21/04/2016

Fora de Órbita: Este Brasil que eu amo (Crônica de Inês Pedrosa)

 No Brasil sinto-me em casa. Essa sensação de intimidade aconteceu desde a primeira vez que aterrei no país (no Rio de Janeiro, em 1999). Foi uma atracção de cheiro, de pele, de vida. Conhecia o país pelos livros (de Drummond de Andrade, de Machado de Assis, de Vinicius, de Erico Veríssimo, de Jorge Amado – na época, ainda apenas estes) e pela música popular (Caetano Veloso, Chico Buarque, Maria Bethânia – sem esquecer o Roberto Carlos da minha infância, que me levou até eles). Temia que o encontro fosse decepcionante; uma das regras da estúpida cartilha do amor impossível em que se educa a contemporaneidade reza que não devemos aproximar-nos daquilo que amamos ao longe. Por causa dessa estupidez passei uma década a evitar conhecer Agustina Bessa-Luís, que, apesar de ser um génio, é uma das pessoas a quem mais alegrias devo. Esta memória não vem desenquadrada do tema da crónica, ao contrário do que pode parecer ao leitor incauto, porque o Brasil é um dos vários lugares do mundo onde fui feliz com ela, e também porque, tal como eu, Agustina sentia-se feliz pelo simples facto de respirar o ar do Brasil. E entendeu-lhe a fundo a História, o drama, a graça e o talento específico, como perceberá quem ler o seu Breviário do Brasil.

Regresso incessantemente a essa imensa nação que Stefan Zweig baptizou como o País do Futuro, sabendo que esse reencontro me tornará mais forte e mais livre. Não são só os livros, as livrarias, as canções, os espectáculos, os filmes, as exposições. Nem é só a variedade da paisagem, a informalidade no trato e no traje, o samba, os sucos, o doce de leite e a qualidade da caipirinha. São as pessoas, sobretudo, sim: o modo como se atrevem a sonhar. O riso feito da mesmíssima cintilante matéria das lágrimas. A velocidade com que o entregam, a eternidade em que o conservam. Na balança do meu coração, o Brasil pesa muito – um peso que dança, levita, ilumina e aquece. Conheço o Brasil de norte a sul, do litoral urbano e sofisticado ao paupérrimo e bravo interior do Sergipe, conheço-lhe as manhas e os mantras, o luxo e o lixo, e, acima de tudo, a sublime arte de dar a volta aos abismos.

No passado domingo, descobri, pela televisão, um Brasil desconhecido, assustador. Um Brasil de deputados urrantes, clamando pelas mãezinhas, votando “pela família”, por “Deus”, ou para que o filhinho “não seja obrigado a mudar de sexo”. Um Brasil que se insulta a si mesmo, louvando os verdugos que torturaram compatriotas, no tempo da ditadura. Não estou sequer ainda a falar de política, mas da ausência dela. Não falo da visível carência de alfabetização da esmagadora maioria dos deputados, mas de uma visão bárbara, vingativa e vingadora da existência, que denuncia a continuidade do Brasil dos coronéis que Jorge Amado cirurgicamente descreveu. Como convive esse Brasil com o da cultura que se impôs ao mundo pela sua fulgurante originalidade? Como pode o Brasil político ser tão distante do seu povo, de Guimarães Rosa a Cartola, de António Cicero à Mãe Menininha da Bahia?

E, no entanto, eu vi o Brasil mudar, mês a mês, ano a ano, do fim do milénio passado até hoje. Vi o fosso social diminuir, os pobres alcançarem direitos laborais e humanos mínimos, a classe média começar a respirar. A mudança não está garantida, porque em vez de leis o governo criou programas (como o Bolsa-Família) que a qualquer momento podem ser revertidos. A perspectiva do PT é assistencialista, a da direita brasileira é neo-liberal; o conceito europeu de socialismo democrático ou social-democracia não criou raízes na maior democracia da América do Sul. O Novo Mundo fez-se do espírito empreendedor e individualista de emigrantes e ex-colonizados, gente que não tinha nada a perder e que aprendeu a desconfiar do Estado. O Estado, no Brasil como em toda a América do Sul, raramente se mostrou de confiança. Para lá de todas as considerações sobre a falta de capacidade demonstrada por Dilma Rousseff, é irónico que o seu processo de destituição, sob pretextos de ética política, seja liderado por um homem indiciado por corrupção. Mas estou certa de que, ao contrário do que vaticinam as cínicas pitonisas europeias, essa força surpreendente que é o Brasil civil se organizará contra qualquer hipótese de ditadura. E acabará por transformar aquela Câmara de Deputados vinda do Paleolítico Inferior em qualquer coisa capaz de respeitar a beleza e a potência futurante do Brasil.  

 Inês pedrosa
Tradutora e escritora portuguesa

18/04/2016

O fim da literatura portuguesa no Brasil? (Dra. Isabel Pires de Lima)


O fim da literatura portuguesa no Brasil?

No Brasil, tem-se assistido a vivo debate em torno do fim da obrigatoriedade do ensino da literatura portuguesa proposta pelo Ministério da Educação. Este parece ser um processo de apagamento da literatura portuguesa em nome de critérios políticos nacionalistas e de preconceitos pós-coloniais.

Não pretendo discutir a legitimidade desses critérios, apenas procuro tentar perceber enquanto professora de Literatura Portuguesa como as coisas se passam num país cuja literatura se escreve em língua portuguesa e cuja formação está umbilicalmente ligada à nossa literatura. A matriz cultural brasileira, como país que nasceu de um processo de colonização levado a cabo por europeus, é preponderantemente ocidental, como em toda a América, de norte a sul. Essa matriz esmagou, antes e depois da independência, as culturas indígenas e incorporou mais ou menos subterraneamente as culturas africanas que os escravos transportaram. Este facto, agradando ou não aos povos da América, não pode ser modificado, porque pertence a passado histórico encerrado, nem pode ser ignorado sob pena de lhes ser improvável autodefinirem-se do ponto de vista identitário em plena posse de si e das circunstâncias que lhes couberam. O presente não pode ganhar transparência senão em função da compreensão e da não ocultação do passado.

Quero com isto dizer que não entendo como se poderá ignorar a literatura portuguesa quando se quer falar da criação do Brasil, da sua história e da sua literatura. Quero com isto perguntar, que será feito do texto fundador, Carta do Achamento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha? Quero com isto perguntar, que será feito de Padre António Vieira e dos seus sermões? Quero com isto perguntar, como serão lidas Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, ou Marília de Dirceu, de Tomás António Gonzaga? Quero com isto perguntar, como se lê o romantismo brasileiro sem o diálogo com o romantismo europeu através da intermediação em língua portuguesa do romantismo português? Quero com isto perguntar, como se lê Machado de Assis ignorando o diálogo de surdos entre ele e Eça de Queirós? Enfim, quero com isto perguntar, se uma literatura que se escreve em português pode permitir-se ignorar um dos génios literários da modernidade chamado Fernando Pessoa, na obra do qual cabe o mundo, para além desse mundinho português glorificado em Mensagem?

Não há culturas nem literaturas indígenas e puras. A literatura portuguesa nasceu em galego-português, escreveu-se durante muito tempo em latim e em castelhano, isto já depois de nos termos tornado independentes, no século XII, e depois de termos sido colonizados por romanos, por povos germânicos, por árabes e por fim colonizados, durante um século, por castelhanos. Todas as culturas resultam de miscigenações, fruto de contactos violentos ou cordiais, de invasões, colonizações, ocupações em que os povos de todo o mundo se viram envolvidos. E assim todas as línguas se vão "crioulizando".

Ao pretender privilegiar, por razões de estratégia político-económica pós-colonial, o diálogo cultural sul-sul, em detrimento e não em convergência com o diálogo norte-sul, o Brasil está a dar uma espécie de grito do Ipiranga fora de tempo face à velha Europa. Prescindir do contacto estreito com uma literatura que só prestigia a língua em que o Brasil fala e com uma cultura europeia e atlântica à qual a identidade brasileira estará para sempre indelevelmente ligada a montante, como a portuguesa estará relativamente à brasileira, a jusante, em nada fortalece o Brasil, a sua identidade e o seu poder de influência.

Um grupo de nações pós-coloniais livremente constituíram uma plataforma linguístico-cultural e geopolítica chamada CPLP, atravessada por um rio de nome língua portuguesa. Ignorar qualquer um dos afluentes de diferentes origens que o engrossam é pactuar no nosso comum e individual autodesconhecimento. Por isso defendo vivamente a obrigatoriedade da integração do estudo de textos literários de todos os países de língua portuguesa nos programas do ensino básico e secundário dos países da CPLP. Tenho até alguma simpatia, apesar das dificuldades e perplexidades que pode suscitar, por uma proposta recentemente defendida por Vítor Aguiar e Silva, da criação de um cânone literário escolar que vise dar a conhecer aos alunos de todo o mundo de língua portuguesa a especificidade das diferentes literaturas nacionais e a diversidade da própria língua.

Uma última pergunta, pois descentrarmo-nos um pouco de nós mesmos constitui bom exercício: que pensaríamos dos EUA se não fizessem os seus estudantes do ensino médio ler Shakespeare? Ou dos países ibero-americanos de língua espanhola se ignorassem a grandeza literária de Cervantes?

*Isabel Pires de Lima

Professora universitária e ex-ministra da Cultura 


09/04/2016

Um olhar sobre o poemário "Colóquio da árvores", por Fábio Mário da Silva, USP/CLEPUL



         O lexema “colóquio”, contido no título deste livro de Renata Bomfim, significa “conversação”, ou “palestra entre duas ou mais pessoas”. O adjunto adnominal “das” referido às “árvores” parece restringir este diálogo apenas aos elementos da natureza. Contudo, esta obra não se resume a isso, pois o título deste conjunto de versos aponta uma inclinação poética inerente à autora ou até mesmo uma estratégia literária que, conscientemente ou inconscientemente, vem indicar um tema fortemente marcado em sua escrita: a ecologia – assunto contido em obras anteriormente publicadas por Bomfim (Mina e Arcano Dezenove). Esta consciência ecológica desemboca em temas e subtemas como, por exemplo, a origem do cosmo, do ser humano, da essência dos elementos e da inspiração poética, daquilo que é místico, primevo e erótico.
            Na poética de Renata Bomfim, tudo conflui para um retorno às origens, através de um canto de louvação, seja ele da terra mãe e da linguagem poética, seja ele dos mistérios cósmicos. Há em Colóquio das Árvores uma certa maturação em relação ao seu próprio labutar poético, bem como uma gama maior de reflexões sobre o feminino, em comparação com as outras obras publicadas pela autora.
Esta obra, creio, se configura como uma leitura obrigatória àqueles que se sentem inclinados para um tipo de poesia que procura, frequentemente, suscitar a relação entre sujeito poético e natura, visto que aqui tudo o que se fala tem intenção de tratar de um certo conjunto de forças que regem o universo, da relação entre o reino vegetal e o animal com a função poética, buscando-se hamonizar com tudo o que canta no intuito de “reencontrar na poesia/ O elo perdido /Quer religar com firmeza /Tudo o que se rompeu” (Bífida), constituindo-se, em muitos poemas, como uma exemplar amostra de um tipo de ecopoesia.

Fabio Mario da Silva
Pós-doutorando da Universidade de São Paulo

Pesquisador do CLEPUL- Univ. de Lisboa

08/04/2016

Renata Bomfim en el “Colóquio das árvores” (Epílogo por Pedro Sevylla de Juana)


Estimado lector, a quien Renata Bomfim dedicó su Colóquio das árbores; si has llegado hasta aquí recorriste un camino cuajado de paisajes bellos y abruptos. Desfiladeros profundos y llanuras cubiertas de abundante vegetación. Agua renovando su ciclo y alguna aridez que parece puesta a propósito para resaltar el resto. El ser humano habita esos paisajes sometiéndose, tratando de dominarlos. En Colóquio das árbores, el EU de Renata Bomfim ha tomado las riendas. Es un libro muy EU, el más EU de los suyos, pero de un EU ya maduro, capaz de definir y concretar. Cuando pinté su “retrato activo” desconocía estos poemas, y me veo obligado a aumentar el ángulo de mi punto de vista. Las razones de su poesía siguen siéndolo, pero la catarsis que aquí hace las transforma. Sus fantasmas vuelven una y otra vez, más ella los espanta con su ironía ácida, con su temple de genuina tupi capixaba. No se puede olvidar, porque ella no lo olvida, que Renata Bomfim es mujer; hembra en el sentido excelso de la palabra. Hace bandera de lo femenino y la enarbola subida a la solidaridad con el hombre, sirviéndose del fragor de su palabra escrita. Renata Bomfim es militante de la equivalencia, de la paridad de géneros, y lo es desde que adquirió conciencia de ser, lo que  sucedió muy temprano. 
En Colóquio das árbores, Renata resurge metafórica y simbólica, pagana; fuego purificador y cenizas fertilizantes: terriblemente humana. Abre sus heridas para que salga el dolor. El dolor sale a borbotones, pero sus heridas no se cierran, quedan limpias y abiertas, presentes, como recordando, a modo de aviso: nada está decidido. En algunos poemas asoma la erudición, pero Renata la utiliza únicamente por la función ejemplarizante. Su tiempo y su espacio se acentúan, se expanden, se unifican, avanzan juntos. Está aquí y allá, arriba y abajo; abre la puerta a la queja y se hace fuerte contra la realidad de los afligidos. Para Renata, la poesía no es el fin, la poesía es el medio de que se sirve para decir su interior abarrotado de ideas beligerantes, colaboradoras, factibles. Pensadora, filosofa sobre todo lo que se mueve y lo que está quieto, sobre lo existente y lo posible. Trata de entender, de abarcar de aprehender todo lo imaginable. Dual hasta más no poder, toma partido por el bien y por el mal al mismo tiempo. Violencia verbal, crudeza, veneno en las palabras, hiel. Pero en ella el más feroz de los ataques es solamente una de sus aguerridas defensas. Quien es esta mujer que así se expresa? Quien es la terrible leona que ronronea como gatita? Estimado lector, esta poetisa bárbara e indígena, esta artista global que muerde y besa a un tiempo en sus poemas vivos, ardientes, sangrantes, conciliadores, balsámicos; esta mujer indefinible es Renata, Renata Bomfim.
Y este libro que acabas de leer, formado por cuatro poemarios que se hacen unidad porque la voluntad lo quiere, este libro que no deja espacio a la indiferencia, es el imposible y necesario “Colóquio das árbores.”


Pedro Sevylla de Juana

COLÓQUIO DAS ÁRVORES (Prefácio do livro de poemas da escritora Renata Bomfim por Ana Luisa Vilela)


1.      Se você, amigo leitor, ainda não conhece a poesia de Renata Bomfim, este é
talvez o livro certo. Na verdade, a autora publicou já Mina (2010) e Arcano Dezenove (2011). Mas a presente obra, Colóquio das Árvores, é provavelmente a mais indicada para quem quiser encetar o seu conhecimento e a sua fruição desta fresquíssima voz poética.
Esta é uma poesia sem pose, verdadeiramente coloquial, íntima na sua dignidade e na sua hilaridade. E é uma poesia de quem sente de muito perto os seres e as coisas, e está apta a colher-lhes intuitivamente a ressonância íntima, transmutando-a na substância vital do seu lirismo. Lê-la vai fazer-lhe bem, caro leitor; terapêutica, o seu sedimento é o da alegria tónica, da pureza da festa, e do desvario meigo.
Aceite, pois, este livro, como quem aceita um “Convite para um chá” – o nascimento ou o renascimento de uma amizade, uma vida a expandir, um antídoto à dor: “Eu digo Não,/ e inauguro um novo livro da vida/ cheio de páginas em branco”. Colóquio das Árvores transpira realismo sensorial, energia e equilíbrio. É um livro de síntese. De facto, sob uma epígrafe de Ruben Darío, e consagrado ao signo vegetal desde o seu título, ele harmoniza a raiz com o voo, a origem com o devir, o destino com o eros, a eternidade com a dança. Tal é a vocação das árvores e do seu “colóquio” ancestral.
Os cerca de cem poemas que constituem esta obra são, portanto, autênticos rebentos falantes: irrompem verticais, altivos mas requebrados, como ramos floridos adejando ao vento. O que os agita é um impulso enigmático, que toda a obra artística anseia capturar: a “profunda emanação” da vida sagrada, uma espécie de prodigioso elixir poético. Mas não espere apenas a sisuda erudição hermética, amigo leitor: aqui pode também deliciar-se com textos divertidos, como a (ainda inacabada) “Enciclopédia das plantas”, cujo abecedário ervanário se quedou, por enquanto, na letra “b”; ou na picante “Experiência gastroveganogozosa”, que lhe promete a descoberta de prazeres inauditos…
Este livro é, também, um hino ao natural: contém a exaltação épica e mística das árvores – pau-brasil, anil, jacarandá – e das aves que as habitam (como em “Terra de Santa Cruz”), e a perturbante coincidentia oppositorum de “Bífida”, na sua recriação de um mundo atemporal, na sua busca redentora, na sua apologia do presente, na inversão antifrástica, que magicamente transmuta a dor em beleza.
Desconcertante, Renata está do lado da vida, com o seu gáudio feroz, com o seu apelo à brincadeira de viver, com a sua incitação à festa do momento presente. É uma Renata ‘resolvida’, cantante. Uma indefinida jovialidade irónica, terna sempre, às vezes escarninha, libertária como um saracoteio verbal e risonho, desconstruirá por vezes a gravidade da sua leitura, meu amigo. Prometo-lhe solenemente, caro leitor, aqui lhe dar notícia de todos os poemas (ou quase), meninos esquivos e indisciplinados que sejam. Mas também aqui, nesse prefácio tão sério, eu sinto perigar, a todo o momento, a respeitabilidade desta análise irregular de um roteiro imaginário, desmanchada por esse mesmo sopro vulcânico de alegria…

2. Se, manifestamente, é difícil manter um judicioso espírito de sistema, ao ler esta poesia, é possível, ainda assim, apontar-lhe globalmente o seu carácter dialéctico e contrastante, a sua unidade na diversidade, a profunda congruência do diálogo que ele encerra. Trata-se, em Colóquio das Árvores, de uma energia móvel, questão de ritmo, de acordo e de cadência (“Melodia ritmada, amena”), que concilia a vivacidade e a transcendência, e encara a noite como o prelúdio do dia. A epígrafe de Ruben Darío formula o desígnio fundamental do acto estético: vencer a morte.
A vocação irreprimivelmente feminina do resgate parece consignar a este livro a magna tarefa de administrar a coexistência harmoniosa dos contrários - positivo e negativo, alto e baixo, luminoso e obscuro. Que esse desígnio seja também vegetal, explicitamente o da “selva sagrada”, não pode admirar-nos: a selva é bem o símbolo da temporalidade sazonal e cíclica, e da proliferação vibrante da vida.
A partitura deste “colóquio” integra cinco vozes, cinco andamentos. No primeiro, “O Grito da Rosa”, as epígrafes de Sylvia Plath e de S. Lucas reforçam a assunção, entre a fúria, o grito e o riso, da identidade pulsional do poeta, arauto e fazedor da beleza, contra um destino humano de degradação e perecimento. Na verdade, esse é um movimento simbólico já contido na imagem da árvore, que sempre induz uma pulsão redentora, um aceno libertário de superação e utopia. Como diz Durand, “toda a evolução progressiva se figura sob os traços da árvore ramosa.”[1] (235).
Na segunda parte, “Colóquio das Árvores”, parece predominar a valência incorporadora e unitiva das qualidades humana e vegetal, atributos essenciais da árvore. É esse o programa intuído pela epígrafe de Florbela.
À terceira parte, “O Cisne a Flor”, as epígrafes de Ruben Darío e de Florbela consagram o ideal da beleza e a referencialidade terrestre.
Em “Cantos de Vida e de Esperança”, a quarta parte, sob a tutela conjunta de Sophia e Van Gogh, parece imperar de novo o dialogismo e a intensidade erótica da vida plena e perfeitamente vivida.
E, na última parte, “Hortinha Poética”, criação jocosa duma poética e duma mitologia especificamente ‘vegana’, as epígrafes de Bachelard e Lao-Tsé, alusivas às “virtudes secretas das substâncias”, podem fazer o elogio da simplicidade, a mais humilde e a mais eficaz estratégia para “herdar o Eterno”.

3. Uma das estruturas que pode ordenar esta horda poética insubmissa parece consistir numa particularíssima disposição antitética, luminosa, com tonalidades algo polémicas, quase guerreiras. Certos poemas aliam a afirmação de um desígnio individual, a um desejo excepcional de infinito e de transcendência. O poeta é um ser luminoso, de grito desafiante, que um fôlego messiânico agita, anunciando a beleza e os seus valores resplandecentes. Possuído pelo fulgor da utopia, o seu destino é o de “Imaginar o mundo”, reinventá-lo pela “energia serpentina” que o queima.
Por isso também, no poema “O Grito da Rosa” a poeta lacra o seu compromisso com o real e com a matéria de que são feitos a vida e o mundo. E com a organicidade matricial da Dor. Em “C’est la vie”, faz uma apologia eufemizada dessa “ferida” ontológica, motor e alimento do poético – como uma incorporação lírica e resignada da eterna presença indizível da Dor, “esse isso”. Em “Questões poéticas”, essa dor do real resiste e circula através do tempo e da matéria, que Renata não pode compreender, mas que redime pela compaixão universal. A salvação, que inverte e resgata a queda, é o desígnio do eu lírico em “Terra de Santa Cruz”: aqui, os gestos simétricos da poeta – o voo e o mergulho – sintetizam uma cosmogonia que renova um espírito ancestral, materializado na redenção eterna da terra brasileira.
Outro veio figurativo pode agrupar “Vozes natalinas” (enunciando a amargura pelas vítimas animais inocentes, convivendo com a mordacidade lúdica e a vitória final da vida); “É Carnaval”, traçando a oposição rancorosa entre a “beleza bruta” das aves e os fátuos enfeites carnavalescos; “A igreja militante”, em que uma logopeia ironicamente melodiosa, anafórica, ainda sarcástica, traça a caricatura de todas as igrejas e se resolve, como em poema anterior, pela invocação de um Cristo cósmico, maior que todos os rituais e todas as mortes; e ”Fantasmas da Esperança”, em que a atenção magoada às desgraças do mundo se funde no final com a instigação épica, o incitamento ao “exército de vencidos”.
Em “Frankenstein”, qual afável Mary Shelley, a voz poética assimila um bestiário fabuloso, pluralizando e comicamente convocando uma série terna de totens pessoais; entre todos os animais, avulta o gato (santo, profeta, sacerdote, arquitecto, malabarista, zen…); é um objecto carnal e simbólico espontaneamente incorporado na fantasia poética, aquele que Renata amima em “Todo gato”, em “Elvis”, em “Os olhos de Joaninha”, em “Joaninha”. Para lá de aspectos biográficos, a inclusão, pela poeta, desses bichanos na sua comunidade de amigos parece outorgar-lhes uma terníssima identificação com o humano (“desenhando arabescos/ multicoloridos/ no espaço dos meus sonhos”), constituindo quiçá uma espécie de anti-metáfora da poesia, uma sua abstracção viva: uma alma felinamente corporizada. Esses poemas podem pois compor outro grupo temático, mais autoral e genealógico, que também integra “A neta de Mary Wollstonecraft”, magnífico poema diurno, gesto de conquista identitária e expressiva, cantando o prazer indomável da dor, desencabrestado e altivo. E, evidentemente, “Identidade X”, arrebatadora reivindicação da jubilosa autenticidade feminina, que cumpre a proeza de afirmar, provocadoramente, uma identidade ao mesmo tempo individual e sintética, carnal e transcendente, capaz de incorporar e resgatar todos os rótulos e todas as conjecturas.
Falando de auto-identificação, valerá a pena ler e reler “Eu”, glorificação explícita da mistura e da aglutinação, estruturas maiores – pois claro! - de um imaginário tipicamente feminino e nocturno. E, já agora, “Vénus de Ébano”, a quem é concedida a gigantesca voz do feminino essencial e da obscura, feroz natureza da arte, petrificação esfíngica e perscrutadora do Tempo nocturno. Ao apelo do encontro do ‘outro’, à elegia de um olhar atento que esse poema materializa, pode responder o poema seguinte, o solar “Anticanto, antitudo”, percorrido pela energia da festa da vida e fazendo o elogio da soberania proscrita, renegando adereços, narrativas e estigmas e assumindo festivamente as insígnias de uma feminilidade até certo ponto heróica, porém transgressora. Do mesmo modo, em “Joana d’Arc” se faz um apelo urgente a essa espécie de messias feminino, dissolvido, sem laivos de falicismo, na tonalidade épica da resistência e do renascimento. Com ele dialoga “Fogo”, ainda sob o signo do renascimento do dia prodigioso.
É que, mesmo nesses poemas de assomo heróico, sempre Renata, na sua exortação à poesia, convoca as “vozes viscerais” da noite humana, valoriza as suas trevas, que escuta e redime por um parto de amor (“Amo, amas”). O mesmo se dá em “Maternidade”, em que se confundem e interpenetram as entranhas uterinas e oníricas, num parto infinito que é também uma aurora cósmica. E, num meneio trocista, carnavalesco, a fantasia poética da autora compraz-se por vezes numa exultação anti-carnívora, simultaneamente luminosa e depurada: é o caso do hilariante “Vampiro vegano”.

4. Assim, quando em “O retrato de Blanchot” censura o auto-apagamento físico do famoso (e enigmático) ensaísta francês, Renata apela ainda ao corpo: a leitura fruitiva convoca a incorporação digestiva/intelectual. Em contrapeso ao regime que anteriormente descrevemos, parece predominar em Colóquio das Árvores um gosto pela intimidade secreta, uma estrutura decididamente aglutinante, anulando as separações, recusando o isolamento e a dissociação e privilegiando a comunhão, a dissolução, ou a transubstanciação mística. Nesta poesia, tudo se liga, ata, aproxima e abraça.
Aqui, Renata sempre promove a união e a continuidade elementares. “Vitória é uma delícia!” é um exemplo alegre desse tropismo fusional, pela identificação radiante com a terra; “Memórias do corpo” é outro exemplo, entre o sério e o faceto, de uma apologia do corpo, do seu movimento regressivo e da sua nobre missão de “ser Terra”. Já em “Inquietações”, a tonalidade perplexa denuncia a natureza a-lógica da vida e, portanto, do poético, feito de rudes obscuridades: sentimentos, demónios destruidores, “turbilhão assombroso das entranhas”. Assim se exorcizam os símbolos mortíferos, transmutados em talismãs estéticos, forjados na intimidade quente e benfazeja da matéria e dos seus ritmos.
Mas Renata desce mais fundo, na sua reviravolta dos valores imaginários. Sereia, harpia, aranha, Salomé, serpente: é todo um itinerário de revisitação erótica e de resgate sistemático dos monstros femininos nobilitados. No esplêndido “Viúva Negra”, todos os valores maléficos da aranha, tecedeira nocturna e predadora, são ferozmente exaltados, num vigoroso sobressalto sanguinário que só encontrará alívio no “beijo fresco” da morte amorosa. Em “O canto da harpia”, são os adereços acutilantes – unhas, crista, asas – que se transmutam em mergulho, renascimento e saudação à vida. “Covil das palavras” traz ao discurso a fala da serpente, parente da volúpia, e as suas promessas de amor e perigo. Com “O prazer de Salomé” (outra digna réptil), a decapitação viril tem o seu contraponto no eros, em cenário sumptuoso e mortal. Finalmente, “O filho” é uma prodigiosa síntese dos dois regimes, o biológico e o espiritual; nesse poema se glorifica a descida (preâmbulo da ascensão) à matéria pastosa e úbere do inconsciente, donde surgirá o filho devorador, “fruto da minha meia-noite”, nascido dolorosamente do sangue, da violência e da utopia: a obra poética.
Na verdade, de uma forma ou de outra, tal como na aventura alquímica, sempre nesta obra se caminha para uma sublimidade substancial, que transcende a matéria e a prolonga no cósmico e no religioso. É assim com “Florbela em canto”, com as suas belíssimas “imagens que insistem em se tornar sangue e carne, / e ir para além de mim”. É assim ainda em “Campo comum”, em que a incorporação totalizante e fusional no colectivo não omite a angústia, individual e irremediável, da transcendência. Em “A transubstanciação do vegetal”, são os legumes que, “Elementos orgânicos ricos em Vida”, pela intimidade digestiva se reincorporam misticamente no sujeito: “Deixo de ser eu mesma para me tornar outras coisas. / Coisas com aura e prenhes de inéditos”.
Do mesmo modo, em “A beleza pode ser mortal”, a elegia à efemeridade da beleza mortal confunde-se com a vã crueldade dos estetas. E, ainda com o motivo arquetípico da rosa, “Sonho da poeta” vai ensinar-lhe “como cantar a beleza bruta”, confundindo, quiasticamente, a corporalidade do poético e a poeticidade do corpóreo. Já em “Sede e fome”, o orgânico é o caminho do divino, e a apologia do vazio, do abstracto e do incognoscível faz-se por via da incorporação e da abolição paradoxal (algo pessoana) das distinções: “O vazio me invade:/ Resto plena de tudo o que não sou eu”. A esconjura do ódio condena o poeta à vertigem do vazio, entre a torre de marfim e a terra rasa (“Ser poeta”). Habitado por uma energia que o transcende, resta-lhe o seu canto desolado: o canto do não-ser (“Louvação”); e, nessa perda, busca a unidade, no silêncio e no indizível - um movimento de antífrase que “O Uno é Deus” consuma.
É que, em Colóquio das Árvores, o próprio espaço é especial: os sonhos de viagens são premissas involutivas, confundem-se com o regresso a microcosmos íntimos. É que, como em “Vitória e Lisboa”, as cores do mar, projecção típica do inconsciente e do caos prenhe de possibilidades, unem sinteticamente o passado e o futuro, a saudade e o sonho. “Dentro de mim há paisagens”, diz Renata em “Campos desconhecidos”; a amplidão, o esvoaçamento e a vertigem animam essas paisagens interiores, liliputianas, demandando a síntese - “a falácia da unidade”. Num poema central, “A Tupiniquim que me habita”, a noite arcaica, a imensidão da floresta e o rumor da sua palestra testemunham da persistência, no sujeito, do tempo e da matéria colectivos, atestam a sobrevivência larvar e protectora de um destino capixaba que, entre a protecção e o combate, resiste à usura do tempo e da opressão.
Assim, neste Colóquio as moradas são sonhos de intimidade aventurosa, fantasias minuciosas (e ternas) da quietude sábia, onde o próprio tempo, governado por ciclos eternos, participa do nirvana (“A sesta do monge”). Não se espante, pois, amigo leitor, se, ao topar com o assombroso poema “Réquiem para um vivo”, for levado a reconciliar-se com os rituais mágicos da morte e do enterramento. Nessas exéquias virtuais, como em todos os devaneios do repouso e da interioridade protectora, o túmulo, o berço, o peito, a morada e a memória fundem-se, numa espécie de claustrofilia carinhosa e secreta, com a promessa da latência e da eternidade.

5. É que Renata (e nós com ela) está a caminho da missão mais utópica e redentora de todas: eufemizar a morte, anunciar o triunfo da vida. E assim, em “Erosão”, a fenomenologia da cavidade, do vazio, da ruína e do desgaste dá lugar à memória do dia inicial e novo, que há-de trazer, outra vez, a unidade ressurrecta. Em “Não materialidade”, da  destruição se fará o apelo épico ao brotar universal da poesia, “canto de paz / para uma nova era”. No florbeliano “A vida e a morte”, a carne-terra se adorna de raízes e tesouros, repousando na profundidade antiga de um renascimento telúrico, semelhante àquele que, em “Renascimento”, invoca a alquimia da terra, que sempre ressuscita “amorosamente livre”.
Inaugura-se, desse modo, uma longa e expressiva série de poemas dedicados à representação da temporalidade – uma temporalidade transcendente, sintética, que engloba tanto a repetição cíclica como a linearidade sucessiva, e sempre se projecta num devir eufórico. Cindida, errante (“Esquizofrenia”), sob uma epígrafe de Hilda Hist, Renata canta o seu fundo estranhamento de Ser, adivinhando a reincorporação na terra, a reconciliação, o recomeço: uma alvorada, “Interstício que permitira a (re)integração/ Das minhas partes”.
Essa é a grande missão da poesia: retemporalizar. Em “Era uma vez”, ou em “O conselho”, ou em “A menina”, a pulsão narrativa do fantástico é, também, uma invocação ao futuro: “Pega o fio da história e tece/Uma outra história”. Não se estranhará, portanto, que Renata se confesse “Eterna romântica”, manipulando a bel-prazer a temporalidade histórica, dissolvida na sucessão sem freios da vida. Se o tempo “existe inexistindo”, o eu poético desenvoltamente nele se dilui e universaliza. Em defesa da sua poética (“Ofereço ao meu leitor Pérolas,/ as mais bonitas e espectaculares que/ a minha mente e o meu corpo,/ incendiados pelo desejo, podem produzir./ São envenenadas, sim, mas são também/ BRILHANTES e NACARADAS.”), sempre diremos que ela recupera, a justo título, a imagética colorida e preciosa, típica da feminilidade nocturna, imponente e arquetípica, através da riqueza e diversidade das imagens da substância material, na infinidade abissal dos seus matizes.
Pela própria usura, viu, leitor?, se tece o porvir: “Impermanência” assim o promete, cantando a abertura total do ser à utopia do vir a ser. Presentificada, a “Fração de tempo” grita uma imperiosa fruição do instante: “Parem tudo!”. Porque, apesar dos pesares do tempo, esse é o momento precioso de “O Sol”: momento de expansão criativa, de hino à vida - “Importa, sim, que num átimo, o Sol e eu/ Brilhamos juntos”.
E, com “Diluição” – sim, através da desagregação e do estilhaçamento – se opera a fusão com o mundo, a desmultiplicação prodigiosa de uma “partícula apenas”; se faz o louvor do presente – dádiva do momento, poesia escandida no compasso vibrátil dos dias: “Melodia ritmada, amena”. Sim, a música verbal, matéria do ritmo e da cópula, pode iludir, como por encanto, a deriva do tempo. Sim, “seria lindo ver o tempo parar”! Unicamente, a inexorabilidade do tempo tudo destina à “espoliação” – menos a eternidade esquiva das palavras (“Amar dói”).
Eis, pois, que se ergue outro veio temático maior, nesta poesia da união e da síntese: o veio erótico, misturado por vezes com a gulodice e com a devoração. É o conhecido tropismo oral e digestivo do eros, que “Viva o amor” compara ao verde kiwi… Simetricamente, a gastronómica e lasciva “Ode à batata” (equivalente feminino do robusto pimentão, protagonista da “Experiência gastroveganogozosa”), faz o elogio da beleza sensual desse tubérculo humilde, que no entanto “vibra incendiad[o] pela centelha da vida”. É bem verdade que, como os legumes, há no amor que plantar hoje para colher amanhã – para poder continuar “brincando de viver”.
Todavia, neste Colóquio, os afectos poéticos estendem-se aos lugares geográficos. “Évora”, por exemplo, deixa-se penetrar, em sussurro amorável. Os apegos incluem ainda o amor fraternal (“Encontro”), em que o beijo é o selo silencioso de uma relação entre identidades de natureza diferente, porém complementar, que se reencontra, inteira e preservada. E abrangem, igualmente, uma verdadeira comunidade de amigos, tesouros vivos, numa pletora da agapé: o amado, os gatos… E abarcam mesmo os ensaístas predilectos, compondo uma encantadora erótica da erudição (“Revelação”). Já o breve “Mina” canta a explosividade erótica, sugerindo que o Eros sempre de alguma forma destrói e aniquila. É o que se passará, afinal, no portentoso poema “Dionísio”: na “selva sagrada” de Pã, a ninfa torna-se receptáculo fluido de um Eros divinamente devorador, sofrendo, nessa hierogamia, a inscrição tremenda dos seus signos do êxtase. Ambiguamente, e sugestivamente, se representa aqui a aliança entre a libido e a morte, num despedaçamento metafórico que grava, no corpo feminino, os traços arrebatados de uma escrita alucinada.
Na verdade, a poesia bem parece coisa de mulher, com seus olhos, suas garras, seu sangue periódico, lunar (“Ser poeta III”). Poesia: ser heteróclito, impossível, de cauda, asa, bico, síntese de contrários e de tempos, fascinante e feroz que nem mulher – o uno no fragmento: “Garatuja, esboço, traço: / Risco” (“A poesia” e “Todo poema”). A escrita é uma aventura (“Exílio”); auto-referencial, alma-pena navega, na vaga; no indiferenciado oceano dos signos, demanda o deserto fulgurante: “Busco a folha em branco. /Terra firme onde a palavra,/ Insurrecta, prospera”. Sendo navegação, é-o também no tempo: arqueologia. Assim, num poema cintilante, “Art poétique”, Renata apela à fundadora “palavra fóssil”, “o verbo matriz,/ nosso ancestral unicelular delirante”: o genoma desvairado do lirismo, que concentra, qual ouro ou sal alquímico, a substância íntima do poético.

Na sua requintada, mas elementar organicidade dialéctica, Colóquio das Árvores guarda ainda um repto e um compromisso final, a que só a sua própria leitura, amigo leitor, poderá dar resposta activa. Afinal, poesia é “a palavra viva”. E, por isso, ”paga tanto quem escreve,/ Quanto quem lê.”


Cartaxo, Portugal
Ana Luísa Vilela




[1] Gilbert Durand, As Estruturas Antropológicas do Imaginário. Introdução à Arquetipologia Geral [trad. de Hélder Godinho], Lisboa: Presença, 1989, p. 235.

Formosa International Poetry Festival in Tamsui, Taiwan (1 a 7 de setembro de 2016)

Olá amigos,
Entre os dias 1 e 7 de setembro de 2016 acontecerá o importante Formosa International Poetry Festival, em Taiwan, distrito de Taipei. Apenas quinze poetas estrangeiros participarão como convidados e o encontro contará com poetas locais e participantes. Recomendo esse evento. Abraços fraternais e poéticos. Renata Bomfim.

Aos interessados em participar desse evento poético recomendo que acessem o

07/04/2016

O corpo de luz em El CURVO BLANCO, de Anahi Celeste Cao Cileiro (por Renata Bomfim)


O corvo poeticamente pintado por Anahi Celeste Cao Cileiro canta a vida, diferentemente de “Nunca mais”, ave “estranha e escura” pintada por Edgar Alan Poe e que simboliza o luto e a ausência irremediável causada pela morte.
El curvo blanco aponta ao leitor a sua estirpe insurrecta, luminosa e vivificante desde as suas epígrafes, com versos do escritor russo anarquista Piotr Kropotquin e da ativista transgênero argentina Lohana Berkin. Não é impunimente que os versos das epigrafes cantem a vida emanando da própria vida e a recuperação do corpo como fonte de liberdade. VIDA, CORPO E LIBERDADE são palavras caras nesse poemário que se começa com um “húmedo temblor”, movimento terreal que “inicia la vida y la muerte”. É impossível que o corpo fique indiferente a esse movimento, assim, ele “palpita” e “inicia sus partos de piel luminosa”.
O eu lírico está desperto e sentindo tudo que está ao seu redor: “Siento mi cuerpo, su olor, el cuerpo de un animal, su piel distinta”, assim como “la madera de los antiguos arboles erguir el fuego, los profundos azules del mar, la noche negra que orienta la sed y los latidos”. O desejo de conhecer o mundo se intensifica, uma “inquietud vital” se apodera do ser e o mundo se torna “una lenta respiración de cuerpos”.
Após o encontro com outro, − essência e corpo −, e a descoberta do prazer, o eu lírico pode reconhecer “el hilo” de suas voz, uma voz dolente, agônica, que se apresenta como um convite ao abandono de si mesmo. É preciso “crear el calor que ilumina, entender que todo regressa”. Amigo leitor, El cuervo blanco, como destaquei inicialmente é diverso do corvo “Nunca mais”, de Alan Poe, no sentido em que ele “pressente “la vida entre los muertos”, tornando-se arauto da esperança e buscador da “ piel encendida que se abre a la eternidad en el parto”: o eu lírico tem necessidade de existir.
 “Soy una mujer, un cuerpo feminino/ [...] Yo soy un cuerpo vivo”, diz o eu lírico que ama, se comove com “la vitalidad irracional del fuego”. A identidade do eu se abre e a mulher se torna, também, mãe que transborda de amor por sua filha, “mariposa de ojos negros y labios tibios como cántaros de leche”.
El curvo blanco é um livro onde as palavras voam livres pelas páginas brancas. Nele,  “El cielo tiembla ansioso de luz sobre la más profunda oscuridad”, cada página emana vida: “Todo me trae de regreso a la vida”. Porém, a vida, esse tecido feito com fios dourados, quando se esgarça, revela o segredo de sua urdidura. É assim que “La vida se deshace”, mas ainda não é o fim, pois,  “Todo se conserva en el cuerpo del viento”
Renata Bomfim 
(Espírito Santo/ Brasil)

02/04/2016

José Luis Peixoto: poesia portuguesa contemporânea

José Luis Peixoto
Tive a alegria de conhecer o poeta português José Luís Peixoto no XII Festival Internacional de Granada, na Nicarágua. A presença de José Luís nesse encontro me deixou muito feliz, pois, foi uma oportunidade para o público nicaraguense escutar a beleza e a musicalidade da nossa língua portuguesa, tanto no seu acento português, quanto no brasileiro. Outra grata satisfação foi me deparar com um ficcionista premiado que, a cada dia vem mostrando a sua sensibilidade na poesia. 

José Luís Peixoto, cuja obra já foi traduzida para mais de vinte idiomas, escreveu em 2011 o romance Nunhum olhar, que lhe rendeu o prêmio literário José Saramago; em 2007 o romance Cemitério de pianos, prêmio Cálamo Otra Mirada, tendo sido finalista do prêmio Portugal Telecom (Brasil) e do International Impac Dublin Literary Award (Irlanda). Em 2008, recebeu o Prêmio de Poesia Daniel Faria com o livro Gaveta de Papéis. Em 2010, o seu romance Livro venceu o prêmio Libro d'Europa, em Itália, e foi finalista do prémio Femina, em França. Em 2012, publicou Dentro do Segredo, Uma Viagem na Coreia do Norte, a sua primeira incursão na literatura de viagens.

Fui presentada com A Criança em ruínas e compartilho com vocês dois poemas dessa obra e outro de 

o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.
(p. 82)

 *
ARTE POÉTICA

o poema não tem mais que o som do seu sentido,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma,
poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva
fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil
árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura
de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes
e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não
se escrevem, Lê-se país e mar e céu esquecido e
memória, lê-se silêncio, sim tantas vezes, poema lê-se silêncio,
lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu
olhar doce de menina, silêncio ao domingo entre as conversas,
silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio
de ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poema
calado, quem o pode negar?,que escreves sempre e sempre, em
segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem.
o poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema é quando eu podia dormir à tarde nas férias
do verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu
fui feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não
conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a
letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha do
quintal, o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel
e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas
e sem metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças
e os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre tudo.
o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chama
poema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de
si é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para
abraçar o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo
o que quero aprender se o que quero aprender é tudo,
é o teu olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento,
não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso são
bibliotecas a arder de versos contados e não é o poema, não é a
raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos
conhecer o que possuímos e não possuímos nada, não é um
torrão de terra a cantar hinos e a estender muralhas entre
os versos e o mundo, o poema não é a palavra poema
porque a palavra poema é um palavra, o poema é a
carne salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobre
os telhados na hora em que todos dormem, é a última
lembrança de um afogado, é um pesadelo, uma angústia, esperança.
o poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos,
tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se
com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e
incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo
para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por
mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares
onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos,
o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me
olhas, o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a
palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido


(P. 9)
 *
Patrícia Pinto, Renata Bomfim e José Luís Peixoto
 Casa dos Três Mundos, Granada/ Nicarágua/ 2016.