28/10/2024

O uirapuru canta, mas quem estará disposto a escutá-lo? Carta para irmã Cleusa Carolina Rody Coelho (Por Renata Bomfim)



Marechal Floriano, ES, 19 de fevereiro de 2021.

Querida Irmã Cleusa Carolina Rody,

    Que a paz de Deus esteja com a Senhora. Aqui do vale de provas e expiações, onde me encontro, elevo os olhos até o horizonte e vejo uma luz tênue e difusa. O coração entoa uma prece ao altíssimo e uma onda de calor inunda o meu corpo. Estranho amor esse que grita ansioso dentro de mim fazendo vibrar as entranhas. Que contradição ser bruta, ácida e ansiar a brandura e pureza do lírio. Talvez, haja pureza dentro de mim, talvez sejamos todos puros quando nos colocamos sob os cuidados do amor: amor-tempo, Irmã.

    Escrevo para que saiba que sempre é lembrada com carinho por aqui, na terrinha, especialmente pela sua amiga próxima no trabalho do bem, a irmã Maria Josefina. A comunidade que leva o seu nome, segue firme e é interessante que o bairro onde ela se encontra se chame Padre José de Anchieta II. Anchieta foi canonizado pelo Vaticano em 2014, e a senhora, em processo de canonização, poderá se tornar a primeira santa capixaba. Interessante, também, a ligação da Senhora e de São José de Anchieta com o Espírito Santo, refiro--me, nesse caso, ao Estado, e às artes. São José de Anchieta fez formação em Letras, em Portugal, antes de vir para o Brasil, ele era um conhecedor do teatro de Gil Vicente. Chegando por aqui, tornou-se dramaturgo, gramático e poeta. A Senhora também tinha inclinação para as letras, pois cursou Letras-alemão na Universidade Federal do Espírito Santo e, fluente em espanhol, inglês, francês italiano e alemão, ajudou a muitos, sobretudo, aos estrangeiros, muitos deles imigrantes sem família, totalmente desassistidos. 

Conversei com o Wanderli e ele disse que os membros da Paróquia estão bem, seguem driblando a crise com e trabalho duro. Irmã Cleusa, preciso dizer que uma pandemia terrível assola o mundo neste momento e que aqui no nosso Espírito Santo, assim como em todo Brasil, é grande a dor e o desespero de quem perdeu amigos e familiares. À reboque nesta tragédia sanitária, vem a crise política e social, desemprego e desesperança. Mas a caridade tem brotado e se fortalecido, e aquele(a) que pode ajudar ampara os irmãos mais necessitados. Sim, o cenário é de crise, a devastação ambiental ameaça biomas inteiros, sob os olhares complacentes e criminosos dos poderosos. 

As comunidades buscam se fortalecer e fazem frente a esse horror, especialmente as comunidades tradicionais e os indígenas apurinãs que a Senhora tanto amou. Irmã, o ser humano esqueceu que é feito de terra, que é húmus e agride a Mãe Natureza de forma vil e inconsequente, parece que perdeu endereço de si mesmo, ele viola a sua pátria interior, devastando o seu mundo íntimo. É o medo, camuflado sob a máscara do ódio, que cega as pessoas para a verdade: somos interdependentes!

Lembro ainda, na minha memória de artista, do dia em que um grupo de homens desgarrados chegou à Capitania do Espírito Santo, vi nos seus olhos a mesma fome que devorava as entranhas dos colonizadores dos paraísos, onde o tempo não existia. Chegaram alterados, buscando riquezas e interpretaram a nudez do índio da pior maneira, julgaram que eles eram pobres e desprovidos de tudo. Que arrogância, não é, irmã? E esse menosprezo transformou-se em desrespeito e eles passaram a cometer variados tipos de atrocidades e violações. Um salto temporal me traz de volta ao século XXI, parece que foram apenas alguns dias, pois pouco mudou.

Falo ao teu espírito-memória, Irmã Cleusa Carolina, como uma amiga muito próxima fala à outra amiga. Busco forças para vencer o destino e me afirmar humanamente, vivendo na poesia. Conhecestes bem a indiferença produtora de marginais e miseráveis da sociedade, é inacreditável que, nessa terra fértil e ensolarada, quase sempre é noite para aquele que passa fome, e que as estrelas ameacem despencar sobre a cabeça dos desvalidos do mundo. A vergonha foi expulsa do seio da sociedade, vive-se como se nada disso acontecesse. Como transformar a revolta em amor-ação? Jesus, o nosso mestre e guia querido, trouxe-nos a lei do amor e pediu que fizéssemos da vida um ato de devoção ao próximo.

Um dia desses tive um sonho. Uma criança brincava correndo por ruas esburacadas e sem calçamento. A despeito dos buracos, ela sorria exibindo o seu vestido de flores amarelas. Assim que acordei, o primeiro impulso foi pedir a Deus que aquela menininha nunca deixasse de sorrir e que a violência e o preconceito não a alcançassem. São tantas meninas e meninos por este Brasil que necessitam de cuidado, de proteção, pão, lar, amor, são os filhos do calvário. A Senhora foi acusada de “acobertar trombadinhas”, quando passou a levar para casa várias crianças que dormiam nas praças. À noite, dignamente acomodadas, elas tomavam sopa quentinha e estou certa de que algo dentro delas se refazia, assim como sinto algo se refazendo dentro de mim, enquanto teço estas linhas.

Sabe, Irmã Cleusa, eu amo gatos. Tive 50 gatos quando morei no morro da Boa Vista. Na verdade, eu tinha seis gatos, mas a notícia de que tinha uma “mulher doida” que amava gatos fez o morro famoso e, literalmente, passou a chover gatos no meu quintal. Por vezes, eles jogavam os gatos por cima do muro, noutros momentos, deixavam eles em caixas no portão, e assim foi, até que completei 50 gatos. Eu, que me restabelecia de um acidente automobilístico, nem tinha tempo de sentir dor e, entre as sessões de fisioterapia, encontrava um jeito de castrar, alimentar, fazer a limpeza do ambiente, essa rotina durou cerca de um ano. Decorrido esse tempo, precisei mudar para um apartamento, mas consegui encaminhar cada um dos gatinhos para a adoção, ficando com os seis gatos que tinha originalmente. Lembro dessa história porque quando amamos, por vezes, somos considerados loucos e nos sobrevêm responsabilidades que, às vezes, não deveriam ser apenas nossas. A Senhora amou os irmãos indígenas de uma forma intensa, ao ponto de envolver-se irremediavelmente com os seus dilemas, muitos deles seculares como a opressão do mais forte sobre o mais fraco. Quando foste para Lábrea, conhecias o tamanho do desafio, a pressão que os latifundiários exerciam sobre a floresta e sobre as populações originárias era de um furor assassino. Mas fostes.

Fecho os olhos e imagino a beleza do pedaço de chão amazônico, único no mundo, com floresta densa, igarapés, lagos. Lutar pelo indígena e pela floresta contra o desmatamento e o extrativismo predatório fizeram da Senhora uma pessoa mal vista por ali. O seu esforço foi contínuo e a sua entrega, até o momento final, foi marcada pela coragem. Sinto, Irmã, um calafrio e o mover das entranhas quando imagino aqueles momentos assombrosos, terríveis, mas sei que nunca estivestes só, o Altíssimo lhe cobria com as suas asas. E hoje compreendo que algumas almas possuem a capacidade de se entregar de forma ilimitada a um ideal e essas almas nos inspiram, então buscamos ser melhores e mais justos: a humanidade é construção e conquista. Bem, voltando aos felinos, antes dos 50 gatos, eu defendia os animais da temível carrocinha. Quando a carretinha da morte passava pelo bairro, eu dava um jeito para que ela não encontrasse os cães de rua, e quando eram pegos, eu me dirigia à zoonose para resgatá-los e para que não fossem sacrificados. Passados alguns anos, esses cuidados se estenderam para os animais silvestres, e hoje eu e o Luiz cuidamos de muitos animais da floresta, especialmente dos macacos-prego-de-crista e às abelhas Uruçu Capixaba, endêmica e ameaçadas de extinção. Aos gatos e cachorros se juntaram os macacos, as abelhas e pássaros, tatus, jacupembas, lagartos, um mundo de vida e de luz que faz parte da Mata Atlântica.


    O que faço é nada, uma gotinha no oceano, mas aquece o meu coração essa ação miúda. Não se trata de seres humanos, são animais, mas eles estão sujeitos à opressão semelhante àquela sofrida pelos nossos irmãos indígenas: a perda de seus lares, familiares, da liberdade e, muitas vezes, da própria vida. Eles são retirados do convívio familiar na mata, caçados, mortos, vendidos, explorados e essa violência é silenciosa, pois, para muitos, eles não importam, “são apenas animais”. Mas, para mim, eles são tudo, são os filhos que não gerei. São os meus filhos! 


    É surpreendente a incapacidade humana de lidar com paradoxos e antinomias. É fato que, ainda hoje, matam e morrem pela terra, mas Gaia não pertence a ninguém, ela pertence a todos os seres, vive-se como se a morte não existisse. Acredito que a finitude é o maior segredo da humanidade a ser descoberto. O indivíduo sabe que a morte virá um dia, mas pensa que não virá para ele e, assim, passa a vida construindo castelos para se isolar, cercado de luxo, explora o (des)semelhante, pois julga-se no direito, por acreditar-se esse ser acima da lei da vida, ou seja, não sujeito à morte. Mas esse indivíduo, um dia, descobrirá que os anos passaram e que ele é o mais pobre entre os pobres, pois possui apenas muito dinheiro. Irmã Cleusa, Jesus alertou para isso, ele pediu que não ajuntássemos “tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam”. Quando seremos capazes de compartilhar os nossos tesouros de amor e de solidariedade? 


    A Mata Atlântica é um bioma que resiste mais de cinco séculos à destruição sistematizada e contínua, mas o pouco que resta dele precisa ser preservado, a pressão é muita. Cantam por aqui os sabiás, saíras das mais variadas cores, tucanos e um passarinho especial entre muitos, o meu Trica-ferro. Dizem que ao serem aprisionados, muitos pássaros entram em processo depressivo, é sabido que suas asas atrofiam, acredito que pássaro na gaiola, canta é de desgosto. Durante esses anos, pude observar que os pássaros que chegam para serem soltos na Reserva Natural Reluz levam um tempo para se adaptarem à liberdade, ensaiam pequenos voos e, somente depois de um tempo, entram para mais longe na mata. Deve doer sustentar por muito tempo o voo após anos de paralisação forçada, então, eles passam um tempo experimentando a si mesmos. É lindo ver como eles ficam batendo as asinhas no galho, como fazem os filhotes que estão aprendendo a voar. Nós somos assim também, precisamos abandonar gaiolas como o egoísmo e a ganância e experimentar as asas da liberdade que Deus nos deu. 


Irmã Cleusa, a Senhora viveu na Amazônia e, pertinho do Rio Purus, os seus olhos se fecharam para esta vida. A Amazônia nos permite vislumbrar o paraíso. Árvores centenárias elevam seus galhos para o céu, como se fossem braços buscando alcançar a eternidade. É milagroso ouvir a melodia que atravessa esse rincão verde-escuro, sentir o perfume das flores mais exclusivas. 


    O uirapuru potente lança o seu grito e não podemos ignorá-lo, o seu grito deve ser o nosso grito! Há 36 anos, a Senhora foi assassinada brutalmente, mas o seu martírio e morte lançam luz sobre a necessidade de que continuemos lutando pela vida, pela democracia, pelo direito de existência do próximo, seja ele humano ou animal. Infelizmente, a desigualdade persiste, muitos irmãos e irmãs se esgueiram pelos becos do craque, vagam como zumbis em busca de uma palavra de amor, de aceitação. Tornamo-nos uma sociedade narcótica e alienada, a percepção da realidade está comprometida e pessoas imaginando que, com armas, promoverão a paz. Aqui na Ilha, o vazio fez da Ponte um trampolim, e das estradas, corredores da morte.


    A Senhora deixou um legado de amor na Missão da Prelazia de Lábrea, testemunhamos o poder da simplicidade e de um coração que se entrega sem esperar receber nada em troca: pobres, presidiários, ribeirinhos indígenas, os mais vulneráveis e sofridos da sociedade encontraram, e ainda encontram, forças no seu exemplo de fé.


    Um dia era o teu aniversário e pediste a Deus, como presente, que pudesses se doar ao mundo, que pudesses “te comprometer com o índio, o mais pobre, desprezado, explorado”, Deus lhe concedeu a graça desejada, desejos de luz. O pássaro mágico continua cantando, convidando todos e todas para as bodas do Cristo Cósmico. A vida verdadeira se reconhece humanamente falível, mas se fortalece no coletivo.


Irmã Cleusa, tenho bordado: flores, pássaros, pessoas, besouros, casinhas, rios, acredito que seja possível reconstruir o mundo por meio do bordado. A irmã Maria Josefina também borda, e sinto que, juntas, bordamos uma saudade incrível da senhora, do seu sorriso e da energia de amor que emanava do seu coração e contagiava a todos que estavam ao seu redor. Bordamos celebrando a vida. Deus permitiu que estivéssemos aqui, nesse momento, pelo seu amor e pela sua misericórdia, e não precisamos fazer mais nada além de amar. Bem, a senhora soube amar plenamente, mas eu sou, ainda, uma aprendiz.

Daqui onde estou, vale de provas e expiações, os meus olhos de poeta enxergam para além do sofrimento, vejo um horizonte de paz. Sim, ódio, miséria e dor, mas a esperança se renova a cada dia e lutamos e lutaremos contra o ódio e o egoísmo com as armas do amor: fé, perseverança e caridade.

Que a paz de Deus esteja com a Senhora, irmã querida.

O meu coração entoa uma prece ao altíssimo, grata pela vida. Amém!

 

O uirapuru canta, mas quem estará disposto a escutá-lo? Carta para irmã Cleusa Carolina Rody Coelho. Texto da poeta e ambientalista capixaba Renata Bomfim. Originalmente publicado no livro Cartas femininas: por uma escrita afetiva. ISBN: 978-85- 7772-550-2.


27/10/2024

Poesia produzida por mulheres está sendo estudada na UFES

 

Júlia Bragato- pesquisadora/ UFES

Em 2016, quando dei aulas no Centro de Letras da UFES, ministrei alguns laboratórios que me trazem, até hoje, um retorno afetivo bastante grande, um desses laboratórios foi de  "Literatura de autoria feminina em língua portuguesa". Na época, propus que, nesse laboratório, analisássemos obras de escritoras africanas, portuguesas, brasileiras, por fim, escritoras naturais e radicadas no Espírito Santo. 

Na condição de escritora capixaba eu sempre senti na pele a dificuldade de fazer a minha poesia circular e chegar nas mãos do(a) leitor(a), bem como nas escolas. A internet e a minha participação nos Congressos de poesia no Brasil me ajudou nessa divulgação, mas nem todas as escritoras tiveram essa oportunidade. Tenho a grata alegria de ver vários estudantes que passaram por esse laboratório de autoria feminina, assim como pelo Laboratório de Literatura do Espírito santo, que também ofereci na UFES, formados e levando adiante esse interesse. 

Ontem tive a felicidade de saber que essa moça bonita, a Julia Bragato, pesquisadora da UFES, levou seus apontamentos críticos sobre a minha poesia para um Seminário internacional. Obrigada, Júlia!Agradeço, também, a professora Andressa Zoi, que também é escritora e poeta, por levar adiante esse trabalho de abrir espaço para as escritoras do Espírito santo. 

O Espírito Santo é minha terra natal e, para mim, é o centro do mundo. Nas montanhas capixabas eu plantei meu coração, — dentro da Mata Atlântica —, e a poesia que escrevo reflete algumas vivências dessa mulher que olha para o mundo enraizada, mas que não está isolada, embora viva numa ilha. Busco estender minhas raízes o mais longe possível, para alcançar e dialogar com subjetividades que me abalem, surpreendam, encantem, inspirem... Me sinto uma cidadã do mundo, mas viajando na nave viva e azul.

Enfim, desejo do fundo do coração que, tanto a minha voz, quanto a voz de outras poetisas capixabas ecoem pelo mundo, seja assunto e pesquisa nas universidade, e que o cânone formado pela dicção singular de vozes femininas se fortaleça cada dia mais. 

Renata Bomfim

Vitória, 27 de out. de 2024. 

21/10/2024

DISCURSO DE POSSE DA ESCRITORA RENATA BOMFIM NA AEL/ CADEIRA Nº 7


 

Excelentíssima Sra. Presidente da Academia Espírito-santense de Letras, Profa. Dra. Ester Abreu Vieira de Oliveira; Excelentíssimo Sr. Álvaro Silva, Secretário da Academia Espírito-santense de Letras; Excelentíssimo Prof. Dr. Francisco Aurélio Ribeiro, por quem tenho a alegria de ser apresentada nesta à AEL; Excelentíssima Senhora Dafne Bilich, filha da acadêmica Jeanne Bilich. Excelentíssimos senhores acadêmicos, Excelentíssimas senhoras acadêmicas. Senhoras e senhores, Boa noite!

 

Estou aqui porque recebi o voto de confiança dos meus pares. Obrigada aos confrades e confreiras que me agraciaram com a sua confiança, prometo dar o melhor de mim. Obrigada Professora Dra. Ester Abreu Vieira de Oliveira, amiga e mestra com quem tenho caminhado desde o doutorado na UFES, quando me orientou nos estudos sobre a poesia de Rubén Darío e, depois, na Academia Feminina Espírito-santense de Letras, quando realizamos a 6ª Feira Literária Capixaba (2018/UFES). Refletindo sobre o meu percurso no campo literário, não posso deixar de agradecer, também, a presença da professora, poeta e amiga florbeliana Maria Lúcia Dal Farra, que me acolheu no florbelianos grupo do CNPq, em 2006, e do qual participo até hoje.

Ao Luiz Alberto, eu agradeço o amor que tem me dedicado ao longo desses 30 anos — Hoje, para nós, é primavera meu amor, minha luz!

 Sinto-me honrada e feliz por assumir a cadeira de número 7 na AEL, antes ocupada por personalidades que contribuíram enormemente para com o desenvolvimento socio, político e cultural da nossa comunidade. A minha formação, marcadamente multidisciplinar, teve início no Centro de Artes da UFES. Descobri, com a Mestra Freda Cavalcanti Jardim, a magia do mosaico, arte conhecida como “a pintura eterna” e foi assim que iniciei a vida profissional, quebrando pedras, ‘mosaicando´, como costumávamos dizer no Centro de Artes, buscando o sublime escondido na matéria mais bruta: a pedra. Artista plástica, nessa época, eu não compreendia a dureza, sublimidade e potência da palavra no campo literário.

  A especialização em arteterapia, posteriormente, abriu caminho para as pesquisas sobre saúde mental, foi quando passei a acompanhar as luzes acesas pela Dra. Nise da Silveira, psiquiatra rebelde que, na década de 1940, mostrou ao mundo o potencial curativo da arte. Foi conjugando a mosaicista e a arteterapeuta que construí uma carreira discreta, mas duradoura, no campo da assistência psicossocial, e que um pouco mais tarde daria as mãos ao ativismo ambiental. Dou visibilidade ao caminho percorrido até agora, pois, mesmo  tendo sido bastante árduo e com muitos desafios, ele me trouxe até aqui e posso afirmar que fiz boas escolhas na vida.

 

Faz parte do rito, relembrar o caminho dos que vieram antes de nós. Falarei dos meus antecessores na cadeira nº 7, Patrono e acadêmicos(a) que cimentaram a estrada, dentro da AEL, que tomo como minha responsabilidade percorrer.

O Patrono da cadeira é o carioca José Fernandes da Costa Pereira Júnior, nascido em Campos, em 1833. Costa Pereira formou-se Bacharel em Direito e, aos 23 anos, passou a advogar. Personalidade relevante no cenário político nacional, em 1861 assumiu o cargo de presidente da Província do Espírito Santo, dedicando-se ao fomento da colonização italiana e alemã. Atuou, ainda, como Presidente, nas províncias do Ceará, de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Foi Deputado pelo estado do ES, trabalhando também como Ministro do Império nas pastas da guerra, da agricultura, do comércio e de obras. O nome do Patrono foi imortalizado na praça localizada no coração da nossa capital, conhecida por todos como “Praça Costa Pereira”. Da janela desse belíssimo monumento arquitetônico e artístico que nos acolhe nessa noite memorável, que é o Centro Cultural Triplex Vermelho, podemos observar, além da referida praça, que é palco para manifestações populares e local de trabalho de muitas pessoas, o pulsar de uma parte singular da nossa história.

Nada como uma mulher para narra a histórias de outras mulheres e essa tem sido uma das missões da minha vida. Nos conta Maria Stela de Novaes, na obra A mulher na História do Espírito Santo, que o centro de Vitória “tinha suas doceiras de tabuleiro na cabeça, tipos queridos populares que vendiam, além das cocadas, quindins, papos d’anjo, arroz doce e bolinhos”, muitos desses quitutes eram destinados às alunas da Escola do Carmo. Stelinha, como carinhosamente era chamada a historiadora, conta também que existia, aqui no Centro, uma tal “Pitonisa” conhecida como Vitória-Bibi”, que “preparava o arroz do Sacramento, que era vendido às quintas-feiras, e que tinha poderes sobrenaturais contra feitiços.

Essa história reflete o caráter imaginativo dos(as) cidadãos e cidadãs vitorienses, além de mostrar o quanto o nosso território é fértil para a fabulação. Certamente havia doces sendo vendido na portaria do Teatro Melpômene (1896), atual Centro Cultural Triplex Vermelho. Esse monumento foi a primeira edificação a receber luz elétrica em Vitória. Após um incêndio, o teatro foi desmontado e suas colunas metálicas utilizadas por André Carloni na construção do Teatro Carlos Gomes, anos depois, o espaço se tornou o Hotel Imperador. Atualmente é um Centro Cultural aberto à comunidade e que oferece arte, música, teatro, literatura e muito ativismo social e político.

Volto a falar da cadeira nº 7, destacando quem foi o seu primeiro ocupante. Aristeu Borges de Aguiar foi que escolheu Costa Pereira como Patrono. Possivelmente, motivado pelo fato deste também ser jurista e político. Borges de Aguiar é natural de Vitória e nasceu em 1892. O acadêmico foi Promotor Público, Procurador Geral do Estado, Diretor da Imprensa Oficial e Secretário da Presidência do Governo Florentino Avidos. Em 1928, foi eleito Presidente do Estado do Espírito Santo e veio a falecer em 1951, aos 59 anos.

O sucessor de Borges de Aguiar foi Placidino Passos que, assim como o Patrono e o seu predecessor, foi advogado. Passos nasceu em 1892 e foi Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Espírito Santo, atuando como professor e dirigiu o Departamento de Educação da Secretaria de Educação e Cultura do Espírito Santo. Foi membro do IHGES e Deputado Estadual entre os anos de 1947 e 1951, produzindo textos literários e históricos para a imprensa local. Placidino Passos faleceu em 1984 e foi sucedido pelo mineiro Homero Mafra.

Nascido em 1823 e natural de Itanhandú, Mafra foi Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro e trabalhou como advogado, fazendo carreira como Magistrado no ES. Atuou como Juiz de Direito em diversas comarcas e, em 1974, ascendeu ao cargo de Desembargador, destacando-se como um magistrado íntegro e humanista. Assim como Placidino, que foi Secretário de Educação e Cultura, Mafra uniu o amor pela escrita ao Direito, atuando como Professor de Literatura e de Direito Civil, além de trabalhar como jornalista nos Diários Associados. 

Valdir Vitral foi o quarto ocupante da cadeira nº 7. Nascido em 1926, no município de Alegre, Vitral foi juiz de Direito e, assim como seu antecessor, foi professor de Jeanne Bilich, jornalista e escritora que o sucederia na AEL. Jeanne descreve Vitral como “querido Mestre, precioso e confiável amigo”, alguém com quem ela afirma ter estabelecido “laços de convívio amigável, que transcenderam a hierarquia que norteia as relações entre professor e aluno”. Uma “Alma sensível e nostálgica!”, que encontrou na literatura uma “via libertária” que lhe permitiu “fazer uso das asas da liberdade, associada à transparência anímica, para desvelar o seu íntimo “eu”: sentimentos, emoções, solidão, esperanças e penares”. Valdir Vitral produziu uma obra jurídica profícua, além de textos literários como “Antologia da Saudade” e “Vitrais”, livro autobiográfico, de 1997. Ao fazer o mesmo exercício que faço agora, ⎽⎽ passar em revista a contribuição dos seus antecessores ⎽⎽ Jeanne Bilich se lembrou de haver (re)encontrado seu professor e amigo, Valdir Vitral, já nonagésimo, reunido com familiares num restaurante em Vitória. Destacou que, os olhos do seu mestre, “incendiaram-se e luziram intensamente” ao vê-la, reativando no seu coração a “Recordação imorredoura”, “explícita e agridoce” da saudade.        

Jeanne Bilich foi a primeira mulher a ocupar a cadeira 7, ela foi eleita para ingressar na AEL no dia 10 de junho de 2013. Não tive a alegria de conviver com Jeanne Bilich, via-a na televisão, presença marcante, uma figura que não passava despercebida, seja pela criticidade, ou pela exuberância dos cabelos volumosos e cacheados, voz forte, sorriso aberto e jeito particular com que se comunicava com o povo capixaba. Entretanto, um dia, tive a oportunidade de passar com ela preciosos minutos dialogando sobre livros, filmes e gatos. Eu havia ido ao shopping procurar um filme e lá estava ela, imbuída da mesma missão, passamos a conversar e a identificação foi imediata. Ela me indicou alguns clássicos como “E o vento levou”, de 1940. Dos filmes passamos aos livros e dos livros, aos gatos, ela me contou sobre o seu Nietzche e eu lhe mostrei fotos do meu príncipe felino, Elvis. Recentemente descobri mais uma paixão em comum com Jeanne, a ARTE DA MAGIA. Jeanne chamava a sua casa de “A casa da Bruxa” e eu, na década de 1990, fui a bruxa mor de um grupo de mulheres denominado “Confraria das Bruxas”, nosso estandarte era uma vassoura rústica feita com o mato mágico de Itarana, que acabou sendo devorado por um demônio chamado cupim. Foi essa mesma vassoura que me acompanhou quando fui tomar posse na Academia Feminina Espírito-santense de Letras, e que causou muita confusão, repúdio e horror em algumas acadêmicas. Enfim, fiz a minha performance e lembro sempre desse episódio com satisfação, riso e sem arrependimentos. Escolhi o dia de hoje para tomar posse na AEL não foi à toa, é o Dia Nacional Contra Discriminação Racial. Sou afrodescendente e consta na minha certidão de nascimento: parda. Sou uma mulher negra, bisneta de uma mulher cujos pais foram escravizados.  A biza Otilia nasceu no dia da promulgação da Lei Áurea. Me engrandece e alegra tomar posse na AEL sucedendo outra mulher, algo inédito na instituição.

Tomar assento na cadeira nº7, em um dos endereços mais tradicionais da capital, a Rua Sete de Setembro, que faz entroncamento com a rua 13 de Maio, em um dos prédios mais belos e históricos do Estado, o Tríplex Vermelho, espaço de luta e resistência progressista, é uma felicidade que parece magia.


Houve quem não aceitou que eu tomasse posse nesse lugar e não veio me prestigiar, tudo bem. Há quem não aceita que eu seja uma poeta ativista política, tudo bem também. Forças retrógradas se movimentaram para que eu não fosse eleita, mas eu fui eleita e estou aqui, firme! Me digam não deve haver alguma magia envolvida nisso tudo? O confrade Álvaro Silva me mostrou imagens da casa de Jeanne linda de viver! Viajei na decoração, havia uma bruxinha de roupa roxa altivamente postada à frente da imagem de um cavaleiro do Barroco, enquanto, reunidas próximas, outras feiticeiras formavam uma confraria bem ao estilo “Abracadabra”, filme de Anne Fletcher. De frente para uma réplica da Pietá de Michelangelo, um sofá de veludo azul como que flutuando sobre um tapete, também azul, com flores brancas; no centro da sala, uma mesinha octogonal de madeira repleta de pequenos objetos. Na parede, logo adiante, saltavam aos olhos as imagens renascentistas de Adão e Eva, pintadas por Albrecht Dürer, devidamente emolduradas de forma individual e separadas por outras imagens e objetos. Eva, ao lado do interfone, tinha o olhar voltado para o Adão de Rodin, figura musculosa, posicionada mais abaixo, na mesma parede. Observei, ainda, a presença amorosa das dos gatos Nietzsche e Baudelaire em fotografias. Espelhos, chapéus, plantas, cristais, incensos, relógios antigos, LPs, CDs, DVDs, bibelôs, e muitos livros criavam uma espécie de bricolagem, sim, a casa parecia uma galeria de arte. É certo que Jeanne Bilich transferiu para a sua escrita essa forma “encantada” de ver o mundo. A biografia da jornalista e cronista foi registrada no livro Prisioneira da liberdade: Jeanne Bilich: vida e obra, organizada por Francisco Aurélio Ribeiro, com notas críticas de Álvaro José Silva e estudo crítico de minha autoria. Esse livro, lançado em dezembro de 2022, conta ainda com textos comoventes, escritos por Dafne Bilich e Mirian Bilich, filha e irmã de Jeanne.

 

Jeanne Figueiredo Bilich nasceu no Rio de Janeiro, em 1948. Filha de Miroslavo Bilich, um engenheiro químico, poliglota, refugiado da Croácia e de Jocondina Figueiredo Bilich, professora e filha de uma tradicional família mineira. O casal teve mais dois filhos, Mirko e Mirian. Foi a morte precoce do pai, aos 51 anos, que levou a menina Jeanne a aportar em terras capixabas, aos 12 anos, para estudar como interna no tradicional Colégio do Carmo, onde sua tia-freira, a irmã Maria Luiza de Figueiredo, lecionava.

Para Jeanne essa foi uma “experiência dolorosa”, pois, segundo a escritora, “além da perda da liberdade pessoal”, “oxigênio tenazmente perseguido por seu pai”, e que o levou a “cruzar o Atlântico”, ela ficou alijada do convívio familiar e de tudo o que lhe “alimentava o espírito”: “jornais, rádio e televisão”, “cinema”. Esse foi o seu “tempo do vinagre” e fez com que a liberdade se tornasse a sua “estrela guia e soberana”. Foi em 1964, que Jeanne afirma ter reconquistado a “liberdade perdida”, mas os anos eram difíceis e a pátria se via mergulhada nos "asfixiantes anos de chumbo, ar de cianureto imposto pela ditadura militar”. Após cursar o segundo grau no Colégio Estadual do Espírito Santo, Jeanne conheceu, na Biblioteca do SESC, na praça Misael Pena, o seu “amigo, irmão, companheiro e confidente Amylton de Almeida”, com quem viveu “De e para os livros”, numa amizade que durou três décadas. Posteriormente, Jeanne fez graduação em Direito, na UNESC, em Colatina, e mestrado em História Social das Relações Políticas, na UFES, quando defendeu a dissertação intitulada “As múltiplas Trincheiras de Amylton de Almeida: o cinema como mundo, a arte como universo”, publicada em 2005.

Jeanne Bilich chegou a advogar, mas a sua paixão foi o jornalismo, e por seu pioneirismo ela é conhecida como a “Dama” do jornalismo capixaba. Jeanne foi a primeira apresentadora do Telejornal da Rede Gazeta, em 1976, atuando ainda como redatora, radialista e assessora de comunicação. No campo literário lançou dois livros de crônicas, Zeitgeist – O Espírito do Tempo (2009) e Viajantes da nave Tempo (2013). A acadêmica possui uma profícua produção de textos em sites, além de ensaios e participação em coletâneas. Suceder essa personalidade marcante como a sexta ocupante da cadeira nº 7 é um desafio.

Não possuo a formação em Direito como meus antecessores, mas comungo com eles de uma imensa SEDE DE JUSTIÇA que moldou a minha história e que pode ser observada explicitamente na minha trajetória ou nas entrelinhas do que escrevo.

O amigo José Augusto de Carvalho,  professor, escritor e crítico literário,  prefaciou o meu livro Arcano Dezenove e disse que viu nele “versos que se constituem em pensamentos de elevado sabor, em que se mesclam o social, o político e o lírico”; o professor Luiz Eustáquio Soares destacou, no prefácio de Mina, que a minha escrita é, também “afetiva” e de “enfrentamento ao mal que nos embarga a todos, e antes de tudo às alteridades”; a professora Ana Luiza Vilela, ao prefaciar o Colóquio das árvore, observou uma “vocação irreprimivelmente feminina”; já para o seu conterrâneo, o escritor português José Luiz Peixoto “os (meus) versos, um a um, são experiências, requerem os sentidos para serem verdadeiramente entendidos”. Desde a pitoresca Granada, na Nicarágua, o poeta Francisco de Asís Fernandes Arellano enxergou a Renata Bomfim como uma “poeta contemporânea, consciente de los retos que enfrenta el ser mujer em nuestros dias”, e que “teje uma mitología poética particular con um linguaje de altos quilates”. Pouco, ou quase nada sei dizer sobre a minha escrita, deixo aos críticos as análise e julgamentos. Assim, é por meio da crítica e do olhar e do sentimento dos leitores, que consigo enxergar o que escrevo.

É uma realização saber que foram as palavras que me trouxeram até aqui as palavras e os leitores.  Escrever para mim é uma responsabilidade, é um privilégio poder tocar a alma alheia e me irmanar com os seres do planeta, espíritos encarnados e desencarnados. O crítico literário francês Maurice Blanchot afirmou que “o domínio de um escritor é obra de outra mão”, ou seja, o autor jamais lê a sua obra, para ele essa é um segredo, e esse noli me legere faz surgir, onde não existe ainda senão um livro, uma potência, “força de afirmação insistente, rude e pungente” que nasce a partir do jogo de sentido das palavras.

A literatura e a arte dão cor e sentido a minha vida. Posso afirmar que, na condição de bisneta de Dona Otília, ocupar uma cadeira na AEL, também é assumir o compromisso de não silenciar frente a nenhum tipo de opressão, e de persistir na luta por uma sociedade justa, sustentável e igualitária. O filósofo Gaston Bachelar me classificaria como “uma sonhadora inflamada”, pois, assim como a chama de uma vela, sou sensível ao drama da pequena luz. 


Show de Aline Maria


Há treze anos, quando ingressei como acadêmica na Academia Feminina Espírito-santense de Letras, afirmei no meu discurso de posse que “O reconhecimento público de uma mulher como escritora é uma vitória para todas as mulheres”, nesse encontro agradeci e celebrei as “conquistas alcançadas pelas mulheres que me antecederam, e a oportunidade de fazer o bom uso da palavra para denunciar a violência que ainda oprime e mata milhares de mulheres. É fato que “o discurso feminino ainda incomoda e ameaça, mas é certo que avançamos e, ainda mais certo de que não iremos desanimar até que o diálogo com nossos pares seja possível, até que celebremos “a superação da dicotomia que transformou todos nós em ilhas”. Não chego a AEL coroada apenas com flores, mas recebi muitas flores, e sou imensamente grata aos confrades e confreiras que me recebem com amor, na verdade o amor é a única coisa que me interessa nesse momento. A escrita, mais especificamente a poesia, tem sido para mim um instrumento privilegiado de sobrevivência e de ação no mundo. Sou grata à literatura por ter me proporcionado muitos dos momentos mais marcantes da minha vida e por me oportunizado aprender, viajar, pesquisar, participar de festivais, saraus, publicar e, o mais importante, parafraseando Jeanne Bilich, “amealhar um tesouro, amigos diletos, paredes revestidas de livros”, muitos gatos, entre eles o Pequeno Krishna, recém-chegado, e o leitor, parte indissolúvel de uma obra. 

Em 2007, quando criei a Reserva Natural Reluz, em Marechal Floriano, eu sabia que a minha vida nunca mais seria a mesma, e eu estava certa, a luta para defender o meio ambiente é inglória, mas vale cada gesto, cada ato, cada poema. É por isso que finalizo esta comunicação complementando as minhas palavras com um gesto simbólico. Nesse dia no qual se comemora, também, o Dia Mundial da Floresta, presenteio as pessoas que vieram ao Triplex VERMELHO, me prestigiar, com mudas de Pau-Brasil, cada uma delas identificada com o nome de um(a) patrono(a) da Academia Espírito-santense de Letras. A minha militância como criadora e gestora de uma reserva ambiental e fundadora de um instituto ambiental caminha junto com a literatura, a arte e alberga o meu desejo de ver as florestas do planeta restauradas, em especial, a Mata Atlântica, e esse sonho não se tornará realidade sem a adesão de pessoas que, assim como eu, respeitam a vida: ESSA É A MINHA POLÍTICA!

 

Vitória, 03 de julho de 2022.

Renata Bomfim






13/10/2024

Dois anos sem Jeanne Bilich.


Jeanne Bilich (1948-2022)

Há dois anos, no dia 27 de março, a escritora Jeanne Bilich nos deixou. Faleceu em sua residência, na Praia do Canto, em Vitória, deixando uma obra literária e jornalística de grande valor. A Dama do Jornalismo Capixaba, trabalhou como apresentadora, redatora, radialista e assessora de comunicação nos mais destacados veículos de comunicação do Espírito Santo, além de também ter se dedicado à advocacia. Tenho a alegria de ser sua sucessora na cadeira de nº 7 na Academia Espírito-santense de Letras. No momento tenho me dedicado as crônicas de Jeanne na minha  pesquisa de pós-doutoramento. Espero, em breve, apresentar o meu olhar sobre a sua escrita aos "sagazes leitores". Esse texto, de minha autoria, foi publicado, primeiramente, no Jornal A Gazeta.  

Jeanne Bilich nasceu no Rio de Janeiro, no dia 12 de outubro de 1948, ela veio para o Espírito Santo com a família após o falecimento de seu pai, na década de 1960. Aluna no internato do Colégio do Carmo e, posteriormente, estudando no Colégio Estadual, Jeanne se formou em Direito pela UNESC, em Colatina, em 1975. Ela fez mestrado em História Social das Relações Políticas, na UFES, e defendeu a dissertação intitulada “As múltiplas Trincheiras de Amylton de Almeida: o cinema como mundo, a arte como universo”, que foi publicada em 2005. 

Jeanne Bilich surgiu no cenário jornalístico capixaba na década de 1970 e fez história sendo a primeira apresentadora do Telejornal da Rede Gazeta, em 1976. É sabido que a hierarquia de gênero faz parte da história de muitas profissões, inclusive do jornalismo. A determinação e a competência de Jeanne contribuíram para a feminilização dessa profissão majoritariamente exercida por homens, na sua época. As conquistas da jornalista também se estenderam para o campo da literatura. No dia 10 de junho de 2013 ela foi eleita para a cadeira nº 7 da Academia Espírito-santense de Letras. A escritora tem uma produção rica em textos para sites, ensaios, coletâneas. Ela possui dois livros de crônicas,  Zeitgeist – O Espírito do Tempo (2009) e Viajantes da nave Tempo (2013). Na obra Zeitgeist, a crônica intitulada "Transgressão às regras da boa crônica”, descreve a existência dos “Cadernos de Anotar Vida”, ou seja, uma coletânea que começou a ser escrita em 1972 e que, na época, já contava com “26 volumosos tomos”, “hemorragias gráficas" que segundo revelação da autora, a impulsionaram para a pesquisa e, que mais do que instrumentos para “mapear a alma” e "autoconhecimento", serviam para “diluir raiva, frustração, mágoas ou ressentimentos”. Jeanne Bilich foi a primeira mulher a ocupar a cadeira de nº 7, na AEL, cujo patrono é José Fernandes da Costa Pereira. A escritora Josina (Jô) Drummond afirma que "há uma porcentagem mínima de mulheres na AEL: 13 entre 150 acadêmicos”, sendo que, ocupando o lugar de presidência, apenas duas, Maria Helena Teixeira de Siqueira, já falecida, e, atualmente, Ester Abreu Vieira de Oliveira”. No artigo intitulado “Mulheres notáveis na Academia Espírito-santense de Letras”, Drummond destacou, ainda, que das 40 Cadeiras existentes, apenas uma, a de nº 32, possui uma escritora como Patrona, a poetisa Maria Antonieta Tatagiba. As mulheres estiveram presentes na produção jornalística e cronística do Espírito Santo desde o final do século XIX, de forma reduzida ainda e, muitas vezes, as publicações eram assinadas com um pseudônimo, entretanto, essas contribuições, nem sempre foram valorizadas ao ponto de alcançarem destaque nos registros historiográficos. A década de 1970, época que Jeanne Bilich surgiu no cenário jornalístico, foi avivada pela crítica feminista e pelos os estudos culturais, quando as mulheres puderam exercer maior liberdade nas profissões ligadas à escrita.

Lanço um olhar sobre a obra Zeitgeist: o Espírito do tempo, de 2009, que reúne 56 crônicas publicadas no Caderno Dois do Jornal A Gazeta, entre os anos de 2007 e 2009. 

“Interativo leitor”, como Jeanne se refere às pessoas que aceitam compartilhar das suas “mais íntimas e até publicamente inconfessáveis impressões, emoções, pensamentos e análises”, ao iniciar a leitura, você será inserido em um espaço onde as certezas não são absolutas: “Duvidar é preciso”. É parodiando Fernando Pessoa e citando na epígrafe Dom Quixote de la Mancha; “O que preferes; a loucura sábia ou a sanidade tola”? que a escritora pergunta, na crônica que abre a obra: “Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado de espírito? Não sei! A escritora destaca que esse "peremptório” “Não sei”, veio das primeiras crônicas que Clarice Lispector escreveu para o Jornal do Brasil. A crônica de abertura de Zeitgeist: espírito do tempo, chamada “De Mestras e ousadas aprendizes'', nos apresenta uma Jeanne surpreendida com a missão de cobrir as férias da escritora Bernadette Lyra no Caderno Dois do jornal A Gazeta. Essa deliciosa leitura descortina o rico campo de diálogos que envolve essa obra e o vasto cabedal de leitura da escritora. A cronista destaca o relevante papel das “Mestras” Bernadette Lyra e Clarice Lispector na sua história pessoal e para o campo da escrita cronística, e topa iniciar a “aventura” que a levará para “inovadoras trilhas”, que ela percebe já estarem se tornando muito pessoais. A escritora deixa clara a sua determinação, e que pretende não sucumbir ao medo, pois é impulsionada pela “coragem” e pela “ousadia” para “voos incertos” e “desafiantes”. 

Clarice Lispector e uma miríade de outras personalidades mundo afora, entre elas escritores(as), pensadores(as), cineastas, músicos, bem como personagens de livros e de filmes, são convidados para o seu banquete de ideias. Amylton de Almeida, A.A, “maior crítico de cinema que o Espírito Santo já produziu…”, é tratado com doçura e, para Jeanne, ele permanecerá, mesmo após o seu falecimento, “inesquecível”, uma presença afetiva importante “entre nós, [...] Pelo menos nos corações e nas mentes de quantos o amaram. E admiraram” (“O Bergman de cada um de nós”). Na escrita cronística de Jeanne Bilich há um dialógico com o Espírito do Tempo expresso pelo embate entre a modernidade que promoveu a “ruptura com o passado, as tradições que vinculam as nossas experiências pessoais às das gerações passadas” e a solidez de um outro tempo, esse de fluxo menos acelerado. Viver nesse limbo, - “Eis o enigma” -, refletir sobre tais contradições é a proposição da crônica “Navegando no presente continuo”. O tempo é o mar desafiado e percorrido pela cronista, nele, o sujeito da escrita experimenta “a estranha sensação de vertigem” e, por vezes, o medo do naufrágio, “redemoinho” que “já ameaça a nossa sanidade mental e até as identidades". Essa profusão de eventos submerge o ser num “caudal de fatos factóides, celebridades, internet, tecnologia high-tech, comportamentos bizarros, cascatas de imagens multicoloridas, enlaces e desenlaces (profissionais e amorosos) instantâneos. Fugacidade”. Leitora de Zygmunt Bauman, pensador que captou o caráter volátil da “modernidade líquida”, e de Eric Hobsbawm, historiador britânico autor de “A Era das revoluções" e que problematizou a revolução industrial, Jeanne completa a sua tríade, inserindo na mesma crônica “o velho Marx: Tudo que é sólido se desmancha no ar”. 

Observamos que o sentimento de estar à deriva, “mal-estar, insegurança, ansiedade”, faz emergir a saudade “dos velhos tempos, bons e sólidos tempos”, mas, destaca a autora, é certo que “felizes, ou infelizes”, “o calendário biológico avança”, restando ao sujeito singrar como Ulisses, em busca de sua Ítaca. “Saber envelhecer” é uma crônica na qual a escritora revisita a infância e se lembra que os seus olhos de menina viam “as pessoas de idade como livros volumosos, plenos de histórias e saberes”. “Defrontar-se com o próprio envelhecimento” e suas reações a faz tecer uma crítica sobre a mercantilização da vida. Para a Jeanne, o termo “terceira idade” não é agradável, ela prefere “idoso”, ou mesmo “velho”, porque são designações que não alijam a pessoa do vivido, não as despoja da “experiência, valentia e garbo de haver vencido as etapas cronológicas anteriores”. Cada crônica, como bem destacou Rodrigues, é um “portal”, por onde o leitor pode, de acordo com o seu desejo, penetrar mais profundamente. Há, ainda, em Zeitgeist, uma profusão de elementos que remetem para o sutil, espiritual e, por que não, para o esotérico? Não é à toa que a escritora, entre os pensadores com quem dialoga, insere Carl Gustav Jung, autor que fez uma cartografia singular da psique humana, descrevendo-a como território habitado por uma profusão de arquétipos, muitos deles antiquíssimos. Esse portal muito me interessa e o seu guardião é um gato persa de fina estirpe, Nietzsche, “nigerissimo”, “com olhos de farol, sábio e reflexivo amigo”. 

Quando penetramos no campo dos símbolos e da magia, assim como guiados pela deusa Hécate, nos surpreendemos com a experimentação de um outro tempo, um tempo cíclico, mandálico, no qual “já fomos essas crianças de hoje, Depois? Rebeldes adolescentes, desafiantes jovens, adultos responsáveis; e, na maturidade, arcamos com pesados fardos. Imersos no incessante “contínuum” das elipticas”. Na crônica “O círculo do Ouroborus”, vemos o símbolo que “representa o ciclo da vida”, - a serpente mordendo a própria cauda -, constelar, como diria Carl Jung. No panteão grego, a deusa Hécate, arquétipo tríplice, - criança,  jovem e anciã- , atuava tanto no mundo dos mortos, como a padroeira a quem os cidadão recorriam para serem livrados dos perigos e das maldições, quanto no dos vivos, regendo nascimentos e processo de renovação. Essa deusa possui alguns epítetos, um deles é Propylaia, que significa aquela que fica na frente do portão, por isso o seu culto era, muitas vezes, realizado em portões e portais de entrada, onde estátuas eram colocadas em sua homenagem. Outra designação é Phosphoros, ou seja, aquela que traz a luz. Filha de Nyx, a Noite primordial, ela era a única deusa portadora de duas tochas, que trazia nas mãos.  Vida e morte, duas pontas de um mesmo fio, são poeticamente trabalhados na crônica “O filho herdado” que, não por acaso, ao rascunhar o texto, cometi o ato falho e chamei de poema: “nesse poema…”. Nesse texto vemos a assinatura de Jeanne como cronista. O “locus despido de autocensura”, “íntimo” e “personalíssimo” que ela nos convida para entrar é um cadinho de emoções. O ano é 2009 e Jeanne recorda que, em 1995, no dia 12 de outubro, seu aniversário de 47 anos, era realizada a “cerimônia de adeus” de seu querido amigo Amylton de Almeida: “amizade tão estreita e rica, que nos atou num laço inquebrantável ao longo de três décadas: dos meus 16 anos, e ele aos 18 anos, até aquele funesto dia”. Entretanto, afirma a escritora, “coincidentemente?”, “Presente dos deuses ou derradeiro ‘mimo’ de despedida de A,A.?”, mas o fato é que nesse dia, ela afirma ter "herdado'' o filho de Amylton de Almeida, o escritor Sidemberg Rodrigues.  “Misteriosos os meandros da vida”, afirma Jeanne: “a vida é regida por correntes mais profundas e por uma magia impenetrável” que o pensamento não consegue alcançar, apenas os sentidos. “Cargas ao mar”. De forma “consciente” ou "inconsciente", a preparação para a “ancoragem suave no desconhecido porto” vai se desenhando. O retorno à crônica “O círculo do ouroboros”, revela que a escritora havia completado 60 anos logo após prestar o seu "particularismo Vestibular para a Velhice". Observamos que o campo foi preparado para uma confissão, e a cronista alerta ao leitor que “é de uma franqueza cortante. [...] Bela Virtude, grave defeito”, ela confessa que recusou “botox”, “lipo”, “silicone”, etc., preferindo observar “a geografia que se desenha no seu rosto e corpo”. Essa escolha de vida, na contramão das cobranças sociais a que comumente estão sujeitas as mulheres, a levou a um momento sublime, quando percebeu que os dedos da “estreante velha” se entrelaçam amorosamente aos da “menina Jeanne”, “isenta de culpas, mágoas ou ressentimentos" e que “À alma felina,- independente e libertária - amalgamou-se à leveza dos beija-flores que fazem sorrir as orquídeas na janela”. 

A crônica "Zeitgeist ou espírito do Tempo” evoca as palavras de Virgínia Woolf em Orlando: “poder-se-ia ver o espírito da época soprando, ora quente, ora frio sobre as suas faces”. Para Jeanne há algo de indizível neste termo do idioma alemão que é “quase mágica”. O escritor João Batista Herkenhoff, analisando essa mesma obra, pergunta: “Qual é esta essência que Jeanne Bilich persegue no seu livro?”, e chega ao parecer de que “é aquela [essência] que se alcança quando se tem a sensibilidade de perceber os fios que tecem a História, que ligam os seres humanos ao seu destino comum”.  Acredito que a magia da obra de Jeanne está na conjugação entre consciência histórica, capacidade de maravilhamento e contentamento nas coisas simples, algo possível apenas às almas sensíveis. Jeanne Bilich, deu significado ao seu viver e descansou em paz, após ter amealhado um tesouro: “amigos diletos, paredes revestidas de livros, o gatinho Nietzsche e você, fiel leitor dominical".  

 

Renata Bomfim

04/10/2024

En estos días últimos, por Pedro Sevyllha de Juana.


RAZÃO E EMOÇÃO. Estamos diante da confidência de um tempo breve na vida de Pedro Sevylla de Juana, acadêmico correspondente da Academia de Letras do estado de Espírito Santo no Brasil. Recebeu, entre outros, o prêmio internacional Vargas Llosa de romance e publicou trinta e cinco livros. Devemos ter em conta, que se trata da própria percepção de um tempo considerado final pelo autor. Último, sim, porque ele não se sente capaz, corpo e mente, de continuar escrevendo na sua idade e em seu precário estado de saúde. 

Pedro Sevylla deseja mostrar estas páginas, em primeiro lugar, aos seus: esposa, filhos e netos. Depois, a familiares e amigos daqui e dali. Também, para os conhecedores da sua obra e da web sevylladejuana.com O estilo que os leitores encontrarão, sendo o apreciado em seus últimos tempos, leva além a conjunção de assuntos diversos e a forma de harmonizá-los. Nada é casual, nada é fútil, a trama desloca o conjunto na direção mais imaginativa. Há pensamento, talvez síntese do que o moveu a avançar pelo caminho iniciado em seus anos jovens. As lembranças mais destacadas distinguem tempos e espaços heterogêneos, unidos por uma linha de intenções estimáveis. Metáfora e parábola de uma sociedade que evolui em círculo ou elipse, indo e voltando na nave do tempo, para momentos cruciais lembrados por inesquecíveis. Com o método, muito pessoal, colaboram o conhecimento do idioma e o desejo de utilizar as suas possibilidades.

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Razón y emoción. Estamos ante una confidencia sobre un tiempo breve de la vida de Pedro Sevylla de Juana, académico correspondiente de la Academia de Letras en el estado de Espírito Santo de Brasil. Recibió el premio internacional Vargas Llosa de novela y ha publicado treinta y cinco libros. Hemos de tener en cuenta, que se trata de la percepción propia de un tiempo considerado final por el autor. Último, sí, porque no se siente capacitado, cuerpo y mente, para seguir escribiendo a su edad y en su precario estado de salud. 

Desea Pedro Sevylla dar a conocer estas páginas, en primer lugar, a los suyos, esposa, hijos y nietos. Después a familiares y amigos de aquí y de allá. También, a los lectores de su obra y de la web sevylladejuana.com El estilo que encontrarán los lectores, siendo el apreciado en sus últimos tiempos, lleva más allá la conjunción de asuntos diversos y la forma de armonizarlos. Nada es casual, nada es baladí, todo traslada el conjunto a un término imaginativo. Hay pensamiento, síntesis quizá del que le movió a continuar avanzando por el camino iniciado en sus años jóvenes. Los recuerdos más destacados llevan a tiempos y espacios heterogéneos, unidos por una línea de intenciones apreciable. Metáfora y parábola de una sociedad que evoluciona en círculo o elipse, yendo y regresando en la nave del tiempo, a los momentos cruciales recordados por inolvidables. Con el método, muy personal, colaboran el dominio del idioma y el deseo de utilizar todas sus posibilidades. 


Pedro Sevylla de Juana

Académico Correspondiente de la Academia de Letras del Estado de Espírito Santo en Brasil, Premio Internacional Vargas Llosa de novela, Pedro Sevylla de Juana nació en plena agricultura de secano, allá donde se juntan la Tierra de Campos y El Cerrato; en Valdepero, provincia de Palencia y España. La economía de los recursos a la espera de tiempos peores, ajustó su comportamiento. Con la intención de entender los misterios de la existencia, aprendió a leer a los tres años. A los nueve inició sus estudios en el internado del colegio La Salle de Palencia. En Madrid cursó los superiores. Para explicar sus razones, a los doce se inició en la escritura. Ha cumplido ya los setenta y ocho, transitando la etapa de mayor libertad y osadía; le obligan muy pocas responsabilidades y sujeta temores y esperanzas. Ha vivido en Valdepero, Palencia, Valladolid, Barcelona y Madrid; pasando temporadas en Cornwall, Ginebra, Estoril, Tánger, París, Ámsterdam, La Habana, Villeneuve sur Lot y Vitória ES, Brasil. Publicitario, conferenciante, traductor, articulista, poeta, ensayista, editor, investigador, crítico y narrador; ha publicado treinta y cinco libros, y colabora con diversas revistas de Europa y América, tanto en lengua española como portuguesa. Trabajos suyos integran siete antologías internacionales. Reside en El Escorial, dedicado por entero a sus pasiones más arraigadas: vivir, leer, reflexionar y escribir.