamente iluminado pelo sol augural dos Destinos!...

E, abrindo e erguendo em vão os braços desesperados em busca de outros braços que me abrigassem; e, abrindo e erguendo em vão os braços desesperados que já nem mesmo a milenária cruz do Sonhador da Judéia encontravam para repousarem pregados e dilacerados, fui caminhando, caminhando, sempre com um nome estranho convulsamente murmurado nos lábios, um nome augusto que eu encontrara não sei em que Mistério, não sei em que prodígios de Investigação e de Pensamento profundo: — o sagrado nome da Arte, virginal e circundada de loureirais e mirtos e palmas verdes e hosanas, por entre constelações.

Mas, foi apenas bastante todo esse movimento interior que pouco a pouco me abalava, foi apenas bastante que eu consagrasse a vida mais fecundada, mais ensanguentada que tenho, que desse todos os meus mais íntimos, mais recônditos carinhos, todo o meu amor ingênito, toda a legitimidade do meu sentir a essa translúcida Monja de luar e sol, a essa incoercível Aparição, bastou tão pouco para que logo se levantassem todas as paixões da terra, tumultuosas como florestas cerradas, proclamando por brutas, titânicas trombetas de bronze, o meu nefando Crime.

Foi bastante pairar mais alto, na obscuridade tranquila, na consoladora e doce paragem das Idéias, acima das graves letras maiúsculas da Convenção, para alvoroçarem-se os Preceitos, irritarem-se as Regras, as Doutrinas, as Teorias, os Esquemas, os Dogmas, armados e ferozes, de cataduras hostis e severas.

Eu trazia, como cadáveres que me andassem funambulescamente amarrados às costas, num inquietante e interminável apodrecimento, todos os empirismos preconceituosos e não sei quanta camada morta, quanta raça d’África curiosa e desolada que a Fisiologia nulificara para sempre com o riso haeckeliano e papal!

Surgido de bárbaros, tinha de domar outros mais bárbaros ainda, cujas plumagens de aborígene alacremente flutuavam através dos estilos.

Era mister romper o Espaço toldado de brumas, rasgar as espessuras, as densas argumentações e saberes, desdenhar os juízos altos, por decreto e por lei, e, enfim, surgir...

Era mister rir com serenidade e afinal com tédio dessa celulazinha bitolar que irrompe por toda a parte, salta, fecunda, alastra, explode, transborda e se propaga.

Era mister respirar a grandes haustos na Natureza, desafogar o peito das opressões ambientes, agitar desassombradamente a cabeça diante da liberdade absoluta e profunda do Infinito.

Era mister que me deixassem ao menos ser livre no Silêncio e na Solidão. Que não me negassem a necessidade fatal, imperiosa, ingênita de sacudir com liberdade e com volúpia os nervos e desprender com largueza e com audácia o meu verbo soluçante, na força impetuosa e indomável da Vontade.

O temperamento que rugia, bramava dentro de mim, esse, que se operasse: — precisava, pois, tratados, largos in-fólios, toda a biblioteca da famosa Alexandria, uma Babel e Babilônia de aplicações científicas e de textos latinos, para sarar...

Tornava-se forçoso impor-lhe um compêndio admirável, cheio de sensações imprevistas, de curiosidades estéticas muito lindas e muito finas — um compêndio de geometria! O temperamento entortava muito para o lado da África: — era necessário fazê-lo endireitar inteiramente para o lado Regra, até que o temperamento regulasse certo como um termômetro!

Ah! incomparável espírito das estreitezas humanas, como és secularmente divino! As civilizações, as raças, os povos degladiam-se e morrem minados pela fatal degenerescência do sangue, despedaçados, aniquilados no pavoroso túnel da Vida, sentindo o horror sufocante das supremas asfixias.

Um veneno corrosivo atravessa, circula vertiginosamente os poros dessa deblaterante humanidade que se veste e triunfa com as púrpuras quentes e funestas das guerra! Povos e povos, no mesmo fatal e instintivo movimento da conservação e propagação da espécie, frivolamente lutam e proliferam diante da Morte, no ardor dos conúbios secretos e das batalhas obscuras, do frenesi genital, animal, de perpetuarem as seivas, de eternizarem os germens.

Mas, por sobre toda essa vertigem humana, sobre tanta monstruosa miséria, rodando, rodomoinhando, lá e além, na vastidão funda do Mundo, alguma cousa da essência maravilhosa da Luz paira e se perpetua, fecundando e inflamando os séculos com o amor indelével da Forma.

É do sabor prodigioso dessa essência, vinda de bem remotas origens, que raros Assinalados experimentam, envoltos numa atmosfera de eterificações, de visualidades inauditas, de surpreendentes abstrações e brilhos, radiando nas correntes e forças da Natureza, vivendo nos fenômenos vagos de que a Natureza se compõe, nos fantasmas dispersos que circulam e erram nos seus esplendores e nas suas trevas, conciliados supremamente com a Natureza.

E, então, os temperamentos que surgissem, que viessem, limpos de mancha, de mácula, puramente lavados para as extremas perfectibilidades, virgens, sãos e impetuosos para as extremas fecundações, com a virtude eloquente de trazerem, ainda sangradas, frescas, úmidas das terras germinais do Idealismo, as raízes vivas e profundas, os germens legítimos, ingênitos, do Sentimento.

Os temperamentos que surgissem: — podiam ser simples, mas que essa simplicidade acusasse também complexidade, como as claras Ilíadas que os rios cantam. Mas igualmente podiam ser complexos, trazendo as inéditas manifestações do Indefinido, e intensos, intensos sempre, sintéticos e abstratos, tendo esses inexprimíveis segredos que vagam na luz, no ar, no som, no aroma, na cor e que só a visão delicada de um espírito artístico assinala.

Poderiam também parecer obscuros por serem complexos, mas ao mesmo tempo serem claros nessa obscuridade por serem lógicos, naturais, fáceis, de uma espontaneidade sincera, verdadeira e livre na enunciação de sentimentos e pensamentos, da concepção e da forma, obedecendo tudo a uma grande harmonia essencial de linhas sempre determinativas da índole, da feição geral de cada organização.

Os lados mais carregados, mais fundamente cavados dos temperamentos sangrentos, fecundados em origens novas e de excepcionalidades não seriam para complicar e enturvecer mais as respectivas psicologias; mas apenas para torná-las claras, claras, para dar, simplesmente, com a máxima eloquência, dessas próprias psicologias, toda a evidência, toda a intensidade, todo o absurdo e nebuloso Sonho...

Dominariam assim, venceriam assim, esses Sonhadores, os reservados, eleitos e melancólicos Reinados do Ideal, apenas, unicamente por fatalidades impalpáveis, imprescritíveis, secretas, e não por justaposições mecânicas de teorias e didatismos obsoletos.Os caracteres nervosos mais sutis, mais finos, mais vaporosos, de cada temperamento, perder-se-iam, embora, na vaga truculenta, pesada, da multidão inexpressiva, confusa, que burburinha com o seu lento ar parado e vazio, conduzindo em seu bojo a concupiscência bestial enroscada como um sátiro, com a alma gasta, olhando molemente para tudo com os seus dois pequeninos olhos gulosos de símio.

Mas, a paixão inflamada do Ignoto subiria e devoraria reconditamente todos esses Imaginativos dolentes, como se eles fossem abençoada zona ideal, preciosa, guardando em sua profundidade o orientalismo de um tesouro curioso, o relicário mágico do Imprevisto — abençoada zona saudosa, plaga d’ouro sagrada, para sempre sepulcralmente fechada ao sentimento herético, à bárbara profanação dos sacrílegos.

Assim é que eu sonhara surgirem todas essas aptidões, todas essas feições singulares, dolorosas, irrompendo de um alto princípio fundamental distinto em certos traços breves, mas igual, uno, perfeito e harmonioso nas grandes linhas gerais. Essa é que fora a lei secreta, que escapara à percepção de filósofos e doutos, do verdadeiro temperamento, alheio às orquestrações e aos incensos aclamatórios da turba profana, porém alheio por causa, por sinceridade de penetração, por subjetivismo mental sentido à parte, vivido à parte, — simples, obscuro, natural, — como se a humanidade não existisse em torno e os nervos, a sensação, o pensamento tivessem latente necessidade de gritar alto, de expandir e transfundir no espaço, vivamente, a sua psicose atormentada.

Assim é que eu via a Arte, abrangendo todas as faculdades, absorvendo todos os sentidos, vencendo-os, subjugando-os amplamente. Era uma força oculta, impulsiva, que ganhara já a agudeza picante, acre, de um apetite estonteante e a fascinação infernal, tóxica, de um fugitivo e deslumbrador pecado...

Assim é que eu a compreendia em toda a intimidade do meu ser, que eu a sentia em toda a minha emoção, em toda a genuína expressão do meu Entendimento — e não uma espécie de iguaria agradável, saborosa, que se devesse dar ao público em doses e no grau e qualidade que ele exigisse, fosse esse público simplesmente um símbolo, um bonzo antigo, taciturno e cor de oca, uma expressão serôdia, o público A+B, cujo consenso a Convenção em letras maiúsculas decretara.

Afinal, em tese, todas as ideias em Arte poderiam ser antipáticas, sem preconcebimentos a agradar, o que não quereriam dizer que fossem más. No entanto, para que a Arte se revelasse própria, era essencial que o temperamento se desprendesse de tudo, abrisse voos, não ficasse nem continuativo nem restrito, dentro de vários moldes consagrados que tomaram já a significação representativa de clichês oficiais e antiquados. Quanto a mim, originalmente foi crescendo, alastrando o meu organismo, numa veemência e num ímpeto de vontade que se manifesta, num dilúvio de emoção, esse fenômeno de temperamento que com sutilezas e delicadezas de névoas alvorais vem surgindo e formando em nós os maravilhosos encantamentos da Concepção.

O Desconhecido me arrebatara e surpreendera e eu fui para ele instintiva e intuitivamente arrastado, insensível então aos atritos da frivolidade, indiferente, entediado por índole diante da filáucia letrada, que não trazia a expressão viva, palpitante, da chama de uma fisionomia, de um tipo afirmativamente eleito. Muitos diziam-se rebelados, intransigentes — mas eu via claro as ficelles dessa rebeldia e dessa intransigência. Rebelados, porque tiveram fome uma hora apenas, as botas rotas um dia. Intransigentes, por despeito, porque não conseguiam galgar as fúteis, para eles gloriosas, posições que os outros galgavam.

Era uma politicazinha engenhosa de medíocres, de estreitos, de tacanhos, de perfeitos imbecilizados ou cínicos, que faziam da Arte um jogo capcioso, maneiroso, para arranjar relações e prestígio no meio, de jeito a não ofender, a não fazer corar o diletantismo das suas idéias. Rebeldias e intransigências em casa, sob o teto protetor, assim uma espécie de ateísmo acadêmico, muito demolidor e feroz, com ladainhas e amuletos em certa hora para livrar da trovoada e dos celestes castigos imponderáveis!

Mas, uma vez cá fora à luz crua da Vida e do Mundo, perante o ferro em brasa da livre análise, mostrando logo as curvaturas mais respeitosas, mais gramaticais, mais clássicas, à decrépita Convenção com letras maiúsculas.

Um ou outro, pairando, no entanto, mais alto no meio, tinha manhas de raposa fina, argúcia, vivacidades satânicas, no fundo frívolas, e que a maior parte, inteiramente oca, sem penetração, não sentia. Fechava sistematicamente os olhos para fingir não ver, para não sair dos seus cômodos pacatos de aclamado banal, fazendo esforço supremo de conservar a confusão e a complicação do meio, transtornar e estontear aquelas raras e adolescentes cabeças que por acaso aparecessem já com algum nebuloso segredo.

Um ou outro tinha a habilidade quase mecânica de apanhar, de recolher do tempo e do espaço as ideias e os sentimentos que, estando dispersos, formavam a temperatura burguesa do meio, portanto corrente já, e trabalhar algumas páginas, alguns livros, que por trazerem ideias e sentimentos homogêneos dos sentimentos e ideias burguesas, aqueciam, alvoroçavam, atordoavam o ar de aplausos...

Outros, ainda, adaptados às épocas, aclimados ao modo de sentir exterior; ou, ainda por mal compreendido ajeitamento, fazendo absoluta apostasia do seu sentir íntimo, próprio, iludidos em parte; ou, talvez, evidenciando com flagrância, traindo assim o fundo fútil, sem vivas, entranhadas raízes de sensibilidade estética, sem a ideal radicalização de sonhos ingenitamente fecundados e quinta-essenciados na alma, das suas naturezas passageiras, desapercebidas de certos movimentos inevitáveis da estesia, que imprimem, por fórmulas fatais, que arrancam das origens profundas, com toda a sanguinolenta verdade e por causas fugidias a toda e qualquer análise, tudo o quanto se sente e pensa de mais ou menos elevado e completo.

Mistificadores afetados de canaillerie por tom, por modernismos falhos apanhados entre os absolutamente fracos, os pusilânimes de têmpera no fundo, e que, no entanto, tanto aparentam correção e serena força própria.

Naturezas vacilantes e mórbidas, sem a integração final, sem mesmo o equilíbrio fundamental do próprio desequilíbrio e, ainda mais do que tudo, sem esse poder quase sobrenatural, sem esses atributos excepcionais que gravam, que assinalam de modo estranho, às chamejantes e intrínsecas obras d’Arte, o caráter imprevisto, extra-humano, do Sonho.

Hábeis viveurs, jeitosos, sagazes, acomodatícios, afetando pessimismos mais por desequilíbrio que por fundamento, sentindo, alguns, até à saciedade, a atropelação do meio, fingindo desprezá-lo, aborrecê-lo, odiá-lo, mas mergulhando nele com frenesi, quase com delírio, mesmo com certa volúpia maligna de frouxos e de nulos que trazem num grau muito apurado a faculdade animal do instinto de conservação, a habilidade de nadadores destros e intrépidos nas ondas turvas dos cálculos e efeitos convencionais.

Tal, desse modo, um prestidigitador ágil e atilado, colhe e prende, com as miragens e truques da nigromancia, a frívola atenção passiva de um público dócil e embasbacado.

Insipientes, uns, obscenamente cretinos, outros, devorados pela desoladora impotência que os torna lívidos e lhes dilacera os fígados, eu bem lhes percebo as psicologias subterrâneas, bem os vejo passar, todos, todos, todos, d’olhos oblíquos, numa expressão fisionômica azeda e vesga de despeito, como errantes duendes da Meia-Noite, verdes, escarlates, amarelos e azuis, em vão grazinando e chocalhando na treva os guizos das sarcásticas risadas...

Almas tristes, afinal, que se diluem, que se acabam, num silêncio amargo, numa dolorosa desolação, murchas e doentias, na febre fatal das desorganizações, melancolicamente, melancolicamente, como a decomposição de tecidos que gangrenaram, de corpos que apodreceram de um modo irremediável e não podem mais viçar e florir sob as refulgências e sonoridades dos finíssimos ouros e cristais e safiras e rubis incendiados do Sol...

Almas lassas, debochadamente relaxadas, verdadeiras casernas onde a mais rasgada libertinagem não encontra fundo; almas que vão cultivando com cuidado delicadas infamiazinhas como áspides galantes e curiosas e que de tão baixas, de tão rasas que são nem merecem a magnificência, a majestade do Inferno!

Almas, afinal, sem as chamas misteriosas, sem as névoas, sem as sombras, sem os largos e irisados resplendores do Sonho — supremo Redentor eterno!

Tudo um ambiente dilacerante, uma atmosfera que sufoca, um ar que aflige e dói nos olhos e asfixia a garganta como uma poeira triste, muito densa, muito turva, sob um meio-dia ardente, no atalho ermo de vila pobre por onde vai taciturnamente seguindo algum obscuro enterro de desgraçado...

Eles riem, eles riem e eu caminho e sonho tranquilo! Pedindo a algum belo Deus d’Estrelas e d’Azul, que vive em tédios aristocráticos na Nuvem, que me deixe serenamente e humildemente acabar esta Obra extrema de Fé e de Vida!

Se alguma nova ventura conheço é a ventura intensa de sentir um temperamento, tão raro me é dado sentir essa ventura. Se alguma cousa me torna justo é a chama fecundadora, o eflúvio fascinador e penetrante que se exala de um verso admirável, de uma página de evocações, legítima e sugestiva.

O que eu quero, o que eu aspiro, tudo por quanto anseio, obedecendo ao sistema arterial das minhas Intuições, é a Amplidão livre e luminosa, todo o Infinito, para cantar o meu Sonho, para sonhar, para sentir, para sofrer, para vagar, para dormir, para morrer, agitando ao alto a cabeça anatematizada, como Otelo nos delírios sangrentos do Ciúme...

Agitando ainda a cabeça num derradeiro movimento de desdém augusto, como nos cismativos ocasos os desdéns soberanos do sol que ufanamente abandona a terra, para ir talvez fecundar outros mais nobres e ignorados hemisférios...

Pensam, sentem, estes, aqueles. Mas a característica que denota a seleção de uma curiosa natureza, de um ser d’arte absoluto, essa, não a sinto, não a vejo, com os delicados escrúpulos e susceptibilidades de uma flagrante e real originalidade sem escolas, sem regulamentações e métodos, sem cotterie e anais de crítica, mas com a força germinal poderosa de virginal afirmação viva.

D’alto a baixo, rasgam-se os organismos, os instrumentos da autópsia psicológica penetram por tudo, sondam, perscrutam todas as células, analisam as funções mentais de todas as civilizações e raças; mas só escapa à penetração, à investigação desses positivos exames, a tendência, a índole, o temperamento artístico, fugidios sempre e sempre imprevistos, porque são casos particulares de seleção na massa imensa dos casos gerais que regem e equilibram secularmente o mundo.

Desde que o Artista é um isolado, um esporádico, não adaptado ao meio, mas em completa, lógica e inevitável revolta contra ele, num conflito perpétuo entre a sua natureza complexa e a natureza oposta do meio, a sensação, a emoção que experimenta é de ordem tal que foge a todas as classificações e casuísticas, a todas as argumentações que, parecendo as mais puras e as mais exaustivas do assunto, são, no entanto, sempre deficientes e falsas.

Ele é o supercivilizado dos sentidos, mas como que um supercivilizado ingênito, transbordado do meio, mesmo em virtude da sua percuciente agudeza de visão, da sua absoluta clarividência, da sua inata perfectibilidade celular, que é o gérmen fundamental de um temperamento profundo.

Certos espíritos d’Arte assinalaram-se no tempo veiculado pela hegemonia das raças, pela preponderância das civilizações, tendo, porém, em toda a parte, um valor que era universalmente conhecido e celebrizado, porque, para chegar a esse grau de notoriedade, penetrou primeiro nos domínios do oficialismo e da cotterie.

Os de Estética emovente e exótica, os gueux, os requintados, os sublimes iluminados por um clarão fantástico, como Baudelaire, como Poe, os surpreendentes da Alma, os imprevistos missionários supremos, os inflamados, devorados pelo Sonho, os clarividentes e evocativos, que emocionalmente sugestionam e acordam luas adormecidas de Recordações e de Saudades, esses, ficam imortalmente cá fora, dentre as augustas vozes apocalípticas da Natureza, chorados e cantados pelas Estrelas e pelos Ventos!

Ah! Benditos os Reveladores da Dor infinita! Ah! Soberanos e invulneráveis aqueles que, na Arte, nesse extremo requinte de volúpia, sabem transcendentalizar a Dor, tirar da Dor a grande Significação eloquente e não amesquinhá-la e desvirginá-la!

A verdadeira, a suprema força d’Arte está em caminhar firme, resoluto, inabalável, sereno através de toda a perturbação e confusão ambiente, isolado no mundo mental criado, assinalando com intensidade e eloquência o mistério, a predestinação do temperamento.

É preciso fechar com indiferença os ouvidos aos rumores confusos e atropelantes e engolfar a alma, com ardente paixão e fé concentrada, em tudo o que se sente e pensa com sinceridade, por mais violenta, obscura ou escandalosa que essa sinceridade à primeira vista pareça, por mais longe das normas preestabelecidas que a julguem, — para então assim mais elevadamente estrelar os Infinitos da grande Arte, da grande Arte que é só, solitária, desacompanhada das turbas que chasqueiam, da matéria humana doente que convulsiona dentro das estreitezas asfixiantes do seu torvo caracol.

Até mesmo, certos livros, por mais exóticos, atraentes, abstrusos, que sejam, por mais aclamados pela trompa do momento, nada podem influir, nenhuma alteração podem trazer ao sentimento geral de ideias que se constituíram sistema e que afirmam, de modo radical, mas simples, natural, por mais exagerado que se suponha, a calma justa das convicções integrais, absolutas, dos que seguem impavidamente a sua linha, dos que, trazendo consigo imaginativo espírito de Concepção, caminham sempre com tenacidade, serenamente, imperturbáveis aos apupos inofensivos, sem tonturas de fascinação efêmera, sentindo e conhecendo tudo, com os olhos claros levantados e sonhadores cheios de uma radiante ironia mais feita de clemência, de bondade, do que de ódio.

O Artista é que fica muitas vezes sob o signo fatal ou sob a auréola funesta do ódio, quando no entanto o seu coração vem transbordando de Piedade, vem soluçando de ternura, de compaixão, de misericórdia, quando ele só parece mau porque tem cóleras soberbas, tremendas indignações, ironias divinas que causam escândalos ferozes, que passam por blasfêmias negras, contra a Infâmia oficial do Mundo, contra o vício hipócrita, perverso, contra o postiço sentimento universal mascarado de Liberdade e de Justiça.

Nos países novos, nas terras ainda sem tipo étnico absolutamente definido, onde o sentimento d’Arte é silvícola, local, banalizado, deve ser espantoso, estupendo o esforço, a batalha formidável de um temperamento fatalizado pelo sangue e que traz consigo, além da condição inviável do meio, a qualidade fisiológica de pertencer, de proceder de uma raça que a ditadora ciência d’hipóteses negou em absoluto para as funções do Entendimento e, principalmente, do entendimento artístico da palavra escrita.

Deus meu! Por uma questão banal da química biológica do pigmento ficam alguns mais rebeldes e curiosos fósseis preocupados, a ruminar primitivas erudições, perdidos e atropelados pelas longas galerias submarinas de uma sabedoria infinita, esmagadora, irrevogável!

Mas, que importa tudo isso?! Qual é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da tempestade de dilacerações que me abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos meus desejos e febre?

Ah! esta minúscula humanidade, torcida, enroscada, assaltando as almas com a ferocidade de animais bravios, de garras aguçadas e dentes rijos de carnívoro, é que não pode compreender-me.

Sim! Tu é que não podes entender-me, não podes irradiar, convulsionar-te nestes efeitos com os arcaísmos duros da tua compreensão, com a carcaça paleontológica do Bom Senso.

Tu é que não podes ver-me, atentar-me, sentir-me, dos limites da tua toca de primitivo, armada do bordão simbólico das convicções pré-históricas, patinhando a lama das teorias, a lama das conveniências equilibrantes, a lama sinistra, estagnada, das tuas insaciáveis luxúrias.

Tu não podes sensibilizar-te diante destes extasiantes estados d’alma, diante destes deslumbramentos estesíacos, sagrados, diante das eucarísticas espiritualizações que me arrebatam.

O que tu podes, só, é agarrar com frenesi ou com ódio a minha Obra dolorosa e solitária e lê-la e detestá-la e revirar-lhe as folhas, truncar-lhe as páginas, enodoar-lhe a castidade branca dos períodos, profanar-lhe o tabernáculo da linguagem, riscar, traçar, assinalar, cortar com dísticos estigmatizantes, com labéus obscenos, com golpes fundos de blasfêmia as violências da intensidade, dilacerar, enfim, toda a Obra, num ímpeto covarde de impotência ou de angústia.

Mas, para chegares a esse movimento apaixonado, dolorido, já eu antes terei, por certo — eu o sinto, eu o vejo! — te arremessado profundamente, abismantemente pelos cabelos a minha Obra e obrigado a tua atenção comatosa a acordar, a acender, a olfatar, a cheirar com febre, com delírio, com cio, cada adjetivo, cada verbo que eu faça chiar como um ferro em brasa sobre o organismo da Ideia, cada vocábulo que eu tenha pensado e sentido com todas as fibras, que tenha vivido com os meus carinhos, dormido com os meus desejos, sonhado com os meus sonhos, representativos integrais, únicos, completos, perfeitos, de um convulsão e aspiração supremas.

Não conseguindo impressionar-te, afetar-te a bossa inteletiva, quero ao menos sensacionar-te a pele, ciliciar-te, crucificar-te ao meu estilo, desnudando ao sol, pondo abertas e francas, todas as expressões, nuances e expansibilidades deste amargurado ser, tal como sou e sinto.

Os que vivem num completo assédio no mundo, pela condenação do Pensamento, dentro de um báratro monstruoso de leis e preceitos obsoletos, de convenções radicadas, de casuísticas, trazem a necessidade inquieta e profunda de como que traduzir, por traços fundamentais, as suas faces, os seus aspectos, as suas impressionabilidades e, sobretudo, as suas causas originais, vindas fatalmente da liberdade fenomenal da Natureza.

Ah! Destino grave, de certo modo funesto, dos que vieram ao mundo para, com as correntes secretas dos seus pensamentos e sentimentos, provocar convulsões subterrâneas, levantar ventos opostos de opiniões, mistificar a insipiência dos adolescentes intelectuais, a ingenuidade de certas cabeças, o bom senso dos cretinos, deixar a oscilação da fé, sobre a missão que trazem, no espírito fraco, sem consistência de crítica própria, sem impulsão original para afirmar os Obscuros que não contemporizam, os Negados que não reconhecem a Sanção oficial, que repelem toda a sorte de conchavos, de compadrismos interesseiros, de aplausos forjicados, por limpidez e decência e não por frivolidades de orgulhos humanos ou de despeitos tristes.

Ah! Destino grave dos que vieram ao mundo para ousadamente deflorar as púberes e cobardes inteligências com o órgão másculo, poderoso da Síntese, para inocular nas estreitezas mentais o sentimento vigoroso das Generalizações, para revelar uma obra bem fecundada de sangue, bem constelada de lágrimas, para, afinal, estabelecer o choque violento das almas, arremessar umas contra as outras, na sagrada, na bendita impiedade de quem traz consigo os vulcanizadores Anátemas que redimem.

O que em nós outros Errantes do Sentimento flameja, arde e palpita, é esta ânsia infinita, esta sede santa e inquieta, que não cessa, de encontrarmos um dia uma alma que nos veja com simplicidade e clareza, que nos compreenda, que nos ame, que nos sinta.

É de encontrar essa alma assinalada pela qual viemos vindo de tão longe sonhando e andamos esperando há tanto tempo, procurando-a no Silêncio do mundo, cheios de febre e de cismas, para no seio dela cairmos frementes, alvoroçados, entusiastas, como no eterno seio da Luz imensa e boa que nos acolhe.

É esta bendita loucura de encontrar essa alma para desabafar ao largo da Vida com ela, para respirar livre e fortemente, de pulmões satisfeitos e límpidos, toda a onda viva de vibrações e de chamas do Sentimento que contivemos por tanto e tão longo tempo guardada na nossa alma, sem acharmos uma outra alma irmã à qual pudéssemos comunicar absolutamente tudo.

E quando a flor dessa alma se abre encantadora para nós, quando ela se nos revela com todos os seus sedutores e recônditos aromas, quando afinal a descobrimos um dia, não sentimos mais o peito opresso, esmagado: — uma nova torrente espiritual deriva do nosso ser e ficamos então desafogados, coração e cérebro inundados da graça de um divino amor, bem pagos de tudo, suficientemente recompensados de todo o transcendente Sacrifício que a Natureza heroicamente impôs aos nossos ombros mortais, para ver se conseguimos aqui embaixo na Terra encher, cobrir este abismo do Tédio com abismos de Luz!

O mundo, chato e medíocre nos seus fundamentos, na sua essência, é uma dura fórmula geométrica. Todo aquele que lhe procura quebrar as hirtas e caturras linhas retas com o poder de um simples Sentimento, desloca de tal modo elementos de ordem tão particular, de natureza tão profunda e tão séria que tudo se turba e convulsiona; e o temerário que ousou tocar na velha fórmula experimenta toda a Dor imponderável que esse simples Sentimento responsabiliza e provoca.

Eu não pertenço à velha árvore genealógica das intelectualidades medidas, dos produtos anêmicos dos meios lutulentos, espécies exóticas de altas e curiosas girafas verdes e spleenéticas de algum maravilhoso e babilônico jardim de lendas...

Num impulso sonâmbulo para fora do círculo sistemático das Fórmulas preestabelecidas, deixei-me pairar, em espiritual essência, em brilhos intangíveis, através dos nevados, gelados e peregrinos caminhos da Via-Láctea...

E é por isso que eu ouço, no adormecimento de certas horas, nas moles quebreiras de vagos torpores enervantes, na bruma crepuscular de certas melancolias, na contemplatividade mental de certos poentes agonizantes, uma voz ignota, que parece vir do fundo da Imaginação ou do fundo mucilaginoso do Mar ou dos mistérios da Noite — talvez acordes da grande Lira noturna do Inferno e das harpas remotas de velhos céus esquecidos, murmurar-me:

— “Tu és dos de Cam, maldito, réprobo, anatematizado! Falas em abstrações, em Formas, em Espiritualidades, em Requintes, em Sonhos! Como se tu fosses das raças de ouro e da aurora, se viesses dos arianos, depurado por todas as civilizações, célula por célula, tecido por tecido, cristalizado o teu ser num verdadeiro cadinho de idéias, de sentimentos — direito, perfeito, das perfeições oficiais dos meios convencionalmente ilustres! Como se viesses do Oriente, rei!, em galeras, dentre opulências, ou tivesses a aventura magna de ficar perdido em Tebas, desoladamente cismando através de ruínas; ou a iriada, peregrina e fidalga fantasia dos Medievos, ou a lenda colorida e bizarra por haveres adormedido e sonhado, sob o ritmo claro dos astros, junto às priscas margens venerandas do Mar Vermelho!

Artista! Pode lá isso ser se tu és d’África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia! A África arrebatada nos ciclones torvelinhantes das Impiedades supremas, das Blasfêmias absolutas, gemendo, rugindo, bramando no caos feroz, hórrido, das profundas selvas brutas, a sua formidável Dilaceração humana! A África laocoôntica, alma de trevas e de chamas, fecundada no Sol e na Noite, errantemente tempestuosa como a alma espiritualizada e tantálica da Rússia, gerada no Degredo e na Neve — polo branco e polo negro da Dor!

Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua região desolada, lá do fundo exótico dessa África sugestiva, gemente, Criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs rebelados, dessa flagelada África, grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo mortal; dessa África dos Suplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo do mundo Deus arrojou toda a peste letal e tenebrosa das maldições eternas!

A África virgem, inviolada no Sentimento, avalanche humana amassada com argilas funestas e secretas para fundir a Epopeia suprema da Dor do Futuro, para fecundar talvez os grandes tercetos tremendos de algum novo e majestoso Dante negro!

Dessa África que parece gerada para os divinos cinzéis das colossais e prodigiosas esculturas, para as largas e fantásticas Inspirações convulsas de Doré - inspirações inflamadas, soberbas, choradas, soluçadas, bebidas nos Infernos e nos Céus profundos do Sentimento humano.

Dessa África cheia de solidões maravilhosas, de virgindades animais instintivas, de curiosos fenômenos de esquisita Originalidade, de espasmos de Desespero, gigantescamente medonha, absurdamente ululante — pesadelo de sombras macabras — visão valpurgiana de terríveis e convulsos soluços noturnos circulando na Terra e formando, com as seculares, despedaçadas agonias da sua alma renegada, uma auréola sinistra, de lágrimas e sangue, toda em torno da Terra...

Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação do Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado de uma raça.

Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto...

E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras... Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão de subir, — longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até às Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho..."

22/01/2023

O Beijo de sangue: a pós-modernidade do corpus hilstiano em Rútilo nada (Profa. Dra. Renata Bomfim)

Joalheira da linguagem, Hilda Hilst desafia com uma obra ora doce com um afago, e ora, terrível como um beijo de sangue. É assim que somos confrontados ao primeiro contato com Rútilo nada. 

Prosa poética ganhadora do prêmio jabuti de 1994, fragmentada, composta por uma orquestração dissonante de vozes, Rútilo nada se aproxima do teatro do absurdo de Ionesco e do teatro da crueldade de Beckett. Este estudo explora os caminhos obscuros/luminosos do texto hilstiano buscando seus atravessamentos com os estudos da pós-modernidade.

 “As palavras de amor trabalham feito um luto” (Henri Heine). Certa vez Hilda Hislt disse em entrevista ao Caderno de literatura brasileira: “Toda a minha ficção é poesia. No teatro, em tudo, é sempre o texto poético, sempre” (HILST, 1993, p. 39). O percurso poético hilstiano pode ser conhecido e apreciado a partir da vasta obra deixada por esta escritora, que compreende, aproximadamente, cinquenta anos de produção literária que transita entre os gêneros da poesia, da música, da prosa e da dramaturgia.

Este ensaio pretende abordar aspectos da pós- modernidade a partir da prosa poética Rútilo nada, ganhadora do Prêmio Jabuti em 1994. Acredito que tais aspectos são fatores importantes que fazem com que a obra de Hilda Hilst seja cada vez mais lida e conhecida não só no Brasil como em outros países.

Hilda Hislt nasceu em Jaú, interior de São Paulo, no dia 21 de abril de 1930. É considerada, hoje, uma das mais importantes vozes da literatura brasileira contemporânea. A crítica literária Nelly Novaes Coelho, no ensaio intitulado Da Poesia descreve a poética hilstiana como sendo “obscura/ luminosa”, destaca ainda a “paixão desmesurada com que a poeta se entrega, desde sempre, ao corpo- a- corpo com a vida”. Para Coelho a poesia de Hilda Hilst “ilumina- se contra o pano de fundo da tortuosa/ luminosa/ efêmera vida terrena, que se pressente participe de algo imensurável e eterno”, assumindo o papel de buscar Deus nas coisas terrenas (COELHO, 1999, p.66- 71).

Rútilo nada, desde o título, já nos desafia. Insurreto e com uma abstração quase absurda, a prosa poética nos lança num vazio que reverbera o vazio que existe dentro de cada um de nós. No Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, encontramos a palavra rútilo definida como um adjetivo que designa luzente, cintilante, cujo brilho chega a ofuscar, já a palavra nada, é descrita como coisa nenhuma, entre outras significações, encontramos, verdadeira natureza divina concebida como oposição, [...] diferença ou transcendência absoluta em relação aos seres e a realidade do mundo natural. Conforme Terry Eagleton em As Ilusões do Pós-modernismo (1998, p. 37), “a história pós-moderna desconfia de histórias lineares”, assim, Hilda Hilst estrutura Rútilo nada de forma que sua temporalidade seja não linear, ela subverte o tempo ordinário tumultuando as cenas e as falas, os tempos presente- passado- futuro se misturam, resultando um mosaico que vai sendo construído numa relação dialética com o leitor.

A linguagem se metamorfoseia e experimenta em círculos e espirais, fluindo ora doce com um afago, e ora, terrível como um beijo de sangue. Este texto traz variadas possibilidades de leitura, é multifacetado, e possui uma polifonia que busca capturar as vozes do mundo. Ele nos apresenta uma orquestração dissonante, onde diferentes vozes e timbres formam um coro que evolui e reproduz o status quo, como por exemplo, as vozes ouvidas por Lúcius Kod no velório de Lucas, as quais, ele não consegue identificar, mas que, aparentemente, são de pessoas estranhas a ele: “coitado, o que foi hein? Tá demais branco o homem, olha ali, saiu de um velório, quem é que morreu? Foi o filho dele foi? foi à mãe? [...] ele está desfigurado, olha, olha” (HILST, 1993, p. 14). Destas vozes Kod afirma poder ver apenas “as caras pétreas”, “caras graníticas, ódio e vergonha”, esta passagem da prosa nos instiga a pergunta: estaria este mesmo grupo tão sensibilizado se soubesse que ali, um homem chora a morte de seu amante, namorado de sua filha de 15 anos, que foi induzido ao suicídio pelo pai/ avô/ perverso? Hilda Hilst é dona de um “eu lírico do cão”, e fazem parte da sua assinatura a polêmica, a ousadia e a inquietude, que culminam numa busca ferrenha por configurar Deus.

O narrador hilstiano é implacável e muitas vezes cruel, ele nos ameaça com suas questões herméticas, filosóficas e de alta erudição, como uma esfinge pós-moderna. Uma escrita onde nada é gratuito, onde a palavra é cinzelada, Hilda é uma artesã da linguagem, ela percorre as dimensões da língua, deslocandose sem cerimônia do erudito para o chulo, o baixo calão, propositadamente brincando com as sensações e emoções do leitor. Os personagens Lúcius Kod e Lucas experimentam as delícias e as dores da paixão, o desabrochar do amor, e conhecem o alto preço que deve ser pago pela realização amorosa. A partir da fala destes personagens revelam-se facetas e nuanças do erotismo do texto hilstiano, que busca um “para além” do amor orgânico e físico da sexualidade, um algo mais profundo, um sentido maior para a existência, um re-ligare, busca Deus. No trecho que se segue, o personagem Lúcius Kod descreve poeticamente o momento em que se abre para o amor descobrindo suas contradições:

[...] Os atos não podem ficar flutuando, fiapos de paina desgarrados daquela casca tão consistente, a casca era firme, abriu-se, o delicado foi se desfazendo, círculos, volutas, assim pelos ares, desfazido. Posso deduzir que escapei da casca consistente que eu estava encerrado ali, não, que o meu corpo era o fruto da paineira, todo fechado, e nem instante abriu-se. Abriu-se por quê? Porque já era noite para mim e aquele era o meu instante de maturação e rompimento. Porque fui atingido pela beleza como se um tigre me lanhasse o peito. O salto. O pânico. O que é a beleza? Translúcida como se o marfim do jade se fizesse carne, translúcido Lucas, intacto, luz sobre os degraus ocres de certa escada na eloqüência da tarde. [...] Vejo-o de costas agora, é sólido, crível, nada de angélico ou inefável, e um novo ou talvez um antigo e insuspeitado Lucius irrompe, dois escuros e contraditórios, aguçados e leves, violentos e sólidos. (HILST, p. 16, grifo meu).

A potência da escrita hilstiana traduz as inquietudes do nosso tempo e expressa às transformações e as contradições de uma época que ainda se configura. Terry Eagleton descreve a pós-modernidade como:

Uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a noção de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas, ou os fundamentos definitivos de explicação. [o mundo torna-se] um contingente gratuito, diverso, instável, imprevisível, [...] fenômeno tão híbrido que qualquer afirmação sobre um aspecto dele, quase com certeza, não se aplicará a outro (EAGLETON, 1998, p. 35).

Rútilo nada tem uma estrutura literária dinâmica, as cenas se entrecruzam, a escrita muitas vezes é do tipo telegráfica, que estilhaça com as ideias, desestruturando-as, adiciona-se uma violência sem precedentes na prosa brasileira, que revela jogos ideológicos e de poder que buscam inviabilizar o diálogo, e a expressão das alteridades. Entre os personagens da trama destaca-se a figura do banqueiro capitalista, pai de Lúcius Kod, este personagem já é desnudado por Kod no início da narrativa: “[...] Lucas, meu amor, meus 35 anos de vida colados a um indescritível verdugo, alguém Humano e há tantos indescritíveis Humanos feitos de fúria e desesperança, existindo apenas para nos fazer conhecer o nome da torpeza e da agonia” (HILST, 1993, p. 13, grifo meu). O discurso deste personagem é totalitário, intolerante e repressor, e o corpo de Lucas, torna-se lugar privilegiado de enunciação, depositário dos desejos deste personagem, de Lúcius Kod, e de sua filha de 15 anos:

Um ilógico de carne e seda, um conflito esculpido em harmonia, luz dorida sobre as ancas estreitas, o dorso deslizante e rijo, a nuca sumarenta, omoplatas lisas como a superfície esquecida de um grande lago nas alturas, docilidade e submissão de uma fêmea enfim subjugada e aos poucos um macho novamente , altivo e austero, enfiando o sexo na minha boca viscoso. Cintilante. Pela primeira vez o meu olhar encontrava a junção do nojo e da beleza. (HILST, 1993 p. 22).

O corpo de Lucas é a representação da alteridade, ele é o outro, o poeta, Orfeu pós-moderno, encantado/ encantando com seu corpo lírico/poético, impiedosamente despedaçado pelas bacantes. É assim também o corpus literário de Rútilo nada como um todo, fragmentado, sacrificado, prenhe de transgressão e denuncia da opressão social amorosa, familiar, profissional, etc. Roland Barthes levanta a questão: “como fazer que o corpo fale?”. Ele recorre a um meio também utilizado por Bataille, que julga interessante do ponto de vista do trabalho atual sobre o texto, é articular o corpo não no discurso, mas na língua (BARTHES, 2004, p. 306).

Hilda Hilst faz isso em profusão, em Rútilo nada o corpo é parte importante da trama, desdobrando-se em metáforas até ao final: “pesadelos da carne”, “o adorado corpo morto de Lucas”, que mesmo morto não se cala, e conta, e denuncia, e fala, transgressão esta possível apenas na literatura. A morte, é um personagem que ronda como uma sombra faminta, é a “escura e finíssima senhora, grande ventre sem decoro [...] recebendo o mundo, migalhas, excrementos”, enfim, todos se alimentam do corpo.

Em Rútilo nada há uma busca por respostas para a “esquizofrenia” pós-moderna, a busca pela unidade mítica, pela completude, percebemos este aspecto na relação entre os personagens Lúcius Kod e Lucas:

Quem és, Lucas? Inteirissimo poeta, de fiel construção, de realeza até, severo [...] quando vi que não sabia da tua identidade, eras aquele que me mostrava o poema? Muros escuros, tímidos Escorpiões de seda No acanhado da pedra. [...] Ou eras o outro no quase escuro do quarto. Tua macia rouquidão de uma sonhada mulher, só que não eras uma mulher, eras o meu eu pensando em muitos homens e em muitas mulheres. (HILST, 1993 p. 22, grifo meu).

Coellho nos diz que na escrita hilstiana “a experiência de comunhão com o Outro, a partir do corpo, atinge raízes metafísicas do Ser e o faz sentir partícipe da totalidade” (COELHO, 1999, p. 74). Terry Eagleton, por sua vez, destacou o corpo como “lugar privilegiado de enunciação na pós-modernidade”, ele afirma que:

O prazer voltou com força total para infestar um radicalismo cronicamente puritano, [...] O corpo- um tema tão óbvio e inoportuno para ser ignorado sem a menor cerimônia, durante séculos abalou as estruturas de um discurso racionalista enxágue, e está no mento, em vias de tornar-se o maior fetiche de todos (EAGLETON, 1998, p. 34).

Em Rútilo nada a questão da alteridade é repensada, o oprimido não é um fora, um excluído, ele é peça importante do jogo, ele atua com força, não havendo lugar para a figura do “coitado”. Dentre os temas que perpassam a prosa poética encontramos o amor, o homo erotismo, o martírio, a morte, o encantamento, a busca por Deus, muitos deles, recorrentes também em outras obras da escritora. Amor e erotismo, em especial, dão tônica a Rútilo nada, e “o instinto sexual não corresponde apenas a uma função orgânica específica, [...] mas a algo vasto e profundo, [diverso] do que se entende vulgarmente por função sexual” (COELHO,1999, p. 74).

Em entrevista, a Hilda Hist declarou: “O erótico, é quase uma santidade! (HILST, 1999, p. 31). Octávio Paz examina a proximidade entre o erotismo e a poesia, dizendo que “o primeiro é uma poética corporal, e a segunda uma erótica verbal. Ambos feitos de uma oposição complementar”. Para Paz a linguagem é composta de sons que emitem sentido, um traço, uma materialidade que dá a idéia de corpo e possibilita que sejam nomeadas sensações, que são o que há de mais fugaz e evanescente no indivíduo, e “o erotismo é sexualidade transfigurada em metáfora” (PAZ, 1994, p. 12, grifo meu). A metáfora é um artefato literário muito utilizado por Hilda Hilst, elas são especialmente luxuosas e cinzeladas com um preciosismo barroco: “gritos finos de marfim”, “musgos finos pendendo dos abismos”, “areia- anil”, “cães de gelo”, “escorpiões de seda”. As metáforas hilstianas também possibilitam que o inominável seja nomeado, dito, muitas vezes gritado:

Os sentimentos vastos não têm nome. Perdas, deslumbramentos, catástrofes do espírito, pesadelos da carne, os sentimentos vastos não tem boca, fundo de soturnez, mudo desvario, escuros enigmas habitados de vida mas sem sons, assim eu neste instante diante do teu corpo morto. Inventar palavras, quebrá-las, recompô-las, ajustar- me digno diante de tanta ferida, teria sido preciso, Lucas meu amor [...] (HILST, p. 13, grifo meu).

Octávio Paz declara que “o significado da metáfora erótica é ambíguo” e “plural”, dizendo coisas diferentes, mas que em todas elas aparecem duas palavras: “prazer e morte”, para este autor o amor se apresenta na maioria das vezes como uma “ruptura”, uma “violação da ordem social”, desafiando “costumes e instituições da sociedade” (PAZ, 1994, 19-103), tal aspecto pode ser verificado em diálogos entre Lúcius Kod e seu pai:

[...] então, anos de decência e de luta por água abaixo e eu um banqueiro, com que cara você acha que eu vou aparecer diante dos meus amigos, ou você imagina que ninguém sabia, crápula, canalha, tua sórdida ligação, e esse moleque bonito era o namoradinho de minha neta, então vocês combinaram seus crápulas, aquele crapulazinha namorou minha neta para ficar perto de você. Gosta de cu seu canalha? Gosta de merda? Fez-se também de mulherzinha com o moço machão? Ele só pode ter sido teu macho porque teve a decência de se dar um tiro na cabeça, mate-se também seu desgraçado mate-se. (HILST, 1993, p. 13-14, grifo meu).

Risadas. Meu pai: pederastas, vadios e vadias, escritorezinhos de merda, articulistas do meu caralho, você defende esta corja de apartados [...] viciosos, assassinos miseráveis e não me venha com discursos, com esse tipo de sensibilidade cretina, ou você pensa que a ordem se faz com choramingas, com coraçõezinhos partidos, com tremeliques como é que você pensa que se faz uma fortuna, uma empresa de porte, um banco? Trabalho e sagacidade (HILST, 1993, p.19).

Lúcius Kod, encontra em Lucas, Eros, a expressão de uma subjetividade austera. Lucas é um jovem de 20 anos, que estuda história e é poeta, ele escreve “sobre muros”, Lucas põe “os muros” em xeque, por meio da poesia, entendamos estes muros como uma das metáforas centrais de Rútilo nada, que desdobra- se ao final do conto com um poema deixado por Lucas. Otávio Paz alude à poesia como sendo: “o testemunho dos sentidos”. Testemunho verídico: suas imagens são palpáveis, visíveis e audíveis. [...] feita de palavras enlaçadas, que permitem reflexos, vislumbres e nuances:[...] A poesia nos tocar o impalpável e escutar a maré do silêncio cobrindo uma paisagem devastada pela insônia. O testemunho poético nos revela outro mundo dentro deste, o mundo outro que é este mundo. Os sentidos sem perder seus poderes, convertem-se em servidores da imaginação e nos fazem ouvir o inaudível e ver o imperceptível (PAZ, 1994, p. 11, grifo meu).

Lucas é uma ameaça ao socialmente instituído, no caso, o capital simbólico de honra da “família convencional”, ele põe em xeque também, o próprio Lúcius Kod, o filho do banqueiro capitalista, o “herdeiro”, que em inúmeras passagens do texto é humilhado pelo pai por rejeitar um modo de vida pautado na hipocrisia e na mentira, e por ousar ser ele mesmo. O banqueiro, pai de Lúcius Kod, é o outro lado da moeda, não suporta ver o filho “inteiro livre”, emancipado, inveja-lhe o estado de liberdade de alma, livre pelo amor, contraditoriamente “preso numa armadilha jamais pensada”, apaixonado por outro homem. Esta figura emblemática e autoritária, julga-se dona do poder, podendo arbitrar na vida do filho não apenas no âmbito financeiro, mas também no afetivoemocional.

Este patriarca é uma figura contraditória, mas, ao final da narrativa, quando a sua máscara cai, podemos ver o que está por trás, o mais miserável e “pobre” dos indivíduos, cuja única relação possível é a de dominação e aniquilamento do outro, seu dinheiro não consegue comprar o amor. Otávio Paz define este tipo como libertino, segundo este autor, na libertinagem, a relação erótica está totalmente desvinculada do religioso, este tipo afirma o prazer como único fim diante de qualquer outro valor como religião e ética, assim:

O Libertino necessita sempre do outro e nisto consiste sua condenação, depende de seu objeto e é escravo de sua vítima. A relação erótico-ideal implica, por parte do libertino, um poder ilimitado sobre o objeto erótico, unido a uma indiferença igualmente sem limites sobre a sua sorte, por parte do ‘objeto- erótico’ uma complacência total diante dos desejos do seu senhor (1994, p. 25- 26).

Para o libertino é importante saber que o corpo que toca é uma sensibilidade e uma vontade que sofre, estabelece-se um jogo entre vitima e algoz de prazer e de dor. No cerne da libertinagem está o sadomasoquismo que, contraditoriamente, nega a soberania do libertino por tornar este “dependente” de seu objeto, e nega também a passividade da vítima. Paz nos esclarece que [...] “A libertinagem é contraditória: busca simultaneamente a destruição e a ressurreição do outro” (PAZ, 1994, p. 26).

O jogo erótico desenrola-se, o pai de Lúcius Kod contrata dois capangas para espancarem Lucas, estes personagens, “ritualisticamente” e com requintes de crueldade, também o violentam, deixando Lucas muito ferido. E o corpo da alteridade, representado pelo corpo de Lucas, revela a verdade ao deixar um bilhete para Lúcius Kod:

Lúcius, Os dois homens me tomaram como duas fomes, duas mandíbulas. Um clarão de dentes. Sorriam enquanto tiravam as camisas. Vagarosamente desabotoaram os botões. Cheguei a sorrir porque os gestos eram como que ensaiados, lentos... lentos... idênticos. Depois os cintos escuros, as fivelas de metal. Depois as calças. Imagine, dobraram as calças, acertaram os vincos, colocaram as calças no espaldar da poltrona. Pensei: eles estão brincando. E disse: vocês estão brincando. Sorriram. O olhar era afável.meus pulsos amarrados atrás das costas. [...] Vocês só podem estar brincando [eles responderam] pode chamar de brincadeira se quiser garotão (HILST, 1993, p. 23).

Quando os capangas foram embora, o banqueiro passou para “ver o serviço”, o texto nos revela que o pai de Lúcius Kod desliza o dedo ao longo da espinha de Lucas e lhe diz: “vai ter tudo comigo, moço. Afaste-se de meu filho”, e depois, volta a falar com Lucas: “posso te tocar menino?” (HILST, 1993, p. 24).

Lucas “suspende a cabeça para ver” e os lábios do banqueiro tremem. Rútilo nada tem um desfecho excepcional, o pai de Kod sela com um beijo na boca, um pacto de morte com o seu objeto de desejo: Ele beijou minha boca ensanguentada. Eu sorri. De pena da volúpia. [...] Até um dia. Na noite ou na luz. Não devo sobreviver a mim mesmo. Sabes porquê? Parodiando aquele outro: tudo o que é humano me foi estranho. Lucas (HILST, 1999, p. 25- 28, grifo meu).

Quanto a Lucas escolheu a morte, ele comete suicídio com uma arma deixada pelo banqueiro em cima da mesa. Neste jogo não houve ganhador, segundo Otávio Paz, “como castigo, o parceiro [Lucas] não ressuscita como corpo, mas como sombra, o libertino transforma em sombras tudo o que toca, e ele próprio se torna sombra entre as sombras. (PAZ, 1994, p. 26). Coelho acrescenta que “Hilda Hilst rompe o círculo mágico de seu próprio eu, [...] para lançar-se na voragem do eu- outro, em face do enigma (da existência, da morte, de Deus, da sexualidade, da finitude, da eternidade...)”. Para esta crítica, ao abordar o tema da morte, a poeta “se entrega a um desafiante diálogo, [a morte é] enfrentada cara a cara [permitindo que a poeta entre] na intimidade dessa temerosa figura, revelando-a essencialmente participante da vida. (COELHO, 1999, p. 73- 75).

Os muros, “sobre” os quais Lucas escreve, é tema que nos leva a refletir acerca da grande miséria humana chamada preconceito, e os emparedamentos das alteridades que impedem o contato, as trocas simbólicas, a aproximação, promovendo o isolamento, a dor e a morte. E o poeta nos é apresentado como àquele capaz de extravasar, de romper, transbordar e de sair dos confinamentos. Rútilo nada termina com um poema sobre muros, que foi escrito por Lucas: [...]

Muros longínquos Na polidura esgarçada dos sonhos Tão altos. Fulgindo iluminuras. Muros de como eu te amei: Brindisi. Altamura. [...] Muros prisioneiros do seu próprio murar. Campos de morte. Muros de medo. Muros silvestres, de ramagens e ninhos: Os meus muros da infância. Esfacelados. Muros de água. Escuros. Tua palavra: Um mosaico de vidro sobre o rosto altivo. Devo me permitir te repensar? [...] (HILST, 1993, p. 27).

Paz nos diz que “jogando conforme as regras dos opostos complementares, um dos acordes da união amorosa é a separação” este autor salienta que estar apaixonado não nos exime de sentir dor, medo, que este sentimento não nos protege, ao contrário, nos expõe, nos abre para o outro, nos diz que “qualquer amor, é feito de tempo, e nenhum amante pode evitar a grande calamidade: [...] a morte” (PAZ,1994, p.188).

O diálogo em Rútilo nada é uma característica que abre espaço para o teatral, e ao enunciar o texto, como defende Roland Barthes em O rumor da língua (BARTHES, 2004, p. 40), o leitor toma parte na trama como personagem, sendo convidado a captar “a multiplicidade de sentidos, dos pontos de vista, das estruturas, como um espaço estendido fora das leis que proscrevem a própria contradição”. Voyers, assistimos extasiados/ assombrados ao espetáculo, onde o narrador hilstiano domina a cena. Leo Gilmar Ribeiro no ensaio intitulado Da Ficção, aproxima a teatralidade da obra hilstiana com o teatro do absurdo, de Eugene Ionesco, e Samuel Beckett do teatro da crueldade, por espelharem questões comuns no campo do humano, revelando mazelas da uma sociedade hipócrita, mascarada (RIBEIRO, 1999, P. 80).

Terry Eagleton afirma que “o globo está mesmo perdendo funestamente a identidade” (EAGLETON, 1998, p. 20), pensamento ratificado por Stuart Hall, que afirma que o declínio das “velhas identidades” que, durante muito tempo estabilizaram o indivíduo socialmente estão ruindo, sendo “fragmentadas”, “descentradas” e “deslocadas”, dando origem a um sujeito de identidades múltiplas e gerando uma “crise de identidade” (HALL, 1998, p. 14). Percebemos estas crises na estrutura estilhaçada e convulsiva do texto e em especial nos personagens de Rútilo nada. O termo crise vem do grego krísis, que segundo o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, pode significar ação ou faculdade de distinguir, decisão, esta especificação encaixa-se bem nas personagens Lucius Kod e Lucas, que a despeito do que pudesse acontecer, fizeram suas escolhas, buscando transpor os “muros” do preconceito, e romper com a dominação de um pai tirano, que é bem uma representação do sistema patriarcal vigente. Embora haja todo um discurso de igualdade, percebemos que vivemos uma época tão excludente quanto às anteriores, percebemos “formas de subjetividade se degladiando”, e que a alardeada “abertura para o outro” que nos aponta um caminho de maior justiça e respeito sociais, compartilha como concebeu Hilda, de momentos rútilos de esperança e neutro, nulos de desânimo e indiferença (EAGLETON, 1998, p. 43).

Em consideração ao que foi explicitado neste estudo, podemos concluir que a obra de Hilda Hilst está em total consonância os novos tempos, pois ela desnuda o sujeito contemporâneo cindido, dividido entre o desejo e a tradição e em busca de si mesmo e de suas verdades. Outra razão é o fato desta não ser uma obra unilateral, ela acolhe as contradições e oposições possibilitando que num mesmo universo coexistam luz e sombra, amor e ódio, sagrado e profano, vida e morte, polos necessários ao fiat lux. Afinal, positivo e negativo, não é assim que o fenômeno da luz se dá? E rútila, Hilda Hilst já ultrapassou as fronteiras da língua portuguesa, suas obras já foram traduzidas para o francês, o inglês, o espanhol, o alemão, o italiano, pelo visto, nada será empecilho para que esta continue, cada vez mais, conquistando novos espaços.

Profa. Dra. Renata Bomfim.

Originalmente publicado no site do Instituto Hilda Hilst. Fonte

03/01/2023

Luiz Inácio Lula da Silva Presidente do Brasil: a vida vale a luta! (Renata Bomfim)

 

Imagem do presidente subindo a rampa para receber a faixa presidencial das mãos de representantes da sociedade civil e com a cadelinha Resistência, resgatada pela Primeira Dama Janja. 


Acompanhei, no dia 01 de janeiro de 2023, cada minuto da cerimônia de posse do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi difícil segurar as lágrimas de emoção. Eu vivi para assistir chegar ao final um período de muito sofrimento e de luta que começou em 2016, com o golpe contra a Presidenta Dilma e, posteriormente, com a eleição do pior presidente que esse país já teve, inimigo da natureza, do povo, da cultura, não direi o seu nome. 


'Viajou, viajou para a terra do Pateta e, como esperado, não cumpriu a função de passar a faixa presidencial, o que se esperava dele como dirigente da nação. O legado do (des)governo do inominável foi um saldo de quase 700 mil mortes pela Covid-19. Ele não comprou vacinas quando pode e quando era mais necessário, muitas pessoas morreram por falta de oxigênio e de cuidados, ele não derramou uma lágrima, não lamentou a morte dos cidadão e cidadãs dessa nação, a dor das famílias, ao contrário, riu, zombou delas. 


A condição de gestora de uma Reserva Ambiental me permite dizer que a liberação de armas, primeiro ato presidencial desse ex-presidente, aumentou a caça ilegal de forma estrondosa e fomentou o tráfico de animais. Tive a oportunidade de ir na Assembléia Legislativa do ES falar sobre esse tema e solicitar políticas públicas de proteção para a fauna. Nossa luta não foi moleza, pois, os bandidos se sentiram empoderados e, a cada dia eram mais ousados, ao ponto de ameaçar e matar ambientalistas como foi o caso do indigenista Bruno e do jornalista Dom Philips, além de lideranças quilombolas e indígenas.


O efeito da flexibilização da legislação da posse e do porte de armas pode ser observado, também, no aumento do feminicídio. Segundo o levantamento da equipe de transição do Governo Lula, 96% das armas registradas no país entre 2019 e 2022, mais de 400 mil, estão em nome de homens e 4% registradas em nome de mulheres. 


O flagelo da FOME é outro legado do Governo do inominável, a cultura teve o seu orçamento reduzido em 90%, e com relação ao DESMATAMENTO, foi o maior índice registrado desde 2006. A Amazônia e o Cerrado, foram biomas que alcançaram o pico no índice de destruição em 15 anos. Sob o governo da morte, o desmatamento das florestas aumentou 60%, maior índice desde 1998, quando a destruição começou a ser medida por satélite.


Todos os números citados fazem parte do Relatório de Transição, realizado pela equipe do Presidente Lula, prova verificável e irrefutável do tamanho do rombo deixado nas contas públicas e da ingerência desse ex-governo que, graças à consciência e a militância de uma parte significativa do povo brasileiro, chegou ao fim.


É como acordar de um pesadelo! Acordar e respirar ares de DEMOCRACIA. É certo que a luta continua, pois, ainda há muito ódio e desinformação norteando a vida de uma parcela de brasileiros. É tempo de responsabilizar quem tentou demolir as bases verdadeiramente cívicas que sustentam a nossa nação, doa a quem doer e SEM ANISTIA, como pediu o povo no dia da posse do presidente Lula. Enfim, chegou o momento de deixar toda essa tristeza no passado, "resgatar a esperança" e tornar o sonho de uma sociedade realmente livre e democrática uma realidade.  



Bandeira gigante aberta por apoiadores do Presidente Lula.

O Presidente Lula, em um dos seus discurso durante a posse, prometeu empenhar todos os seus esforços na reconstrução do Brasil, reafirmando a soberania da nação e o resguardo dos direitos de todas, todes e todos, como preconiza a Constituição Federal:


"Ao ódio responderemos com amor. À mentira, com a verdade. Ao terror e à violência, responderemos com a Lei e suas mais duras consequências. Sob os ventos da redemocratização, dizíamos: ditadura nunca mais! Hoje, depois do terrível desafio que superamos, devemos dizer: democracia para sempre!".


Lula afirmou que a democracia brasileira precisa ser reconstruída em bases sólidas, especialmente a partir do respeito à Constituição. 


Passado o dia da posse, celebramos a (re)criação do Ministério da Cultura, destruído pelo governo anterior que considerava artista ladrão da Lei Rouanet. Eu mesma fui acusada de superfaturar a Lei Rouanet quando presidi a 6ª FLIC-ES, na UFES, denúncia que, devidamente apurada pela Polícia Federal, mostrou-se caluniosa. A fé em Deus e nos meus amparadores espirituais me sustentou, esse tempo tenebroso passou e estou de pé e com a cabeça erguida.


O Presidente Lula assegurou a retomada de incentivos e de acesso aos bens culturais, "sem censura e nem discriminações". O inédito Ministério dos Povos Indígenas foi criado para assegurar os direitos dos povos originários, maiores guardiões das florestas. Sonia Guajajara foi a escolhida para ocupar o cargo, a ativista indígena do povo Guajajara é a primeira deputada federal eleita pelo estado de São Paulo. Também integram esse ministério Joênia Wapichana e Weibe Tapeba, políticos e ativistas de capacidade reconhecida. Foi emocionante ver o Presidente Lula subir a rampa do Palácio do Planalto tendo ao lado o Cacique Raoni, líder indígena muito atacado pelo antigo (des)presidente. 



O cacique Raoni Metuktire, de 90 anos.(foto: Equipe Lula/Divulgação)

Com relação à subida à rampa, sim, ela aconteceu! Há pessoas que ainda estão esperando um golpe militar e a volta à ditadura no Brasil, mas, para esses cidadão tenho a certeza de que o Ministério da Saúde reforçará os atendimentos em saúde mental, que quase foram destruídos pelo ex-presidente que "viajou" para a terra do Mickey Mouse.


A festa da democracia teve o seu ponto alto na passagem da faixa presidencial. Me vejo impelida a agradecer ao ex por não ter poluído a festa com o seu baixo astral, sendo assim, Lula recebeu a faixa das mãos de uma mulher negra, catadora de recicláveis, depois que essa, de forma simbólica, passou pelas mãos de todos os demais representantes da sociedade que com ele subiram a rampa do Planalto. Não posso deixar de destacar que, entre os escolhidos, estava Murilo de Quadros Jesus, professor de português formado em LETRAS e inglês, mostrando o quanto a educação é importante para Lula e terá destaque em seu governo.


O Ministério do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas terá como Ministra a ambientalista Marina Silva. Respeitada em todo o mundo, marina  chega ao ministério com o desafio de reconstruir os órgãos fiscalizadores, os Conselhos e de combater o crime, a grilagem de terras e a exploração ilegal de ouro e madeiras. Vale destacar que Marina Silva assinou a carta de apoio às RPPNs, se comprometendo com a nossa causa. 


A pauta do bem-estar animal será contemplada com louvor no Governo do presidente Lula, símbolo disso é o caso da cadelinha Resistência, inédito na história. O animalzinho subiu a rampa do Planalto com o Presidente e demais convidados. Resistência foi resgatada e adotada pela Primeira Dama Janja da Silva, após acompanhar o período no qual o Presidente Lula ficou indevidamente preso. Foi patente o carinho de todos com a Resistência, especialmente de Lula que fez questão de guiá-la pelas próprias  mãos. Esse momento, ao meu ver, ajudou a engrandecer a festa.


Lula brilhou, estrela que é!:


"Tenho certeza que tem o dedo de Deus na minha cabeça porque não é possível, sofrer o que eu sofri, passar pelo que eu passei, e estar aqui outra vez outra vez subindo a rampa do Palácio do planalto para consertar este país".

 

 O presidente Lula chegou ao seu terceiro mandato respaldado pelo do voto popular, como preconiza a constituição, a sociedade brasileira disse NÃO ao fascismo, ao ódio, lutou e confiou. Eu sinto um orgulho imenso de fazer parte desse grupo de pessoas, mesmo tendo sofrido muitas perseguições políticas que vieram, especialmente, do campo da cultura, por parte de pessoas que, cegadas, viram no "mito", ícone da ignorância, um modelo a ser seguido. Mas, cada pessoa fez a sua escolha e eu estou aqui, MARAVILHOSA e FELIZ e enquanto Deus permitir, continuarei lutando pela floresta em pé, pelos animais, pois, é essa luta pela vida o meu motivo de viver! 


Lula, Janja, o Vice-Presidente Geraldo Alckmin e sua esposa Lu Alckmin, toda a  equipe do governo e  a sociedade civil, sem excluir minorias, estamos juntos, Ninguém soltará a mão de ninguém! FELIZ ANO NOVO!


Renata Bomfim

Cidadã de alma lavada!

Escritora Renata Bomfim é eleita para a Academia Espírito-santense de Letras.



 

"O CORPO COMO SENDA E CONDIÇÃO PARA O SER", prefácio de Renata Bomfim para o poemário A euforia do Corpo, de Anaximandro Amorim.



Anaximandro Amorim é advogado e professor, mas, antes de construir um vasto currículo profissional, tornou-se escritor. Foi em 2001 que ingressou no universo literário integrando a Academia Jovem Espírito-Santense de Letras, considerada, institucionalmente, a primeira Academia Jovem de Letras do Brasil. Na atualidade, o escritor é autor de obras que transitam entre a prosa e a poesia e continua atuante no campo cultural integrando varias instituições, dentre as quais a Academia Espírito-Santense de Letras.

Anaximandro Amorim.

A leitura inicial de A Euforia do corpo me rememorou as ideias de Roland Barthes, para quem a escrita, afastada dos deveres e pressupostos do fazer científico, possui a potência de produzir diferenças, provocar deslocamentos e descentralizar sujeitos e palavras. Barthes nos diz, também, que o corpo vincula-se à escritura por meio do prazer. Foi a partir desse prisma que passei a deleitar-me com a leitura desse poemário e compartilharei com vocês, leitores, algumas sendas por onde passei nesse espaço dinâmico e plural.

Acredito que A Euforia do corpo busca implicar os leitores num percurso de ambiguidades ¾ rompendo com obviedades¾, a começar pelo título, indicativo de estados abissais do ser, pois, a euforia pode indicar tanto alegria e otimismo quanto o seu posto, o patológico, bipolar, a euforia depressiva. Jacques Lacan referiu-se à depressão como uma espécie de covardia moral, uma recusa do sujeito frente ao seu desejo. Anaximandro aceitou o chamado interno para refletir poeticamente sobre temas e conteúdos pulsantes e limítrofes. O escritor elegeu o filósofo francês Jean-Luc Nancy, estudioso de Lacan, como interlocutor privilegiado, como poderão observar em mais de duas dezenas de epígrafes. Essa escolha, que julgo ser consciente e bastante adequada, põe em cena o ente delimitador-mor da existência e condição primeira para a materialização de outros corpos: o corpo.  A jornada começa com o impulso que arremessa para “fora (ex) do não-ser”. Sob o signo/bússola do desejo, ¾ negado ou vivido às últimas consequências ¾, o saudável e o que, oprimido no inconsciente busca vir à luz, se comunicam como instâncias afins.

A Euforia do corpo desnuda esse ente que nos acompanha do nascimento à morte/desencarne, impondo inquietações, espantos e, em momentos preciosos, nos regala com o maravilhamento e a epifania. Corpo plural e, como podemos observar no poema homônimo à obra, subdividido em três partes, apriorístico. Tomei a liberdade de ler esse poema como se fossem lâminas, ou seja, cartas do tarô. No início, observamos que loucura, magia e desejo constroem uma senda arquetípica, “labirinto sem mapas ou réguas”, que encaminha o leitor para um eufórico “balé feérico”, onde tomará contato com outra subjetividade. A imagem do Louco, que subsiste nos baralhos modernos como o “coringa”, não tem posição fixa e, livre, transita entre os demais personagens do jogo. O eu poético parte daí, carta de número zero, liberto dos códigos tradicionais, “sem arrependimento, abrindo cordões, correntes e camisas de força”, enfim, “em procura”. “Uma charada que convida a repetir o enigma” está lançada. Chega o tempo da experimentação: O corpo é Amuleto! Na primeira carta do tarô, o Mago, criador e embusteiro, dirige a sua atenção para tudo o que lhe rodeia criando mundos imaginários e “um pacto de mistério”, a partir do qual o eu poético vivenciará o processo de diferenciação necessário à sua evolução, uma espécie de rito de veneração e de delícias que transforma a matéria alheia em uma coisa outra, “colosso”, “Porto aberto, macio e úmido”, “augusto deus pagão” e “objeto de culto/delírio”. Simplesmente, não há como resistir, “O corpo é uma tentação!”, não existem diques que contenham a sua força e nem o seu furor, embora o homem seja “feito de carne, ossos, músculos e vontade”, a qualquer momento “explode o que está (nele) contido”. Percebemos o germe de algo novo, a emergência de uma energia feminina poderosa.

A deriva do corpo é sempre produtiva e, ao desbravar uma Geografia íntima, o eu lírico se depara com “falésias” e “planícies”, repousa no “golfo”, “corpo de fuga”, sempre animado pelo “desejo do perder-se” e “Tendo a adrenalina/ do querer como/ ópio da procura”.  Inexiste um manual que aponte saída para as antinomias do desejo, entretanto, o caos enuncia uma nova ordem e, “como monção que tudo destrói/ mas também tudo renova”, e o eu lírico encontra nessa “geografia íntima”, “em cima,/ um cheiro de porto-seguro/ embaixo,/ um gosto de corpo.” Seguimos acompanhando a evolução dessa subjetividade poética que supera o medo de perder-se, pois crê ser preciso o seu destino: “o território do corpo”. Nessas andanças, o erro deixa de ser falta grave, tornando-se “brincadeira”, e as cicatrizes do corpo tornam-se um convite erótico, “portas semicerradas pelo tempo” cuja chave é outro corpo. Persistem as imagens que sugerem a existência de um código de acesso para todos esses mistérios, e nessa altura do texto, na qual o corpo tornou-se local privilegiado de enunciação, ¾ seja ele um corpo de carne, filosófico ou linguístico ¾, urge “Buscar o eterno/ no irromper do instante// sabendo-se / cativo / no vazio / do depois”, ou seja, é tempo de desafiar “o estado da matéria”. O eu poético vê-se impelido a “subverter a ordem do mundo,/ virar o macho do avesso/ - criar uma grande confusão!”: “Lilith”. Tomamos contato com a lâmina segunda do tarô: a Sacerdotisa. O conteúdo feminino latente é poderoso, mas, aqui essa imagem deve ser observada a contrapelo, ou seja, ser a carta de número dois não indica subjugação ou inferioridade, antes como ente emergente da sombra do um, vinculada à serpente, mentora da segunda esposa de Adão: Eva. O poema, dedicado a “todas as mulheres do mundo”, desafia o corpo sociocultural e opressor do patriarcado ao apresentar um modelo de entregar desmesurada. O tempo tornou-se propício para que constelasse essa que possui “entre as pernas”/ - uma máquina de castração!”. A primeira esposa de Adão, Lilith possui um forte conteúdo revolucionário e pode ser encontrada em mitologias de variados países, entre eles as da Assíria, da Suméria, da Babilônia, da Cananéia, da Arábia, da Pérsia, entre outras, escancara o “desvario da criação” revelando a necessidade uma nova arquitetura, a “Arquitetura do Nada”, plantada em um domínio “fértil de símbolos”. Assim, sob o signo da insurreição, nos deparamos com outra personalidade emblemática, o desejado Jacinto, que entra em cena como um “corpo de alívio”, fluido como um “rio soberano” e transbordante, ¾ poeta e amante ¾, presenciamos, então, a “Soberania do corpo”. Tudo é prazer, “um mundo se põe em delírio”, “dedos” e “língua” são senhas para a penetração, mas ainda há alguma reserva.   Volto a Roland Barthes em minhas reflexões. Esse pensador nos diz que a escrita cria um espaço relacional, nem sempre harmonioso, entre o escritor e a sociedade. Acontece ai um embate profícuo que, em essência, busca liberar a literatura de comunicar fatos históricos e de transmitir mensagens, para que possa realizar-se em si mesma: prazer e gozo. Na poesia de Anaximandro sinto esse pressuposto em operação, há no seu processo criativo uma bússola que o orienta para que não se desvie do cuidado/compromisso com a linguagem, sempre burilando os poemas,  explorando sons e formas e jogando com o sentidos das palavras, como observamos no poema “A Pele. O Pelo” que, anaforicamente, repete cinco vezes a palavra “voo”, ao passo que brinca com as consoantes “p” e “l”. Esse poema ratifica o movimento ascensional ensejado nos poemas anteriores. A pele e o seu “raso”, o pelo, são peças no jogo da sedução e levam o eu poético ao desfrute de um “Acalanto doce” que é “remanso” e “abrigo”, e a possuir um “gosto de eterno”. Tempo de dizer, tempo de dizer-se: “A Boca”. A escritura efetua a linguagem na sua totalidade e deparamo-nos uma poética de hierarquização dos corpos: “imaculados”, “aceitáveis”, “rebotalho”, “transitórios”, todos esses presos à ilusão de serem senhores de si. Avesso do avesso: “o não-corpo” influi, seduz e tenta, espelho no qual o sujeito poético se vê refletido de forma invertida.

Jean-Luc Nancy terá dito que “Um corpo só é fazendo e se fazendo”, dessa maneira, o próximo conjunto de poemas construirá, a partir da “fresta da palavra”, o mundo. O eu poético denuncia: “aquilo que cala,/mata” e, a semente que dormitava desperta “feito poema de devir”, semente-ostra gerando pérolas espetaculares, guardadas pelo “segredo-oceano”.

No campo da beleza e do “sublime” ressurge o “corpo de alívio”, agora, maturado pelas vivências, ele anseia “apenas o inominado:/ Um casamento de almas” que possibilita “A Humanidade/ Recompor/ A beleza/ Dos dias” e, eis o milagre: “(o corpo inteiro)”.

O movimento circular do texto enseja um reinício, a “queda” torna-se uma espécie de senha para novas viagens e descobrimentos, o corpo torna-se “cordilheira” e o eu poético vislumbra, enfim, o segredo que se escondem por trás da complexidade, “para além do absurdo”: “A dor de máquina do mundo”. O olhar dessa subjetividade peregrina se (re)constrói com a imagem de um embate entre “Nasciso” e “Medusa”, ela percebe então que há beleza no brutal das criaturas, ou melhor, que brutal é a própria beleza. Essa visada que tomou a leitura da obra A Euforia do corpo como a leitura da profundeza do ser buscou centelhas de compreensão, de forma nenhuma tentou esgotar o seu significado, até porque a potência da palavra poética nos impede de cometer tal hybris.

Há “segredos” inesgotáveis escondidos “por trás de um silêncio prenhe de signos”, o caminho buscado, agora é o da “alegria”. Mas, esses segredos podem ser acessados apenas por meio da leitura individual, na solidão essencial que emana da obra literária, como diria Maurice Blanchot. Mas, lembre-se sempre da senha: “aquilo que cala/ mata”.

Renata Bomfim

 

02/12/2022

O Mais EU de Todos em MIM Vive Me desconhecendo (Exposição de fotos de Vitor Nogueira e Poesias de Jorge Elias Neto)

 

Jorge Elias Neto e Vitor Nogueira.

O que te interpela no chão, quando você vai comprar o pão? Na verdade, em que medida você se permite ser interrogado, atravessado pelo que você encontra no chão em sua necessária e egoísta busca pelo pão? Caminhar diariamente, no mesmo horário até a padaria, em tempos de “Eu mim para mim”, poderia ser equiparado a ação rotineira de levar o cachorro para passear ou fazer atividade física nos quarteirões de um bairro nobre de uma capital brasileira, se não fosse a percepção de que “...A carne, sem pão, encontrada no chão, é de todos nós, e que já era mais que tardia a nossa apatia e cinismo em insistir na ação de não reconhecermos nela nossa fisionomia”
E foi justamente nesse reconhecimento do “eu de todos, em todos, com todos e busca do direito para todos”, que nossos amigos e grandes parceiros da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de Vitória , Vitor Nogueira e Jorge Elias Neto , nos provocam nessa obra que denunciam a perversidade do enredo da estética dos centros urbanos brasileiros, em que a exclusão e a ausência de dignidade humana das pessoas em situação de rua, já não mais comovem e convocam para transformação social, mas sim, constituem-se como adereços, que nas alegóricas boutiques e prédios luxuosos das cidades, compõem um cenário cuja estética tem sido harmoniosamente, consumida, absorvida e capturada pelos poucos predestinados e escolhidos do capital que continuam “desfrutando a essência do milagre.” Com uma sensibilidade fora da curva, errática, inconclusa, Vitor e Jorge se colocam em questão acerca dos possíveis sentidos ou funções de poemas e fotos, quando tratamos da vida nua apatriada ,vida preta , black , vida casual em um contexto em que “e esse desapego deixou de ser escolha”, em que ao deitar na entrada dos prédios, não contam mais com a esperança de serem vistos, alimentados, cobertos e acolhidos pelos residentes, mas sim, garantir pelas câmeras que seguram os que “god save” . Nesse sentido, no olhar da Pastoral do Povo de Rua, a obra “O mais Eu de todos em mim vive me desconhecendo”, caracteriza-se como um potente instrumento formativo que nos possibilita denunciar a necropolitica praticada pelo Estado , bem como anunciar as criações, recriações das formas de resistência daqueles que insistem, mesmo contra todas as forças, em se manter vivos, andarilhando, acompanhados de seus cachorros, constituindo diferentes laços familiares , formas de proteção coletivas e individuais, produzindo poesias, cantando, rezando e lutando contra a casualidade da vida.
Carlos Fabian de Carvalho
Pastoral do Povo de Rua
Comissão da Promoção da Dignidade Humana
(texto retirado do Facebook do poeta Jorge Elias Neto)


Gostaria de recomendar aos nossos(as) leitores(as) que visitem essa exposição. Estive na abertura e posso garantir que ninguém saiu indiferente com impacto da junção de imagens e palavras arremessadas como dados: nos fere e nos cura! (Renata Bomfim)

10/11/2022

CRÔNICAS DO OFÍCIO, do escritor Luiz Eduardo de Carvalho


Luiz Eduardo de Carvalho, em seu décimo título literário com Crônicas do Ofício, estreou com publicações justamente desse gênero, primeiro no Jornal do Curso Anglo Vestibulares e, depois, como editor de Arte e Cultura da Agência Carta Maior, onde publicava crônicas semanais ao lado de ilustres colegas como Moacyr Scliar e Martha Medeiros.

Esta coletânea oferecida pela Editora Cajuína apresenta crônicas compostas entre 1988 e 2022, balizada pela seleção temática: são textos metalinguísticos, a maioria acerca do fascinante universo que hospeda o ofício de escritor. Há também uma seleta de resenhas livres (sem a pretensão do tratamento acadêmico das imbricações da Crítica Literária e da Literatura Comparada), feitas a partir da leitura e análise de algumas obras de seus colegas da contemporânea literatura nacional, alguns dos quais com quem ele trava constante diálogo literário por meio de prefácios, resenhas, apresentações e parcerias editoriais.

Crônicas do Ofício é um convite para o leitor mergulhar na intimidade da lida literária, numa diversificada seleção de textos que, ora divertidos, ora reflexivos, apresentam o sensível testemunho de fatos e circunstâncias que caracterizam o ofício de escritor tal qual Luiz Eduardo de Carvalho vivencia e compartilha com seus leitores. 

***

Crônicas do Ofício é o décimo título lançado pelo teatrólogo, professor, jornalista e gestor cultural Luiz Eduardo de Carvalho que, aos cinquenta anos, abdicou das demais ocupações para dedicar-se exclusivamente à produção literária. Com mais de sessenta prêmios literários no currículo, participação em dezenas de antologias, feiras e bienais, publicou também:

O Teatro Delirante (2014 – poesia erótica e lírica), Editora Giostri;

Retalhos de Sampa (2015 – poesia), Editora Giostri;

Sessenta e Seis Elos (2016 – romance), Fundação Cultural Palmares MinC;

Xadrez (2019 – romance), Editora Patuá;

Quadrilha (2020 – novela), Editora Patuá;

Frasebook (2020 – aforismos), Edições Karnak;

Evoé, 22! (2021 – dramaturgia), Editora Patuá;

O Pirata Grilheta e os Dragões do Mar (2022 – dramaturgia infantil), Editora Giostri;

Um Conto de Réis (e de Rainhas) (2022 – novela histórica), Editora Patuá;

Curtas-metragens (2022 – poesia) e

Cabra Cega (no prelo para janeiro de 2023 – romance de formação)