12/07/2021

Amor e humor em Vento Sul, de Carmélia Maria de Sousa (por Renata Bomfim)


Carmélia Maria de Sousa (1936- 1974), a “cronista do povo”, como ela própria se intitulou em entrevista concedida para O Diário, em 1971, é uma cronista capixaba cuja obra é marcada pelo seu tempo, pois, a escritora surgiu no cenário literário encarnando a voz da contracultura, em 1958, traduzindo as inquietações de sua geração.

A irreverência de uma escrita marcada pela ironia e, ao mesmo tempo, poética e afetiva, fez com que a Carmélia angariasse um público cativo pelo qual tinha grande carinho: “me sinto honrada quando me chamam de “cronista do povo”, para este povo que eu respeito e amo que continuarei a escrever [...]. Já que não o posso carregar nos meus braços, carrego-o no coração” (SOUSA, 2002, p. 133).

Francisco Aurélio Ribeiro destaca que desde a década de 1940, as escritoras capixabas vinham conquistando espaços em variados âmbitos, especialmente após 1946, quando chegou ao fim o regime ditatorial de Vargas, que perseguiu escritoras feministas como Haydée Nicolussi, ¾que tinha o agravante de ser comunista¾, a escritora foi presa em 1935 e posteriormente vigiada pela polícia getulista, sendo, inclusive, impedida de trabalhar com o próprio nome. Com um pouco mais de liberdade, as escritoras capixabas foram se agregando e, em 1949, foi fundada a Academia Feminina Espírito-Santense de Letras (AFESL), entretanto, o passado esquerdista das escritoras Haydée Nicolissi e Lígia Besouchet fez com que ambas fossem excluídas do núcleo inicial da AFESL. Alguns anos depois, Carmélia Maria de Sousa teria a sua candidatura rejeitada na mesma Academia de Letras. Agostinho Lázaro considerou Carmélia Maria de Sousa uma das melhores cronistas do Espírito Santo e Francisco Aurélio Ribeiro declarou que ela foi a responsável por popularizar a crônica escrita por mulheres no Estado. A obra de Carmélia é permeada pela poesia, fala de amor, solidão, esperança e de outros temas que evocam vivencias que nos irmanam independente do tempo. Outro aspecto relevante nos seus escritos é a ironia, direcionada, especialmente, a alta sociedade capixaba, que ela “espinafrava” sem rodeios, e também às pessoas que ousavam falar mal da “Ilha”.

No ensaio intitulado “Muito além do Milk Shake” (2002, p. 183), Reinaldo Santos Neves perguntou: “Quem foi Carmélia Maria de Souza?” hoje, nós fazemos a mesma pergunta. Observamos que chega até nós, leitores, um retrato de mulher, “com jeito de homem”, com mania de usar sempre calça comprida e de viver sempre acompanhada por homens (2002, p. 184). Afastada de “joias, adereços, maquiagem”, Carmélia tinha como companheira dos últimos anos “a famosa bengala” e, pontual, usava um relógio de pulso para não se atrasar nos compromissos. “Ambição? Nenhuma”, afirma Santos Neves, que logo conclui ser “difícil, talvez impossível definir Carmélia”. Sabemos que o retrato é uma imagem que busca representar alguém, ele não é a pessoa, mas, guarda desta, traços fundamentais, imaginários e, muitas vezes delirantes. Assim compreendemos que tudo o que se falar sobre Carmélia, será um desdobramento dessas imagens, e que esses retratos vão se modificando de acordo com o tempo. Tanto os olhares se modificam com o tempo que, hoje, Carmélia Maria de Sousa é patrona de uma cadeira na AFESL. Compartilho com os senhores(as) a imagem que faço dessa mulher singular ansiando que outros pesquisadores lhe dê os devidos cortes ou retoques. 

         Amylton de Almeida, foi amigo da cronista das redações dos jornais[2] e da “boemia caseira, feita com pureza e humildade”, para ele Carmélia foi a “Miss Stein” da Geração fim de álcool de Vitória e o seu trabalho sempre guardava “o necessário senso de humor para enfrentar as asperezas e a grosseria de uma cidade que às vezes, não entendia [essa geração] a quem nada fora prometido e cuja única opção era utilizar a ironia e o sarcasmo para sobreviver às confusões” (2002, p. 25). Agora, uma descrição de Carmélia, segundo ela mesma: “grossíssima, péssima companhia noturna, diurna ou vespertina; devemos a Deus e ao mundo, mau-caráter, desgraçada, temperamental, neurótica, falsa, inconstante, cínica e debochada. Favor não ficar sentado em nossa mesa quando não for convidado, não. Nós somos o fim da picada, se você quer saber”.

         Possivelmente, esse jeito carmeliano de ser, que a colocava na contramão do ideário feminino da época, tenha lhe impossibilitado ingressar na AFESL, e possivelmente, também, tenha imprimido à sua escrita, uma marca de solidão. Quixotesca, Joana D’Arc inspiradora de um “exército de bem intencionados”, Carmélia escandalizou a TSC (a Tradicional Família Capixaba) com a sua vida boêmia regada a uísque, vinho, conhaque e pinga, devidamente acompanhados pelo cigarro e por palavras e palavrões (2002, p. 184). Mas, na sua simplicidade, a escritora tinha consciência do que realmente era importante, ela afirma que trazia consigo, desde a infância, um ideal na alma, e valores herdados de seu pai que possuía “mãos honestas” e “olhos limpos”, mãos e olhos que a ensinaram a “amar a liberdade e a repartir a Verdade, o Amor e o Pão” (2002, p. 133). Apesar da incompreensão, Carmélia afirmou o seu compromisso de continuar “misturando palavras”. As vezes, segundo ela, tinha a necessidade de silenciar, mas as vezes sentia o desejo de gritar, especialmente quando o “medo” arranjava um jeito de entrar na sua vida. O grito de Carmélia é produto do assombro da escritora pela falta de amor. Na crônica “E me vieram perguntar” a escritora declara que “o maior problema que existe no Estado do Espírito Santo [...] é a falta de amor”, e que tinha encarado como “filosofia de vida”: “botar o amor acima de qualquer outra coisa que exista” (2002, p. 132). Há ainda nos seus escritos, a expressão de uma a saudade, ora indefinida, ora descrita como nostalgia do não vivido, esse sentimento possui raízes nas decepções que marcaram a vida da escritora desde a infância, vivências como a perda da mãe aos dois anos de idade, a doença que a obrigou a deixar o convívio familiar, de forma que Carmélia afirme ser impossível visitar a casa onde nasceu. Há uma crônica sem titulo na qual a escritora fala sobre a experiência da internação em uma clínica em Barbacena, Minas Gerias, quando tinha dezesseis anos: “Me mataram numa tarde [...], num quarto de hospital”:

A febre queimava meu rosto, minhas mãos, minhas esperanças destroçadas. O meu pulmão e a minha alma mutilados. Os pedaços de minha juventude e do meu coração. A minha vida partida pela metade [...]. E eu morria todas as manhãs, sem nunca ter vestido um vestido cor de rosa (SOUSA, 2002, p. 102-103).

A partir desse texto, podemos vislumbrar que esse episódio significou uma ruptura na vida de Carmélia, privando-a de um afeto essencial: “E amei errado, sem medir a quantidade” (SOUSA, 2002, p. 103). Será a partir da segunda parte de Vento Sul que a tópica amorosa se fará mais presente na obra de Carmélia. A desmedida, hybris, se reproduziu em outras instâncias da vida da escritora, inclusive com relação à bebida que lhe legou uma cirrose fatal. Carmélia é conhecida como “a rainha da fossa”, ou seja, alguém que conhece de perto o sofrimento: “Não me envergonho de confessar que a vida me tem maltratado, e que vou aprendendo a sofrer quando é preciso” (SOUSA, 2002, p. 34). Mas as fossas “financeira”, “íntima”,  “jornalística”, entre outras, não abalaram o seu amor pela vida e, especialmente, o seu humor, como observamos na crônica “É tempo de otimismo, acho eu”: “Descobri que sou bárbara, dona de um estilo verdadeiramente universal, preciso urgentemente me mandar para Guanabara, pois Vitória já não está a altura de receber a minha genialidade, nem por aqui existiriam horizontes dignos e devidamente alargados onde eu pudesse caber. A mim me cabe, portanto, dar uma banana para vocês e me mandar de mala e cuia para o Rio de Janeiro” (SOUSA, 2002, p. 55).

Assim como observamos, Carmélia brinca com o seu leitor, mas, por traz dessa singela brincadeira, códigos que apenas os capixabas entenderão. No decorrer da leitura da obra de Carmélia, observamos que a escritora empreende uma busca pelo sentido na vida “entre pedaços de noite e de saudade, fumando cigarros e ouvindo Bach em surdina”, nessa “vigília”, ela afirma esconder-se dos outros e fugir de si: “crucificada sobre todas as saudades” (2002, p. 66).  Observamos, também, o tom confessional com que a escritora afirma a sua incapacidade de escrever Vento Sul: “Não adianta insistir para eu escrever o meu livro, porque jamais conseguirei escrever livro algum” (SOUSA, 2002, p. 64). É com um sinal de menos, Carmélia vai se construindo ficcionalmente frente ao leitor, acabando por se tornar uma espécie de anti-heroína:

Há muito desisti de tudo, há muito que não sou capaz de acreditar em coisa nenhuma. Tenho até pensado em apelar, ir procurar uma cartomante bem doida, que faça o milagre de me devolver a fé nos outros e em mim (SOUSA, 2002, p. 65).

Em meio a uma “crise existencial-política-espinafrativa-avulsa” que a deixou “atacadíssima”, Carmélia colocará para tocar na “eletrola” a música “Guantanamera” e, nesse momento, compreenderá que o que realmente deseja é conversar com alguém pelo telefone, assim poderia “pedir socorro”, falaria então “o diabo, xingaria os homens, amaldiçoaria o Flamengo e a humanidade”, mas, ao final da crônica reconhece ser impossível o intento, pois: “não tenho telefone” (2002, p. 106). “Sob a longa noite” da sua vida, acompanhada da saudade do primeiro amor e dos amigos a quem confiou “a sua dor de cotovelo” e a “fossa de amor”, Carmélia caminha convicta de que é impossível esquecer “o tempo e o riso”. Retomamos a questão da hybris amorosa carmeliana, que parte do ímpeto do eu lírico de amar sem medidas e sem restrições. A parte segunda de Vento Sul apresenta uma série de poemas em prosa que mostram a potencia desse sentimento que, para a escritora dá significado à vida:

Amo você. Seu sorriso. Seu pranto. Sua ternura. Amo você. Seu passado. Seu presente. Seu sucesso. Seu fracasso. Amo você. Suas tardes. Suas noites. Suas manhãs de sol. Seus domingos sem sino batendo. Amo seus filhos, que não foram nascidos de mim. Amo o bar que você não frequenta. Amo o nome que você não aprendeu a chamar. Amo suas crises de solidão, suas lembranças, suas fugas. [...] Amo suas mãos, seu nariz, sua cor, seus cabelos. Amo tudo que você deixou de dizer e que por isso mesmo escutei. Amo o mundo que é feito de você. (SOUSA, 2002, p. 103).

O derramamento amoroso observado nesse poema poderá ser visto em outros textos, assim como o se “despedaçar de amor”, que fará com que emerja o Outro na escrita: Carmélia convidará “Félia” para que “seja testemunha desse amor” (SOUSA, 2002, p. 86). Após um percurso de sofrimento e de dor, com relatos permeados pela ironia e pelo humor, nos deparamos com uma Carmélia bastante vulnerável, mas será a partir dessa falta fundamental e da abertura para o Outro que residirá a potência da sua escrita, pois, segundo a escritora, ela  é “o amor que não teve” (SOUSA, 2002, p. 102).

      Carmélia ama seus amigos, considera-os irmãos por escolha. Além dos amigos Carmélia elegerá outro objeto de amor: a cidade de Vitória. Delícia para Carmélia são os lugares onde nascem, vivem e morrem os amores que as pessoas possuem, assim, podemos compreender melhor o porquê da frase: “Essa Ilha é uma delícia”. O escritor e dramaturgo Milson Henriques, destacou em uma reportagem que uma boa dose de ironia fez nascer a famosa declaração, mas, que Vitória, para Carmélia, é um lugar único, destacado de todos os outros do mundo, inclusive Paris, centro de tudo o que é chique no mundo. A cidade de Vitória é elevada ao patamar de personagem nos escritos carmelianos. Na crônica intitulada “O deletério do povo Capixaba”, Carmélia “espinafra” as pessoas que falam mal da cidade por não compreenderem as suas peculiaridades. Essa Ilha (“ô Ilha”) será defendida por Carmélia em variados textos:

 O diabo é que vocês não aprendem a enxergar a coisa como ela é. E estão sempre prontos a me chamar de doida todas as vezes em que eu escrevo que a rua Duque de Caxias é linda, bárbara, importantíssima, [...] é uma rua com alma é coração, capaz de comover a gente por causa de seu lirismo, de sua beleza antiga, de sua poesia. Vocês não alcançam a importância de uma cidadezinha como Santa Tereza [...] o turista é capaz de sair daqui completamente gamado, [...] é capaz até de sentir inveja da gente. Enquanto vocês seus bobocas, não sabem valorizar as coisas que têm. Só querem mesmo é bagunçar o coreto, ficam aí reclamando e se esquecem de que nosso Estado, especialmente Vitória- possui coisas lindíssimas. Se esquecem de que a Ilha, também é uma cidade maravilhosa, à sua maneira.

(SOUZA, 2002, p. 76- 79).

Assim, Carmélia torna-se porta-voz da Ilha de Vitória: “A Ilha está pedindo para que vocês a deixem crescer”, “a Ilha quer saber se lá fora o seu nome é pronunciado com admiração e respeito” (SOUSA, 2002, p. 78). Como observamos, Carmélia ama sem limites, e essa desmesura, num crescente, a levará a fazer de si cidade, ou de fundir-se a ela: “Eu sou a Rua Duque de Caxias” (SOUSA, 2002, p. 78). O ímpeto que levou Carmélia a chamar “Fèlia” para o diálogo dará forma a Dindí, símbolo romântico a quem a escritora recorrerá nos momentos de angústia e solidão. Carmélia se inspirou na personagem homônima da música criada por Tom Jobim e interpretada por Silvinha Teles. A Dindí carmeliana é depositária de grande confiança por parte da escritora, ela é a herdeira dos livros de Carmélia, a incumbida de cuidar do espólio e, especialmente, de fazer vir a lume o livro Vento Sul. No diálogo poético, com tom de despedida, intitulado “testamento”, Carmélia diz: “Deixo as minhas crônicas (publicadas ou inéditas) para você. Deixo também para você os personagens de um livro que jamais terminarei de escrever. Termine-o por mim, Dindi! Escreva o Vento Sul” (SOUZA, 2002, p. 173, grifo nosso). Os diálogos entre Carmélia e Dindí são de grande lirismo e intimidade, observemos no fragmento da “Crônica com endereço certo”:

Além do mais Dindi [...] Eu nunca soube falar as coisas que deveria falar, você me conhece bem, você sabe como sou imbecil, tímida, completamente desajeitada [...]. Sou, enfim, sou uma pessoa distraída e tresloucada, um caso perdido, uma pobre diaba. Viver, para a pessoa que sou hoje em dia, é esta aflição imutável, é este desespero de perder tudo, de repente descobrir que tudo voltou aos devidos lugares. Este viver de abrir os braços e dar a impressão muito falsa de que estou sempre preparada para o que der e vier. No fundo, você sabe, sou medrosa e covarde como o diabo. E, embora não pareça, tenho a alma atormentada e não me conformo com nada (SOUZA, 2002, p. 134)

Na crônica “testamento” (SOUZA, 2002, p. 173) Carmelia se despede, ela externa o desejo de que seus sapatos calcem “os pés descalços dos pobres”, e aos amigos declara: “parti feliz”, afinal, a esperam os braços de seu pai e a ternura de sua mãe, e aos que a condenaram fica a declaração de que foi “uma pessoa simples e bem intencionada”. A escritora finaliza a crônica declarando aos seus amigos: “O seu amor justificou o meu amor e a ternura dos meus gestos [...]. É assim que os espero nas esquinas dos astros, em alguma nuvenzinha azul” (SOUSA, 2002, p. 174). A imersão na escrita de Carmélia Maria de Souza permite que vislumbremos um pouco espírito criativo dessa escritora irreverente, ousada, corajosa e que soube, como poucos, se comunicar com o público capixaba. Vento Sul é uma obra hibrida que abriga crônicas e poemas em prosa, além de acolher um rico repertório de temas ainda pouco estudados dentro da obra de Carmélia. Essa obra foi publicada postumamente em 1974, após dois anos da morte da escritora. A primeira edição veio a lume pela Fundação Cultural do Espírito Santo, com notas e introdução escritas pelo jornalista Amylton de Almeida. O livro teve ainda duas reedições, uma em 1994[3] e outra em 2002[4].

REFERÊNCIAS:

SOUSA, Carmélia Maria de. Vento Sul. Conselho editorial da Gráfica Espírito Santo: Vitória, 2002.

RIBEIRO, Francisco Aurélio. Aspectos do feminino na crônica das escritoras capixabas : Haydée Nicolussi (1905-1970), Guilly Furtado Bandeira (1890-?), Zeny Santos (1930-1986), Carmélia Maria de Souza (l936-1974) e Marzia Figueira (l938-2000).



[1] Nasceu na Ilha de Vitória/ ES (21/11/1972). Escritora mestre e doutora em letras pela UFES, ocupa a cadeira nº 16 na Academia Feminina Espírito-Santense de Letras e é membro do Instituto Histórico e Geográfico do ES. Ativista socioambiental defende as árvores, os animais e dá aulas de literatura no curso de Letras da UFES. Autora da revista literária Letra e fel (www.letraefel.com)

[2] Carmélia Maria de Souza foi Funcionária Pública Federal, trabalhou no Museu de Arte Histórica de Vitória, situado no Solar Monjardim, na Biblioteca da FAVI, e durante dezessete anos de vida jornalística, colaborou com jornais e revistas estudantis, trabalhando nos principais jornais da capital: Sete Dias, O Diário, Vida Capixaba, A Tribuna, A Gazeta, O Debate e Jornal da Cidade (acesso em 23 de fev. 2008). Parte do acervo que continha seus escritos foi destruído em um incêndio na década de oitenta, eram crônicas publicadas em A Tribuna e O Diário

[3] Em 1994, fruto da parceria entre a Rede Gazeta de Comunicações e a Universidade Federal do Espírito, a obra chegou ao público leitor como encarte de jornal e, em 2002, após ter sofrido algumas supressões no texto, foi publicada completa, permanecendo na íntegra a introdução feita por Amylton, além de toda a matéria em homenagem à Carmélia publicada na revista Você, n. 24, de junho de 1994.

[4] Texto retirado do folder da exposição intitulada “Carmélia, Félia, Magnólia”, de fotos escritos de Carmélia Maria de Souza. Divisão de Memória do DEC. 

Luz del Fuego: a Lilith capixaba (por Renata Bomfim)

 Olá amigos leitores(as), compartilho este texto que escrevi para o Caderno Pensar, do Jornal A Gazeta. Eu sou fã de Luz del Fuego, uma capixaba que nasceu anos luz a frente de seu tempo. Espero que curtam! Renata.

Existe no feminino um aspecto que está para além da beleza física, uma energia misteriosa que alguns seres humanos carregam como dom ou como kharma, uma força arrebatadora que provém das profundezas insondáveis da psique, dotando-os de grande poder de sedução. De acordo com a psicologia analítica junguiana esta energia denomina-se arquétipo. Na tradição oral rabínica, em textos sumérios, hebraicos, acadianos, e em mitologias de variados países encontramos tal arquétipo, uma imagem feminina que tanto seduz quanto assombra, ela é conhecida como Lilith. Geralmente descrita como um demônio noturno, essa imagem feminina se opõe a da esposa e a da mãe, representadas por Eva e pela Virgem Maria. 

Imagem de mulher rejeitada pela cultura patriarcal e pela religião tradicional por ter um grande componente revolucionário e de transgressão, Lilith antecedeu Eva no paraíso, ela foi a primeira esposa de Adão. A recusa em se submeter a um lugar de inferioridade na relação com o homem que deveria ser seu companheiro na jornada da vida, e a pretensão de encontrar alguma realização sexual, rendeu a Lilith o banimento do paraíso. Eterna inconformada, ela voltaria a reaparecer no Gênese bíblico como a serpente que convenceu Eva a comer o fruto da árvore do conhecimento (do bem e do mal). O lugar de Lilith na tradição é o de fora, o do maldito, do proibido, do tabu. Nenhuma mulher no Brasil constelou com tanta potência este arquétipo transgressor como a capixaba Dora Vieira Vivacqua, conhecida nacional e internacionalmente como Luz del Fuego.

Dora Vieira Vivacqua nasceu no dia 21 de fevereiro de 1917 no município de Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo. Foi uma capixaba que experimentou a vivência arquetípica do banimento, pois, foi praticamente expulsa da sua terra natal por não se submeter às normas sociais vigentes. Da “Capital secreta do mundo” (Cachoeiro de Itapemirim) para a “Cidade maravilhosa” (Rio de Janeiro), Dora passou então a escandalizar, com o seu comportamento liberal, a sociedade brasileira. 

Na contramão do ideário feminino de sua época, décadas de 1940 e 1950, Dora recusou o pedido de casamento de um jovem carioca de família tradicional, desde menina ela sonhava ser artista. Sua carreira artística teve inicio no picadeiro do Circo Pavilhão Azul, onde dançava seminua com o codinome “Divina luz”, era anunciada como: "a única, a exótica, a mais sexy e corajosa bailarina das Américas”. Começa ai, também, a relação de amor de Dora com as serpentes, que lhe acompanhariam por toda a vida, especialmente as serpentes de estimação Cornélio e Castorina. A exposição do corpo nu e envolto em serpentes desenhando arabescos evocou no inconsciente de homens e mulheres a energia da poderosa Lilith, conferindo a Dora uma sensualidade radical.
Dora tomou o nome Luz del Fuego emprestado de um baton que fazia sucesso na boca das mulheres argentinas. Adotá-lo como nome artístico foi sugestão de seu amigo, o Palhaço Cascudo. Luz del Fuego caiu na boca do povo e Dora passou a conhecer o sabor do reconhecimento que tanto almejava. Esta era uma época de grande preconceito e intolerância, as vedetes, as cantoras, as atrizes e as dançarinas eram vistas como prostitutas, e muitas delas chegaram a ser fichadas na polícia. O Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo (DIP) proibiu as manifestações de Luz del Fuego sob a alegação de serem uma “perversão da moral vigente”. Os irmãos de Dora, um deles Senador da República, passaram a boicotar todas as ações que a dançarina desenvolvia, como por exemplo, comprar e queimar quase todos os exemplares do livro “Trágico blackout”, que a dançarina havia publicado.

Luz del Fuego foi precursora do Movimento Naturista brasileiro, na época chamado naturalismo. As idéias que trouxe do tempo em que passou na Europa eram muito avançadas para a sua época, Luz del Fuego defendia a nudez como uma expressão de liberdade numa época em que as mulheres brasileiras ainda não usavam duas peças na praia. A primeira manifestação pública do movimento encabeçado por Luz, além de escandalizar a sociedade carioca, resultou em prisão para todos os participantes, a nudez pública era algo insuportável. A Lilith capixaba possuía admiradores nos altos escalões do poder, esta influência lhe rendeu a concessão de uma ilha, a “Tapuaba de dentro”, localizada na Baía de Guanabara (RJ), e foi nela que Luz del Fuego criou a primeira colônia de naturismo da América Latina.

Batizada como “Ilha do Sol”, este espaço logo se tornou um refúgio para os praticantes do naturismo. As regras eram rígidas na Ilha: era proibido falar palavrões, consumir bebidas alcoólicas e praticar sexo. É certo que nem sempre Luz tinha controle sobre o que acontecia em todo o seu território, certa vez ela declarou: “aqui não é rendez-voux, nem motel, se querem farra e sexo, fiquem em seus apartamentos em Copacabana”. Luz del Fuego não fumava e nem ingeria bebidas alcoólicas, ela era vegetariana e admirava música clássica e literatura. A sua singularidade levou-a a se projetar internacionalmente, Luz foi capa da Life americana e recebeu na sua Ilha celebridades como Ava Gardner, Brigitte Bardot, Lana Turner, Steve McQueen, entre outras estrelas do cinema. A dançarina possuía princípios firmes e ideais libertários, ela defendia que todos os seres eram dignos de respeito e liberdade, para Luz "um nudista é uma pessoa que acredita que a indumentária não é necessária à moralidade do corpo humano, e não concebe que o corpo humano tenha partes indecentes que se precisem esconder". Vivendo em função da difusão da nova doutrina, Luz decidiu institucionalizar o movimento fundando o Partido Naturalista Brasileiro (PNB), para arrecadar o dinheiro necessário para tal empreitada, Luz passou a dançar seminua nas escadarias do teatro Municipal. Candidata à deputada federal, não conseguiu se eleger e nem conseguiu registrar o PNB.
Foram muitos os legados de Luz del Fuego, ela foi a precursora de um movimento germe de um estilo de vida que busca reaproximar homem e natureza, o Naturismo, movimento que abarcaria o vegetarianismo e a defesa ambiental. Luz del Fuego publicou outro livro, "A Verdade Nua", nele a dançarina engajada lançou as bases de sua filosofia. Em função de sua importância para o Movimento, no dia do seu nascimento se comemora o “Dia do Naturismo”.

A energia transgressiva de Lilith ressurge de tempos em tempos quando a mulher evoca para si direitos e liberdade, quando aceita o seu corpo e reconhece a sua beleza, bem como, quando descobre o significado recôndito de sua criatividade. Luz del Fuego, se não quebrou, afrouxou muitos dos grilhões sociais das suas contemporâneas. Ela inspirou, entre outras importantes personalidades femininas, Leila Diniz, Martha Anderson, Ítala Andi e Darlene Glória, também capixaba e ícone do cinema nacional.

Dora Vivacqua foi brutal e covardemente assassinada em 1967. A mulher de sonhos luminosos que lutou contra tudo e contra todos pelo direito de ser ela mesma, certa vez declarou que seria lembrada na sua terra natal “apenas cinqüenta anos depois da sua morte”. Maciel de Aguiar no livro Nós, os capixabas (2009), afirmou que talvez cinqüenta anos não sejam suficientes para se “expurgar os resquícios do rancor, da ingratidão e do preconceito contra uma das mulheres mais corajosas e destemidas do seu tempo”. Acredito que é tempo de nós, capixabas, resgatarmos da sombra a memória de Dora Vivacqua, a nossa Lilith, linda e poderosa, e de nos orgulharmos dela, certamente ao fazê-lo estaremos resgatando partes de nós mesmos.


Lucélia Santos protagonizou  um filme sobre a dançarina.

03/06/2021

A escritora capixaba Renata Bomfim lançará na segunda quinzena de junho o livro de poemas O Coração da Medusa.



O Coração da Medusa é o mais recente livro da poeta brasileira Renata Bomfim, traduzido para o castelhano pelo poeta espanhol Pedro Sevylla de Juana.

Descrito como “um livro mágico” pelo poeta e crítico literário nicaraguense Francisco de Asís Fernández Arellano e como "um caminho de transformação para o leitor" pelo poeta português José Luis PeixotoO Coração da Medusa alberga mitos transgressores que buscam romper com o silêncio secular que ronda variados temas femininos.

A obra está organizada em três capítulos: "Canto iniciático, Queda e Ascenção" que constroem uma jornada de encantamento e estranheza para o leitor. Ele traz, ainda, a sessão "Outros poemas" onde a linguagem poética flerta com a prosa em exercícios de experimentação. Segundo o tradutor Pedro Sevylla de Juana, esse "es un libro profundamente brasileño” e que “abre caminos y los asienta a fuerza de transitar por ambos sentidos de direcciones diversas”.

O livro O Coração da Medusa foi contemplado pelo Edital da SECULT e conta com recursos do FUNCULTURA e apoio da Secretaria Estadual de Cultura do Governo do Espírito Santo. Essa obra é uma realização da Reserva Natural Reluz, uma RPPN criada e mantida pela autora em 2007 nas montanhas capixabas e toda a verba da venda da obra será revertida para os projetos de preservação e educação ambiental da Reserva. 

Sobre a autora: Renata Bomfim nasceu no ES, Brasil. É arteterapeuta, poeta e ambientalista. Doutora em Letras pela UFES, pesquisa a poesia iberoamericana com ênfase nas obras de Florbela Espanca (Portugal) e Rubén Darío (Nicarágua). Ex-presidente da Academia Feminina Espírito-Santense de Letras. Autora das obras Mina (2010), Arcano dezenove (2011) e Colóquio das árvores (2015). Fundadora da Revista Literária Letra e Fel e criadora da Reserva Natural Reluz.

Sobre o tradutor: Pedro Sevylla de Juana é académico correspondiente de la Academia Espírito-santense de Letras, y Premio Internacional Vargas Llosa de novela/romance. Publicitario, conferenciante, traductor, articulista, poeta, ensayista, crítico y narrador; ha publicado veintiocho libros, y colabora con diversas revistas de Europa y América, tanto en lengua española como portuguesa.


(Olhares críticos)

OS POEMAS DE O CORAÇÃO DA MEDUSA FORMAM UM CAMINHO QUE NOS TRANSFORMA.

Os poemas de O Coração da Medusa formam um caminho que nos transforma. Os versos, um a um, são experiências, requerem os sentidos para serem verdadeiramente entendidos. Como orações ou mantras, estes poemas contagiam-nos com o seu ritmo e expandem-nos. Tornamo-nos do tamanho deles, ganhamos a sua forma ou, talvez, sejam estes palavras que se tornam do nosso tamanho, que ganham a nossa forma. É difícil dizer, misturamo-nos com eles.

Este livro de Renata Bomfim é como um parque onde está sempre sol e onde podemos sempre regressar. Lá, na serenidade e na luz das suas palavras, no mundo que os seus símbolos sugerem, havemos de encontrar-nos a nós próprios.

José Luís Peixoto, Galveias, Portugal.


EL CORAZÓN DE MEDUSA DE RENATA BONFIMPor Francisco de Asís Fernández Arellano 

Renata Bomfim en su escritura  entrega al lector una voz poética entrañable y lúcida, tersa en la dulzura de su poetizar y profunda en la complejidad de su pensamiento. Una mujer conocedora de la vida concreta pero dueña de una poderosa imaginación poética que rompe-ataduras, convenciones, creencias y que le permite alcanzar un  raudo vuelo de sabiá laranjeira, para construir un nido en El corazón de Medusa.

El corazón de Medusa de Renata Bonfim es un libro mágico que funda una mitología poética particular, desafiante y bella. Es un reto para cualquier poeta contemporáneo, recrear el mito de la Medusa, enfrentar su peligrosa mirada e ir hasta su corazón ctónico para con una visión prístina, construir todo un complejo ritual con sus tres niveles litúrgicos: Canto iniciático, Caída y Ascensión.

Medusa fue una bella mujer que Zeus la percibió como personificación de la lujuria, razón patriarcal para que él cometiera su abusiva violación en el templo de Atenea, quien ante esta profanación la convirtió en  un monstruo que participa del ser una bella mujer de petrificadora mirada con cabellera de serpientes pero que protege a la femineidad.

El ritual de la recreación del mito de la Medusa, le permite a la hablante lírica,  con la protección de este mismo abominable ser, ir a ella sin escudo reflejante como Perseo y ver ahí donde se encuentran para nuestro horror la naturaleza y la cultura.

 Renata Bomfim, como poeta contemporánea, consciente de los retos que enfrenta el ser mujer en nuestros días, teje una mitología poética particular con un lenguaje de altos quilates. Un idiolecto poético dueño de profundidad filosófica, con insondable libertad creadora, con una dimensión epistémica remarcable, que a los lectores nos va a dejar una huella de fuerza ciclónica y al mismo tiempo, la ternura de una caricia en la piel.

La magia poderosa de la medusa coloca a la poesía de Renata Bomfim en este libro, sin las ataduras del tiempo-espacio. En El corazón de Medusa, Bomfim visita y recrea los mitos griegos, los hebreos, la anti- mitopoiesis contemporánea (se confiesa novia de Nicanor Parra), la mitagogia de la ideología patriarcal y uno que otro camino galáctico en el universo.

Sin riesgo alguno confieso que El corazón de Medusa, es un libro que anidará en nuestro corazón, por su bella propuesta estética y advierto la seguridad de la satisfacción poética en sus lectores.

Gracias querida Renata Bomfim.

Francisco de Asís Fernández Arellano

Desde tu Granada, Noviembre 2020.

16/04/2021

Não pronunciarei o nome dos odiosos (Renata Bomfim)

                          aos movimentos de resistência


Não pronunciarei o nome dos odiosos,
Nem hastearei tolas bandeiras.
As correntes do medo não prenderão
Mãos inquietas, não porão fim 
a caminhada de uma vida. 

Recorro à poesia como um cão 
Buscando abrigo, carinho, calor. 
Vasculho aqui e ali tentando 
Nutrir esperanças pelo vislumbre 
Do simples bater de asas 
De uma borboleta.

Recorro à poesia porque o meu coração
Está cheio de amor.
Porque quero ofertar amor.
Não sei como e nem o porquê, mas,
Amo sem limites nesse instante.


Vix, RB

12/04/2021

IRMÃ CLEUSA CAROLINA RODY COELHO, EDUCADORA E MÁRTIR (Prof.ª Renata Bomfim)


A história de vida,¾ e de morte¾, da irmã Cleusa Carolina Rody Coelho (1933-1985) trouxe-me à memória a proposição de Walter Benjamim de que “cada época ao sonhar a seguinte, força-a a despertar”. Benjamim não sobreviveu ao tempo sombrio do nazismo, assim como irmã Cleusa Carolina, professora capixaba que optou pela vida religiosa, sucumbiu lutando pelos valores nos quais acreditava. O pensamento de Benjamim é um alerta sobre o perigo do esquecimento e a importância de se trazer à luz a memória dos oprimidos, pois, apenas assim poderá ser criada uma barreira contra a barbárie.

Vivemos um período de grande obscurantismo no Brasil, no qual a educação sofre graves ataques e, barbáries como a ditadura e o genocídio indígena, são minimizadas e, até mesmo, negadas. A história de irmã Cleusa Carolina explicita questões como a violência contra mulheres, pacifistas, ambientalistas e o genocídio dos povos originários, que remonta a colonização. Ao rememorarmos esse passado que se presentrifica de forma perversa, auscultamos a contrapelo da história, ecos da resistência e da luta dessas minorias, de humanistas e dos índios brasileiros, quiçá forçando um despertar coletivo para questões tão prementes.

Irmão Cleusa Carolina pediu dispensa do trabalho que realizava e, sem remuneração, mas determinada, foi viver entre os índios Apurinã, na Amazônia. Na sua última transferência para a cidade de Lábrea, em 1982, a freira capixaba uniu forças com aqueles que ela considerava serem os mais vulneráveis da sociedade, “os mais pobres e marginalizados”, apoiando as comunidades na luta pela demarcação, em um momento no qual os latifundiários invadiam e ocupavam as terras indígenas, muitas vezes com a conivência de autoridades locais. Representante do Conselho Missionário Indigenista, irmã Cleusa Carolina era professora de formação e a sua trajetória como missionária sempre esteve ligada à educação.

A história de vida dessa freira que dedicou 32 anos ao serviço missionário começa em Cachoeiro de Itapemirim, ES, no dia 12 de novembro de 1933. Aluna brilhante, ao final do curso de magistério, recebeu do Governo do Estado do Espírito Santo o prêmio de escolher em qual escola lecionaria, foi nesse momento que optou pela vida religiosa. Em 1952, na Comunidade de Ilha das Flores, no Rio de Janeiro, Cleusa Carolina adotou o hábito e tornou-se Sór Maria Ângelis.

Em 1954 quando foi enviada pela primeira vez para as Missões de Lábrea, iniciou a criação do Educandário Santa Rita, destinado às crianças carentes da cidade, onde trabalhou como professora primária. No ano de 1958, de volta ao ES, em Colatina, emitiu votos perpétuos de pobreza, obediência e castidade.  Mais tarde, irmã Cleusa Carolina decidiria não vestir mais o hábito religioso, usando apenas roupas simples recebidas como doação, ato motivado pelo desejo de diminuir diferenças e distâncias entre ela e as pessoas que atendia no trabalho fraternal.

Irmã Cleusa Carolina abraçou a sua vocação como educadora e o período que passou em Vitória, que se estendeu até 1973, dirigiu o Colégio Agostiniano e obteve Licenciatura Plena em Letras Anglo-germânicas, na UFES, dedicando-se, também, à formação de lideranças para criar Comunidades Eclesiais de Base. Foi nessa época irmã Cleusa Carolina voltou a adotar o nome de batismo. O trabalho missionário estendeu-se dos centros educacionais para presídios, lares de pessoas doentes e leprosário. No período que esteve em Manaus, a freira ia para as praças ao encontro dos meninos de ruas, levando para a sua casa alguns deles que corriam perigo de vida, passando assim a ser mal vista pela polícia, acusada de ser conivente com a desordem e protetora de infratores e marginais. O compromisso para com a justiça pode ser observada no trecho de uma carta enviada à outra freira, irmã Lourdes, em maio de 1978 que diz: “Temos que construir fraternidade, é necessário, mas a justiça tem que estar na base de toda a convivência humana”. Foi assim, colocando a justiça como um pilar da fraternidade que irmã Cleusa Carolina cumpriu a sua missão como integrante da irmandade das Missionárias Agostinianas Recoletas



. Irmã Cleusa manifestou, em carta, o desejo de desenvolver um trabalho de alfabetização para adultos com os povos ribeirinhos, a “pastoral das curvas”, dos Purus, preocupando-se, também, com “os irmãos espalhados pelas estradas”.

A participação ativa na causa indigenista fez com que a freira se tornasse querida entre os índios, mas por outro lado, incomodou aqueles que os perseguia. Irmã Cleusa Carolina foi assassinada no dia 26 de abril de 1985, o seu corpo foi encontrado dois dias depois, nu e escalpelado, com mais de cinquenta chumbos de arma de caça na cabeça e no tórax, várias costelas quebradas, braço direito decepado e a sua mão direita nunca foi encontrada. Os ossos do braço direito da irmã Cleusa Carolina estão depositados na Catedral Metropolitana de Vitória e, tramita hoje, no Vaticano, um processo para a sua beatificação.

O martírio da religiosa capixaba faz parte da história de violência que abrange os conflitos que envolvem terras indígenas e extrativismo e que ainda vitima muitos indígenas. Irmã Cleusa Carolina foi um exemplo de amor ao próximo e à educação, e foi honrando esse legado e buscando que a sua memória não caiam no esquecimento, que a Academia Feminina Espírito-santense de Letras (AFESL) tornou-a Patrona da cadeira de número 24, ocupada hoje pela escritora Beatriz Monjardim F. Santos Rabello.

Renata Bomfim

Poeta, ambientalista e presidente da AFESL

TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NO JORNAL DE LETRAS, RJ

NOVEMBRO DE 2020

LA ALQUIMIA DEL SER EN LUNA MOJADA, DE FRANCISCO DE ASÍS FERNÁNDEZ (prof.ª Dr.ª Renata Bomfim)

 

La obra poética Luna Mojada (2015), edición bolingüe del escritor nicaragüense Francisco de Asís Fernández, desafía el lector para que se aventure. El libro, con treinta y ocho poemas, le da forma a una especie de Cosmogonía poética donde los valores femeninos, masculinos e instintos básicos se mezclan creando nuevos mundos. Inicio mi mirada a esa obra por la pintura en acrílico sobre tela del artista plástico colombiano Mario Londoño (1954), escogida como portada. En esa obra pictórica observamos una mujer acostada sobre un caballo. El cuero desnudo de la hembra se une al del imponente animal, de modo que no podemos diferenciar los hilos de su pelo de la cola del equino. No hay movimiento entre los elementos de la obra, apenas el silencio ruidoso del eco de las voces que necesitan ser escuchadas. La luna, suspendida, asiste al espectáculo de unión entre seres distintos y afines. Considérese al aviso al lector, entraremos en un mundo de sueños inédito, en él que nada es lo que parece ser, pero que, al mismo tiempo lo es a priori. Mundo arquetipo, nocturno, erótico, dual, preñado de ansiedades, abismos y alboradas. La luna, guardadora de los misterios femeninos de la creación, símbolo de la Gran Madre primordial, está húmeda, lista para el gozo y la procreación. Esa obra nos arremete a un lugar intersticial en el que coexisten el bien y el mal. En el poema de Rubén Darío “Coloquio de los Centauros”, el centauro Ástilo revela la profundidad del misterio poético. Él dice: “El enigma es el soplo que hace cantar la lira”. Así, como informó Ástilo, la enunciación del yo poético en Luna Mojada indica que ese no es un libro de revelaciones, antes, de misterios. Indica que hay un camino que sólo el lector puede recorrer en la intimidad de la lectura, senda iniciática que le permitirá vislumbrar nuevos sentidos y realidades, pues, sondear el verso es ser sondeado por él, es romper con todo, no tener la verdad como horizonte y tampoco el futuro como morada. Es así como el crítico Maurice Blanchot define el poema: “la realización total de la irrealidad (1)”. Deparémonos con el yo lírico expresando la llegada de un tiempo de alegría y gozo posible, apenas, a través del amor. El poema “¿Cómo era las auroras al principio del mundo?” despierta recuerdos de un pasado común y lleno de novedades: “cuando descubrimos el fuego/ y pintamos las cuevas de Altamira”. “Retrato del poeta”, poema que le sigue, indica el surgimiento del principio de la desarmonía, explicitando la existencia de una fisura: “una gotera infame en el techo de mi cabeza”. Pensamientos inundados, ya no hay como resguardar las “memorias, imágenes,/ manías, amores y rencores antiguos,/ que sostenían muchas paredes de papel y de sombras”. Hay también el despertar de una nueva fuerza destructiva y abisal en el cierne de la obra: “En mi cuerpo parece haberse liberado un animal”. Destaco aquí la soledad esencial que emana de la obra literaria. Como afirmó Blanchot (2010), el libro no es la obra, antes, un objeto hecho de palabras estériles. La obra comprende un evento en el cual las palabras se materializan en la intimidad de quien escribe y de quien lee. Así, la palabra tiene su inicio en la inquietud del yo poético. Los sueños fueron derrotados y el escenario es alucinante: “exquisita gota de locura”, los ojos de la mujer hacen recordar la aurora inaugural, “ojos más intensos que las noches del Lower East Side/ y las cataratas del Niágara”. En la duda entre el sueño y la realidad existe apenas una certeza: los ojos de esa mujer “Con tantos sueños derrotados”.

Es en el sueño que el yo poético puede recobrar la antigua unidad. Transportado por el “Ángel de la noche” a lugares espectaculares, vislumbra un “nuevo mundo” donde los seres de las aguas y del aire se juntaban. Ese lugar sin lágrimas y sin dolores no admite el corazón humano, sin embargo, en el poema subsiguiente, titulado “Hay un lugar en el mundo”, vemos la emergencia del nuevo equilibrio entre humanos y no humanos: la intimidad entre el yo poético y los animales revela “la más íntima amistad”, un vínculo de confianza. El yo, solitario, conversa con los pájaros, así se siente que apura sus sentidos y se hacen “más peligrosos que un tigre de Bengala”, por lo tanto, listos para “arrancar la virtud de la vida”.

Hay hambre y sed, necesidades primarias humanas que lanzan el yo en la senda del autoconocimiento, búsqueda que lleva a la epifanía. El yo poético se depara con la belleza de la vida marina y se agita con “el temblor de las estrellas”. Es en el sueño que el deseo de la unidad con el todo se realiza. El poema “Luna Mojada” ratifica el campo onírico como lugar de viabilidad de lo imposible, vivencia arquetípica, primordial, cuna que acoge y trasmuta el muerto, así como la semilla que dormita, preservándole el alma que, en determinado momento, “aflora y parte”. Cumplida esa etapa, el neófito está listo para seguir adelante. Las palabras se extinguieron, la muerte y la vida se extinguieron, resta el despertar y el descubrimiento, “este milagro”

El ermitaño solitario encuentra el equilibrio dinámico de la vida: “alimentaba su alma con el Don del silencio”, entretanto, por más que el yo se realice en el paraíso de la palabra, existe la tentación del encuentro con el otro: con ella, la mujer que preexiste, resiste, y se hace en inéditos. La hijas de Lót con su belleza y seducción, y la mujer que “era un cadáver antes de morir” revelan rostros del feminismo cuya potencia es capaz de corromper al hombre, hacer pedazos las reglas, desagradar a Dios y dar a luz a nuevos hombres, hijos de un pafre/abuelo sin máscaras. Es tiempo de preguntas. ¿A quién dirigírsela? A las estrellas.

El poema “Tamara lírio” expone los instintos, devela de la hembra devoradora, belleza que pisa el suelo sagrado sin ceremonias. El ritual erótico prosigue en “Arcana Fata”. En el centro del paraíso, entre los ríos “Tigris y Éufrates”, el yo poético prepara como ofrenda un “corazón de carbones ardendo”, enseña a hacerse nuevamente uno con la amada al ser devorado y por ella asimilado. Mientras tanto, la consumación antropofágica no fue posible, pues, el yo lírico no supo huis de sí mismo, fue (¿inocentemente?) engañado por sus sentidos.

El elemento fuego surge en el poema “Cloto, Láquesis y Àtropos”. En él, las hilanderas de la vida y de la muerte, señoras del Destino, viajan en un barco en llamas. Ellas chupan “la sustancia esencial” de un cuerpo, prefieren tener como víctimas a los vagabundos y los errantes solitarios. Las hermanas se miran en un pedazo de espejo hecho de mar: juego de imágenes, ilusiones y multiplicidad. El doble especular presente en ese poema reaparecerá en el “Yo también quise la dicha”, en el cual el yo lírico se ve remolcado por una sombre y busca liberarse: “Pero la bala de plata estalló en la cara”. Desfigurado, el yo ve frustrado su ideal de felicidad. ¿Qué hará el hombre con la belleza que abunda? ¿Qué hará Dios en su día de descanso? ¿Dónde estará la imagen real, frente a los escombros del rostro despedazado, de los reflejos y de los fragmentos? Observamos que el poeta emprende una crítica sobre el sentido de la vida, de la creación, de la objetividad de la belleza como metáfora del arte y de la poesía. ¿No sería la duda la quintaesencia de la creación? La Serpiente es la guardiana de ese paraíso de dudas. Perderse en la soledad ee un atributo del poeta, pero, hay un faro, una luz: los ojos de la amada. El poema, “El el íris de tus ojos”, dedicado a la esposa y compañera del poeta, Señora Gloria Gabuardi, vemos la temeridad del instante, el poema enseña que el paraíso no desaparece, cambia continuamente, incluso, concentrándose entero en los ojos y en la palma de, la mano de la mujer. En “Celebración de la Primavera”, las palabras de amor son direccionadas a la amada: “Con ella conocí la agonía de los ríos del desierto”. En “Los hijos de Caín” se establece el embate entre la práctica del bien y la alabanza de los pecados abundante de los “hijos de Caín”. Caín teme ser muerto por Abel y planea asesinarlo. El yo lírico pasa a cultivar obsesiones, se siente una serpiente inútil, sin principio y sin final. El ouroboros, símbolo representado por la serpiente que se devora a sí misma a partir de la propia cola, indica que el yo penetró en el tiempo de la eternidad, del sueño, en el lugar donde encuentra una princesa encantada que alerta sobre la (in)finitud de la vida: “Me fue quedando en todo lo que amé”. En el instante, el yo lírico quiere devorar “estrellas fugaces”, tiene hambre del infinito y comprende que “somos un grano de arena en medio de un desierto azul”, espacios vacíos contemplados por el universo. El yo lírico, “arrancado del silencio de la noche/ del oscuro cielo nocturno lleno de estrellas/  del caos celestial”, contempló la belleza que lo deseaba, necesitando de su mirada.

Observamos que después de la jornada épica de descubrirse a sí mismo a partir del otro, de la alteridad (mujer, animal y elementos celestiales y terrenales), y también siendo visto, el yo poético entona un canto laudatorio a la mujer. No es por un acaso que el poeta dedica los versos a su progenitora, la Señora Rosita Arellano. “Letanías para nuestra señora, la Virgen de la Rosa” cierra el libro de poemas, que es un ruego, una oración por la vida: “Rosa azul que representas milagros y nuevas posibilidades de la vida/ Rosa roja que representas el amor y la pasión”. Así como las Parcas, señoras del Destino y el ouroboros presentes en la obra indican que el poema es una antonimia, instaura lo paradojo, pues, de la misma manera que la vida posee un comienzo y encuentra su final (por la muerte), simbólicamente la serpiente es aplastada por la mujer que hace que ese mismo ser renazca como Otro, trayendo dentro de sí todos los que lo antecedieron: la humanidad entera.

 

A ALQUIMIA DO SER EM LUNA MOJADA, DE FRANCISCO DE ASÍS FERNÁNDEZ

Por Renata Bomfim 

A obra poética Luna Mojada (2015), edição bilíngue do escritor nicaraguense Francisco de Asís Fernández desafia o leitor para que se aventure. O livro com trinta e oito poemas da forma a uma espécie de Cosmogonia poética onde valores femininos, masculinos e instintos básicos se misturam formando novos mundos. Inicio o olhar para essa obra pela pintura em acrílica sobre tela do artista plástico colombiano Mario Lodoño (1954), escolhida como capa. Nessa obra pictórica observamos uma mulher deitada sobre um cavalo. O corpo nu da fêmea se une ao do imponente animal, de forma que não podemos diferenciar os fios dos seus cabelos dos da cauda do equino. Não há movimento entre os elementos da obra, apenas o silêncio ruidoso de ecos de vozes que necessitam ser escutadas. A lua, suspensa, assiste ao espetáculo de união entre os seres distintos e afins. Considere-se o leitor avisado, entraremos em um mundo de sonhos inédito, onde nada é o que parece ser, mas que, ao mesmo tempo é à priori. Mundo arquetípico, noturno, erótico, dual, prenhe de ansiedades, abismos e alvoradas. A lua, guardadora dos mistérios femininos da criação, símbolo da Grande Mãe primordial, está úmida, pronta para o gozo e para a procriação. Essa obra nos arremessa para um lugar intersticial onde o bem e o mal coexistem. No poema de Rubén Darío “Colóquio de los Centauros”, o centauro Ástilo revela a profundidade do mistério poético, ele diz: “El enigma es el soplo que hace cantar la lira”. Assim, como informou Ástilo, a enunciação do eu poético em Luna Mojada indica que esse não é um livro de revelações, antes, de mistérios. Indica que há um caminho que apenas o leitor pode perfazer na intimidade da leitura, senda iniciática que lhe possibilitará vislumbrar novos sentidos e realidades, pois, sondar o verso é ser sondado por ele, é romper com tudo, não ter a verdade como horizonte e nem o futuro por morada. É assim que o crítico Maurice Blanchot define o poema: “a realização total da irrealidade[1]”. Deparamo-nos com o eu lírico expressando a chegada de um tempo de alegria e regozijo possível, apenas, por meio do amor. O poema “¿Cómo eran las auroras al pricipio del mondo?” desperta lembranças de um passado comum e cheio de novidades: “cuando descubrimos el fuego/ y pintamos las cuevas de Altamira”. “Retrato del poeta”, poema que o sucede, indica o surgimento do princípio da desarmonia, explicitando a existência  de uma fissura: “una gotera infame en el techo de mi cabeza”. Pensamentos inundados, já não há como se resguardar as “memorias, imagines,/ manías, amores e rencores antiguos,/ que sostenían muchas paredes de papel e de sombras”.  Há também o despertamento de uma nova força, destrutiva e abissal no cerne da obra: “En mi cuerpo parece que se solto um animal”. Destaco aqui a solidão essencial que emana da obra literária. Como afirmou Blanchot (2010), o livro não é a obra, antes, é um objeto feito de palavras estéreis. A obra compreende um evento no qual as palavras se concretizam na intimidade de quem escrever e de quem lê. Assim, a jornada tem início com a inquietação do eu poético. Os sonhos foram derrotados e o cenário é alucinante: “exquisita gota de locura”, os olhos da mulher fazem lembrar a aurora inaugural, “ojos más intensos que las noches del Lower East Side/ y las cataratas del Niágara”. Na dúvida entre o sonho e a realidade existe apenas uma certeza: os olhos dessa mulher “Com tantos soños derrotados”.  

É durante o sonho que eu poético pode recobrar a antiga unidade. Transportado pelo “Angel de la noche” para lugares espetaculares, vislumbra um “nuevo mundo” onde os seres das águas e do ar se juntavam. Esse lugar sem lágrimas e sem dores não comporta o coração humano, entretanto, no poema subsequente, intitulado “Hay um lugar em el mundo”, vemos a emergência de novo equilíbrio entre humanos e não humanos:  a intimidade entre eu poético e os animais revela, “la más intima amistad”, um vínculo de confiança. O eu, solitário, conversa com os pássaros, assim ele sente que seus sentidos são apurados e se tornam “más peligrosos que um tigre de Bengala” e, portanto, prontos para “arrancar la virtude de la vida”.

A busca pela reconciliação entre os opostos e pelo apaziguamento do que há de feroz no humano, põe em cena a morte que, assim como a vida, habita o campo do sagrado. É a morte que “arranca los pedazos de memoria” e pressupõe uma quebra da relação com o mundo ordinário, cotidiano, introduzindo na obra um jogo textual sobre o qual não se tem controle. O eu poético enxerga os esquecimentos e as muitas vidas presentes na morte.

Há fome e sede, necessidades primárias humanas que arremessam o eu na senda do autoconhecimento, busca que leva à epifania.  O eu poético se depara com a beleza da vida marinha e se agita com “el temblor de las estrelas”. É no sonho que o desejo de unidade com o todo se realiza. O poema “Luna Mojada” ratifica o campo onírico como lugar de viabilidade do impossível, vivencia arquetípica, primordial, berço que acolhe e transmuta o morto, assim como a semente que dormita, preserva-lhe a alma que, em dado momento, “aflora e parte”. Cumprida essa etapa, o neófito está pronto para seguir em frente. As palavras se extinguiram, a morte e a vida se extinguiram, resta o despertar e o descobrimento, “este milagro”.

O ermitão solitário encontrou o equilíbrio dinâmico na vida: “alimentaba su alma con el Don del silencio”, entretanto, por mais que o eu se realize no paraíso da palavra, existe a tentação do encontro com o outro: com ela, a mulher que preexiste, resiste, e se performa em inéditos. As filhas de Lót com sua beleza e sedução, e a mulher que “era ya um cadáver antes de morir” revelam faces do feminino cuja potência é capaz de corromper o homem, estilhaçar as regras, desagradar a Deus e dar a luz a novos homens, filhos de um pai/avô sem máscaras. É tempo de perguntas, a quem endereça-las? Às estrelas.

O poema “Tamara lírio” expõe os instintos, desvela o poder da fêmea devoradora, beleza que pisa o solo sagrado sem cerimônias. O ritual erótico prossegue em “Arcana Fata”. No centro do paraíso, entre os rios “Tigris y el Éufrates”, o eu poético prepara como oferenda um “corazón em carbones ardendo”, ele anseia tornar-se novamente um com a amada ao ser devorado e por ela assimilado. Entretanto, a consumação antropofágica não foi possível, pois, o eu lírico não soube fugir de si mesmo, ele foi (inocentemente?) enganado pelos sentidos.

O elemento fogo surge no poema “Cloto, Láquesis y Àtropos”. Nele, as fiandeiras da vida e da morte, senhoras do Destino, viajam em um barco em chamas. Elas sugam “la sustância essencial” de um corpo, preferem ter como vítimas os vagabundos e os errantes solitários. As irmãs se miram em um caco de espelho feito de mar: jogo de imagens, ilusões e multiplicidade.  O duplo especular presente nesse poema reaparecerá no “Yo también quise la dicha”, no qual o eu lírico se vê atrelado a uma sombra e busca libertar-se: “Pero la bala de plata estallo en la cara”. Desfigurado, o eu vê gorado o seu ideal de felicidade. O que fará o homem com a beleza que sobeja? Que fará Deus no seu dia de descanso? Onde estará a imagem real, frente aos escombros da face estilhaçada, dos reflexos e dos fragmentos? Observamos que o poeta empreende uma crítica sobre o sentido da vida, da criação, da objetividade da beleza como metáfora da arte e da poesia. Não seria a dúvida a quintessência da criação? A Serpente é a guardiã desse paraíso de duvidas. O perder-se na solidão é apanágio do poeta, mas, há um farol, uma luz: os olhos da amada. O poema “En el íris de tus ojos”, dedicado à esposa e companheira do poeta, Sra. Gloria Gabuardi, vemos a temeridade do instante, esse poema ensina que o paraíso não desaparece, ele muda continuamente, inclusive, podendo concentra-se inteiro nos olhos e na palma da mão da mulher. Em “Celebración de la Primavera”, as palavras de amor são direcionadas à amada: “Con ella conoscí la agonia de los ríos del desierto”. Em “Los hijos de Caín” instaura-se o embate entre a prática do bem e a louvação dos pecados abundantes dos “hijos de Caín”. Cain teme ser morto por Abel e planeja assassiná-lo. O eu lírico passa a cultivar obsessões, sente-se uma serpentes inútil, sem principio e sem fim. O ouroboros, símbolo representado pela serpente que devora a si mesma a partir da própria cauda, indica que o eu penetrou o tempo da eternidade, do sonho, nesse lugar ele encontra uma princesa encantada que lhe alerta sobre a (in)finitude da vida: “Me fue quedando em todo lo que amé”. No instante, o eu lírico quer devorar “estrelas fugaces”, ele tem fome de infinito e compreende que “somos un grano de arena en medio de un desierto azul”, espaços vazios contemplados pelo universo. O eu lírico, “arrancado del silencio de la noche/ del oscuro cielo nocturno lleno de estrelas/ del caos celestial”, contemplou a beleza a deseja-lo, necessitando de sua mirada.

 Observamos que após a jornada épica de descobrir a si mesmo a partir do outro da alteridade (mulher, animal e elementos celestes e terreais), e também sendo visto, o eu poético entoa um canto laudatório à mulher, não é por acaso que o poeta dedica os versos à sua genitora, a Sra. Rosita Arellano. “Letanias para nustra señora la Virgen de la Rosa” encerra o livro de poemas, ele é um rogo, uma oração pela vida: “Rosa azul que representas milagros y nuevas possibilidades de la vida/ Rosa roja que representas el amor y la pasión”. Assim como as Parcas, senhoras do Destino e o ouroboros presentes na obra indicam que, o poema é uma antonímia, ele instaura o paradoxo, pois, da mesma maneira que a vida possui um começo e encontra o seu fim (pela morte), simbolicamente a serpente é pisada pela mulher que faz com que, esse mesmo ser renasça como Outro, trazendo dentro de si todos os que o antecederam: a humanidade inteira.


Renata Bomfim nació el año 1972 en la Isla de Vitória, capital del Estado de Espírito Santo (Brasil). 
Es profesora universitaria, maestra y doctora en Literatura Comparada, investiga la literatura Iberoamericana con énfasis en las obras de Florbela Espanca y Rubén Darío. Es miembro del Instituto Histórico y Geográfico de Espírito Santo (IHGES) y Presidenta de la Academia Feminina Espírito-Santense de Letras (AFESL). Autora y promotora desde 2007 de la revista Literaria Letra e fel (www.letraefel.com). Publicó los libros: Mina (2010), Arcano dezenove (2012), Colóquio das árvores (2015) y O Coração da Medusa (2018- no prelo) bilingüe en português y castellano. Activista cultural y ambientalista, es Gestora y propietaria de la Reserva Natural Reluz (www.reluz.com), donde preserva la flora y la fauna de la Mata Atlántica, siendo, también, Directora Técnica de la Asociación Capixaba de Propietarios de Reservas Particulares del Patrimonio Natural (ACPN).


[1] BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. (p. 40).