01/09/2025

CARMÉLIA MARIA DE SOUZA: ESTA ILHA É UMA DELÍCIA (RENATA BOMFIM)

 

Carmélia Maria de Souza: desesperada e lírica 
 Vento Sul- Seleção, organização e estudo crítico Renata Bomfim 
 Arte da capa:  Attílio Colnago 

No Programa Biografia, da TV- ALES, Milson Henriques, que foi um amigo muito próximo a Carmélia, afirmou que a cronista, quando criou a frase “Essa ilha é uma delícia”, o slogan poderia, à primeira vista, “parecer um elogio”, mas que estava “repleto de ironia”, e, na realidade, a frase queria dizer que, em Vitória, “tudo é proibido, tudo é provinciano, tudo não pode”. Ele acrescentou, ainda, que a despeito da ironia, nada impediu Carmélia de amar verdadeiramente a cidade de Vitória e de defendê-la nas suas crônicas.

Com relação à criação do slogan, “Esta Ilha é uma delícia”, o jornalista Pedro Maia declarou que é de autoria de Acyr Monteiro. Quem traz esse dado é José Irmo Gonring. Segundo Maia, Carmélia o teria adotado para a sua coluna: “Carmélia veio de Barbacena, onde tinha uma coluna chamada Os Pardais, para fazer coluna social no lugar do Hélio Dórea, que tinha ido para o jornal A Gazeta. A ideia de colocar na coluna o nome Essa Ilha É Uma Delícia foi do Acyr Monteiro, que realmente gostava muito de Vitória. Carmélia queria colocar na coluna o nome Os Pardais, mas Acyr achava muito provinciano”. [...] Ela escreveu durante dez anos a coluna”. 

A despeito de quem foi o criador do slogan, Glecy Coutinho destacou “Olha, Carmélia foi a pessoa que, eu acho, mais amou Vitória! Ela escrevia muito sobre Vitória, muito mesmo, e ela defendia Vitória, assim, viu, de unhas e dentes”. Esse amor da cronista pela cidade atravessa todo o livro Vento Sul. O texto “Com vistas ao cronista”42 fala sobre uma viagem que Carmélia fez ao Rio de Janeiro. Nele, a cronista declara que ficou feliz ao encontrar a Revista Vida Capixaba em uma banca, entretanto, ao ler, observou que o cronista Eugênio Sette, seu amigo, “espinafrava” a cidade: “Reconheço que nem sempre é possível a gente se lembrar que roupa suja deve ser lavada em casa”. Carmélia declara ter percebido um certo prazer, por parte do escritor, em “contar para os quatro ventos os pecados da Ilha”, uma intimidade que, para ela, era “sagrada”. Então, de forma humorada, passou a descrever o absurdo de alguém dizer que “os nossos telefones são uma droga”, que “as senhoras da Tradicional Família Capixaba [TFC] são fofoqueiras”, que “quando chove, fica tudo alagado”, e pergunta ao Eugênio: “em que mundo você estava quando inventou essas bobagens?”43 Em diversas crônicas é possível observar que há momentos em que Carmélia se torna porta voz da Ilha de Vitória: “A Ilha está pedindo para que vocês a deixem crescer”, “a Ilha quer saber se lá fora o seu nome é pronunciado com admiração e respeito”, e há outros, nos quais ela se funde à cidade: “Eu sou a Rua Duque de Caxias”. Carmélia afirmou que “gostava do jeito gozador com que os capixabas encaram as coisas da vida” e, no mesmo texto, ela pede ao Eugênio que, quando for escrever, “pense nas tardes de maio, [...], nas noites de serestas, nas estrelas da madrugada {...] e depois escreva uma crônica cheia de doçura, lembrando dela, “alguém que sempre entendeu (com amor e ironia) que esta Ilha é uma delícia”, especialmente por “abrigar os amores que a gente tem”.

Na parte dois de Vento Sul: “Cartas do meu redemoinho”, Carmélia se referirá a Vitória como “preguiçosa e bonita”, uma cidade que parece ter sido feita para abrigar as pessoas de boa fé e os homens de boa vontade”. Nesse texto, o que à primeira vista soa como sarcástico, vai sendo justificado poeticamente e vemos surgir aos olhos uma cidade humanizada “onde o milagre da poesia vai transformando todas as estrelas em perdão, a fim que se perdoem todas as mágoas de amor”46. Outro exemplo interessante que fala sobre os capixabas está na crônica “O deletério do povo capixaba”, onde a cronista diz: “confesso que não encontrei outra [palavra] mais expressiva para dizer o que penso do honrado povo capixaba [...]. É, decididamente, um povo deletério, este”. O povo mais deletério do mundo, talvez”. No texto, a escritora sai em defesa do amigo Marien Calixte que buscava empreender na gestão municipal de Vitória e estava recebendo muitas críticas. Carmélia acrescenta: “é bastante alguém pensar em fazer alguma coisa que preste nessa Ilha (ô Ilha!), para que os chamados “pés-frios” comecem logo a engrossar. Ao invés de darem o necessário incentivo [...]. E vão em frente os deletérios do inferno, apostando a própria mãe como ninguém será capaz de fazer coisa nenhuma. É uma desgraça, enfim”47. Carmélia não tinha papas na língua e fica claro que ela se posicionava com relação aos acontecimentos e às figuras públicas da cidade. A cronista, como bem disse Santos Neves, se dava bem com pessoas de diferentes grupos sociais, possuía amigos da classe trabalhadora e da alta sociedade e mantinha o hábito de passar temporadas nas casas desses variados amigos, como, por exemplo, na da colunista social Maria Nilce. Carmélia tinha consciência da potência das palavras, e de que a forma como representamos algo ou alguém, revela ou confere valor e grau de importância ao representado.

Renata Bomfim.


CARMÉLIA MARIA DE SOUZA: CRITICIDADE, POLÍTICA E RELIGIOSIDADE (RENATA BOMFIM)

 

Maria Nilce, Milson Henriques e Carmélia Maria de Souza.

Carmélia enxergou a sociedade capixaba sem filtros, ela não se inseriu no campo do discurso para agradar, ao contrário, buscou “espinafrar”, questionar verdades, desvelar preconceitos e o que mais pudesse estar camuflado sob o verniz da conveniência, tudo isso ela fez ciente do seu papel como intelectual e escritora. O seu trabalho cimentou caminho para outras pessoas na escrita, como observamos na crônica “Minha Félia”: “Quando nada, vou cumprindo a tarefa de aperfeiçoar a ferramenta para os outros, que certa mente virão. Quando nada, é possível que eu me saiba um pedaço desta ponte que deverá conduzir a humanidade até um mundo melhor. Tenho pena de não haver esperado para nascer no ano de 2050. Porque até lá, a imortalidade seja possível e a vida seja feita de colaboração e não de competição. Todavia, isso não passa de uma conjetura, apenas desejável. No momento, a disputa por um pedaço de pão atirado no lixo, a dura luta contra a escravidão [...] é o que constitui a presente e amarga realidade que me foi dada para contemplar [...] Mas ela passou a ser minha preocupação maior, a minha verdade, a minha poesia. Ela é hoje a minha consciência – a minha clara e nítida consciência, minha promessa única de realização nessa vida”.

A cronista foi alguém que viveu a cidade e conviveu com os seus personagens. Reinaldo Santos Neves afirmou que “Carmélia não fixava fronteiras para a troca de calor humano. Se dava bem com a esposa do magnata e com o pescador fodido que afogava as mágoas na pinga, não tinha preconceitos: não fazia distinção de sexo, credo, cor, nem pedigree social ou econômico — nem muito menos de idade”31. Carmélia fez da escrita um instrumento de diálogo e espaço para a fruição de afetos. Para a cronista, havia sacralidade no contato humano, mas ela abdicava “dos mistérios da divindade” e clamava por um Cristo “com a simplicidade dos mansos”: “O meu Cristo é assim: leal, compreensivo, solidário, fala gíria, frequenta o mesmo bar da corriola, lê poesia, e acha essa ilha uma delícia. Adora Chico Buarque, não suporta Proust, expulsa os chatos da mesa e se faz respeitar e amar como amigo que está em todas as coisas que eu amo e é por isso que está comigo”.

Carmélia tinha amigos importantes, entre eles o governador. O Jornalista Álvaro Silva contou que, na época da dita dura, Élcio Alvares ascendeu ao cargo de Governador do estado por indicação, sem eleição direta.  Silva relatou que, em uma ocasião, no Cine Juparanã, viu Carmélia chegar e saudar em auto e bom som o Governador Élcio Alvares, que se encontrava longe dela, e que este saiu de onde estava e veio cumprimentar a cronista.  A jornalista Glecy Coutinho, em entre vista, contou que na época da ditadura, Carmélia “respondeu processo” porque “escondeu umas pessoas na casa dela”, e que quando veio o AI-5, “então a barra pesou muito”. Essa é uma imagem da escritora que se opõe a de uma pessoa apolítica. A crônica “E me vieram perguntar, originalmente publicada sem título no jornal A Tribuna do dia 18 de fevereiro de 1968, diz assim: “Chegou um tempo, aqui no Brasil, em que todos os poetas — principalmente os mais humildes, os mais limpos — estão sendo encarados como elementos perigosíssimos à segurança da nação. Tenho um amigo poeta que passou seis meses trancafiado na prisão. [...] Como se ele pretendesse enfrentar sozinho as forças armadas e avacalhar com a revolução”. Nos seus escritos, a cronista se afirmou como livre pensadora, ela se posicionou junto àqueles com os quais tinha afinidade na defesa dos valores que acreditava e, defendeu o estilo de vida que escolheu viver: “Sou livre para fazer isto, [...] enquanto não me prendem eu vou bebendo o meu vinho  todas as noites, entre os supostos e alegres solda dos que compõem esta ingênua e inofensiva esquerda festiva. Na verdade, mesmo, não me prenderei mais a nenhum grupo e a ideologia nenhuma”34. Na crônica “Considerações ou tonais e chatas”, vemos Carmélia ironizar as “gloriosas” forças nacionais e debochar do histórico símbolo de liberdade nacional que é o grito do Ipiranga: “Há muito cansei de ouvir dizerem a mim que as coisas estão ruins e vão melhorar, pois, o Presidente da República e as Gloriosas Forças Armadas estão tomando as providências para botar essa joça no seu devido lugar. [...] Para mim isso acabou de uma vez por todas, não vem que não tem:[...] “Independência ou Marte!”, “sim, quero me mandar para Marte, com a maior urgência”.

Política e Poética são temáticas que se imbricam. Se pensarmos que Carmélia viveu em uma sociedade estamental e religiosa, podemos perceber que os seus textos criticam os grupos da elite, um exemplo desse olhar está na crônica “Os dez mais idiotas”, na qual a cronista, por meio do humor, chama a atenção para o uso do suplemento do jornal para o “fora de moda”. Ela se referia às listas dos ‘dez mais’, uma irrelevância que encobria “o tempo que passa na janela e só Carolina não vê”36. Em uma época em que o colunismo social foi muito forte em Vitória, a cronista não deixava de “espinafrar” esse e outros gostos da pequena burguesia. Carmélia debocha das ‘listas’, afirmando logo de entrada que isso era coisa que teria começado com “o finado Adão”, que havia se elegido “um dos dez mais do paraíso e deixado a pobre Eva na reserva”. Ela afirma que seria difícil fazer uma lista de chatos, pois, “esta ilha tem chato que não acaba mais”, mas, para não escandalizar a “carneirada”, resolveu escrever a sua própria lista: “Coisas que eu detesto; caviar, champanha, festa estilo soçaite, soçaite, Jorge Amado, programa “um instante maestro”, praia, telenovela, reunião com muita mulher, mulher (em geral), livro best-seller, dona bibi ferreira, muqueca de peixe, o samba “apelo”, homem bonito (só abro exceção para o alain delon — ele é demais) e almoço em família. Coisas que eu adoro: inverno, vento sul, café sem açúcar, frescura, desgraça alheia, jiló, música clássica, noite, irmãos metralha ltda., trocadilho infame, homem feio, simplicidade, pinga, gripe e sogra”37. O crítico e poeta Octávio Paz defendeu que “atividade de poética é revolucionária por natureza”. O pensamento do filósofo francês Jacques Rancière caminha na mesma direção na obra Políticas da escrita, onde consta: “a escrita é coisa política, pois ela alegoriza a constituição estética de uma comunidade, apontando a forma como essa comunidade partilha o sensível e delimita os seus espaços reais e simbólicos”. A partir desse entendimento, compreendemos que a política e a escrita se inscrevem, de forma radical, no campo da comunidade. 

Carmélia não foi uma escritora panfletária, mas usou a escrita para ocupar espaços relevantes na sociedade, e abrir outros, igualmente relevantes, especialmente para as mulheres. A reescrita da ‘lista’ foi feita de forma paródica, de forma a desnudar os valores esvaziados da “soçaite”, aos quais, agora sabemos, ela afirma que “detesta”. A crônica mostra também ser um espaço para experimentações com a linguagem e a subvertendo valores e gostos, com a cronista se colocando como apreciadora do que esse grupo não aprecia. Carmélia apontou que leitores capazes de a compreender eram o seu público ideal: “escrevemos para um grupo fechadíssimo, inteligente, de bom gosto, merecedor do nosso talento redacional em toda linha. Um grupo que ainda encontra sentido nas coisas mais simples e que entende a doçura e a poesia que a gente tira de dentro do coração”. Amylton de Almeida declarou que Carmélia seguiu firme trabalhando no jornal, enfrentando com senso de humor as asperezas e grosserias da cidade.

Renata Bomfim.






CARMÉLIA MARIA DE SOUZA: A MUSA DA FOSSA (Renata Bomfim - parte 4)

 

Carmélia Maria de Souza- desenho de Milson Henriques.

Estamos acostumados a ver ressaltado, nos retratos de Carmélia, o traço “Musa da fossa”. Conversando com pessoas que conviveram com a cronista ganha destaque a personali dade alegre e divertida de Carmélia. José Augusto Carvalho ressaltou esse jeito brincalhão da cronista: “Ela mesma pegava o uísque, tão à vontade se sentia em minha casa, e sentava-se à minha frente, e falava de si, de mim, de seus projetos, de seus amigos”. Carvalho descreve Carmélia como uma pessoa relacional, inclusive ela tentou apaziguar um atrito surgido entre ele e a colunista social Maria Nilce. O crítico conclui que “foi por intermédio de Carmélia que aqueles que a conheceram se tornaram membros de uma grande família capixaba”. 

Glecy Coutinho, jornalista que também conviveu com Carmélia, teve um papel importante na criação do TEATRO CARMÉLIA MARIA DE SOUZA, em 1986. Ela também enfatizou essa característica da cronista: “Olha, você sabe que eu não trabalhava no mesmo jornal que ela, eu trabalhava no Jornal A Gazeta e ela era do Diário, deve ter sido muito divertido o convívio com ela no jornal, porque ela era divertida, não tinha esse negócio de ficar na fossa não”. A cronista gostava de ajudar as pessoas e declarava contentamento em ver “um amigo do mesmo tempo, e das mesmas esperanças nossas [...] mostrar, principalmente para aqueles que não acreditavam na gente, que a geração que eles chamaram de PERDIDA, nunca esteve tão grandemente achada”. 

Carmélia tinha uma vida preenchida com livros, música, amigos. Ela foi leitora de Sartre, Drummond, Fernando Pessoa, Baudelaire, entre outros e brincava com esses personagens em suas crônicas: “Kafka é uma mentira, nunca existiu, Proust é chatíssimo e José de Alencar, se não tivesse morrido, a gente estrangulava ele” . Amylton de Almeida, no prefácio de Vento Sul, declarou que “Foi através de uma canção imortalizada por Silvinha Teles, ‘Dindi’, que Carmélia escolheu um tema que repetiria para o resto de sua vida”. Logo surgiria Maysa, com a canção “Barquinho”, iniciando a expressão de um estado de espírito que dominou a época: “a fossa”, que se traduzia em um estilo de vida, “seguido pela ‘corja’, e que escandalizava a Tradicional Família Capixaba”. A “fossa” é um tema importante na obra de Carmélia. No texto Fossa & amizade ela diz: “já se tornou tradicional me ouvirem dizer, de vez em quando, que estou numa fossa desgraçada. Isso dá para entender quando não me envergonho de confessar que a vida me tem maltratado, que vou aprendendo a sofrer quando é preciso”. A dor e o sofrimento são importantes alavancas criativas e levam a escritora a desenvolver a “Teoria geral da fossa” e “A Fossa (II.)”. Logo de saída Carmélia declara: “A minha fossa é linda. Lírica. Poética. Profunda. Imutável. Colorida [...] Uma fossa assim, destas de fazer inveja ao próprio Baudelaire, que em matéria de fossa ameaçava jamais encontrar rival. Ou ao finado Kafka, que entre uma e outra crise carpitiva costumava suspirar dizendo: Comigo ninguém pode! Eis, pois, que resolvo entender e falar de fossa, começando por classificar, de acordo com a atualidade, os mais diversos tipos” 24. Dando sequência a sua “teoria”, Carmélia classificou vários tipos de fossa: a “fossa pororoca”, a “fossa-de-não-ter-fossa”, a “fossa matrimonial”, e faz recomendações do tipo “como evitar” a fossa e como “dar cabo da bruta”. E para não se contradizer, advertia: “não pretendo mais ser confidente de fossinhas mixurucas: só aceito drama de alto gabarito, [...] e não tente, principalmente, curar as minhas [fossas], são heranças”. Os escritos sobre a fossa continuam, em Fossa II, novos tipos emergem: a “fossa financeira”, a “fossa balneária”, a “fossa íntima”, a “fossa jornalística”, mas, para além das teorias da fossa, em novembro de 1967, a cronista escreveu a crônica “É tempo de otimismo acho eu”.

A fossa possibilitou que a nossa persona dramatis realizasse variadas performances perante os seus leitores, e essa atitude literária ajudou a formação de uma aura mítica em torno da cronista que, na casa dos trinta anos, costumava dizer que tinha “oitenta e um anos de idade”. Tomando a escrita de si como performance, a própria Carmélia dirá, no texto “Fossa e amizade”: “É natural o pranto e o riso, na geração de onde eu vim e na geração deste tempo que nos foi dado para viver. Sou decididamente uma jovem velha [...], às vezes choro porque me sinto triste. Isso não me impede, todavia, que eu me sinta uma pessoa perdidamente feliz27. A aura mítica que foi se formando em torno da personagem carmeliana, também foi alimentada pelos famosos bilhetinhos nas mesas dos bares dizendo: “Não se aproxime”; pela surpresa dos seus arroubos, quando, do nada, se levantava e, em alta voz, dizia: Viva o Simpósio! Ela criou siglas como TFC, Tradicional Família Capixaba; FUNAP, Fundação Nossa de Assistência ao Pecado e GREET, Grupo Experimental dos Existencialistas Traumatizados. Carmélia foi uma pessoa invulgar, como relembrou Sandra Medeiros. A amiga de Carmélia declarou que a cronista misturava fantasia, bastidores das redações todas da cidade, da política, dos personagens que ocupavam as colunas sociais, com coisa mais séria: cinema e existencialismo. [...] Pequenas bobagens para fazer graça. [...]. Ela mesma se divertia e ria muito com isso”. 

Carmélia andava carregando uma “bengala”, mas a despeito de toda fortaleza de seus quase 80 quilos, e de se dizer “grossíssima, péssima companhia noturna, diurna ou vespertina; [...] mau-caráter, desgraçada, temperamental, neurótica, falsa, inconstante, cínica e debochada”, ela era “carinhosa e afetiva”, como a descreveu a amiga Mariangela Pellerano, lembrando que a cronista “chorava fácil e ficava de mal”29. Ruy Dias de Souza, sobrinho de Carmélia, relatou a importância da tia na sua vida, e lembra com carinho do tempo de convívio em que costumava dirigir para ela, levando-a aos bares e aos eventos da cidade. Traçou o perfil de uma mulher alegre, e que enfrentou com coragem os desafios de viver em uma época de grande repressão. Foi no embalo das tragicomédias ensaiadas pela fossa, e no jeito novo do artista compor, tocar, cantar e de se apresentar, que “Dindi” se tornou o mito amoroso carmeliano. Foi com Dindi que Carmélia dialogou poeticamente nos momentos de solidão, apresentando-se como Félia, Magnólia Cardin, Magnolérrima. A Dindí carmeliana consta como herdeira das crônicas e dos livros de Carmélia, personagem incumbida de cuidar do seu espólio e, especialmente, de fazer vir a lume o livro Vento Sul. 
Renata Bomfim.

A MULHER QUE DESCOBRIU A PRIMAVERA: CARMÉLIA MARIA DE SOUZA, FORÇA QUE NASCE DA TERNURA ( Renata Bomfim - parte 3)


Carmélia Maria de Souza aos 2 anos de idade.

A inserção de Carmélia no mundo da crônica aconteceu no tempo que ela ainda era estudante e escrevia para a revista Comandos, do Colégio Estadual do Espírito Santo. É de 1954 a crônica “La vida es sueño”, que diz: “estoy segura que yo no soy la única persona a soñar en el mundo”. A primeira crônica como profissional, intitulada “O lotação, a gorda e eu”, Carmélia publicou em 1958, na Revista Vida Capixaba. Posteriormente, a cronista trabalhou nos principais jornais da capital: Sete Dias, O Diário, A Tribuna, A Gazeta, O Debate e Jornal da Cidade. Após anos de produção, na década de 1980, parte do acervo que continha seus escritos foi destruído em um incêndio, eram crônicas publicadas nos jornais A Tribuna e O Diário.

 Conforme relatamos anteriormente, Carmélia tinha um amor declarado pelo ofício de escritora. Apaixonada pela palavra, ela produzia com paixão e os seus textos tinham uma forte carga de lirismo: “Há uma necessidade em mim de dizer as palavras que ainda não foram ditas”17. A escritora também escreveu poemas, em guardanapos, que ofertava aos amigos, nas noites, em bares como o Britz e o Shakesbeer. A leitura de Vento Sul indica que Carmélia não se fechou na crônica, há na obra, também, poesia. Infelizmente, não temos ideia do que o fogo consumiu do seu trabalho e nem o que esse material abriria de possibilidade para a pesquisa. A entrega genuína à produção literária, alinhada com os valores que acreditou e defendeu, fez com que a cronista marcasse uma época e se tornasse a porta-voz do espírito de contestação dos anos 60 e da desilusão dos anos 70.

As luzes que permitiram que a escrita de autoria feminina fosse vista com mais interesse e se tornasse linha de pesquisa em variados centros acadêmicos, começaram a brilhar a partir da década de 1970, especialmente instigada pela crítica feminista. Foi então que passou a acontecer um revisionismo crítico da produção das mulheres de diferentes épocas, o que contribuiu para a territorialização do espaço da escrita em ofícios tradicionalmente tomados como sendo “de alçada masculina” como o jornalismo. 

 A crônica, gênero híbrido que transita entre o jornalístico e o literário, nasceu irremediavelmente atrelado ao jornal. A palavra crônica, derivada do grego Khronos, mostra a associação do gênero ao tempo. A escrita de Carmélia possibilita um olhar, — que deve ser feito à contrapelo —, para a cidade e a sociedade do seu tempo e, se levarmos em conta que o jornal é um suporte temerário, — pois as notícias são atualizadas e o jornal do dia anterior acaba fadado ao esquecimento—, podemos dizer que Carmélia é uma sobrevivente. 

A primeira crônica “oficial” de Carmélia permite entre ver o olhar sensível da escritora, capaz de enxergar poesia em uma cena corriqueira da cidade. Essa crônica também é uma mostra da poeticidade de sua prosa. A escolha do lotação, ou seja, do ônibus, como cenário de observação para a escrita, indica a proximidade da cronista com o universo do trabalho, do público e do coletivo. O texto expõe o desconforto dos passageiros “que se comprimiam” dentro do coletivo, e a atitude de uma mulher que, sentada, reclamava do aperto com um outro passageiro que estava de pé. Esse foi o ponto de partida da cronista para variadas reflexões. A descrição da personagem como “gorda e feia” revela uma antipatia da personagem por parte da narradora que pode ter sido despertada pela falação da mulher e agravada pelo cansaço, pois, Carmélia confidencia ao leitor que teve um “dia horrível”. A narradora observou que, logo, todos os passageiros passaram a reclamar do lotação. Segundo Carmélia, além de reclama rem da situação momentânea, passaram a falar mal “de todos os lotações do mundo”. No decorrer da crônica podemos ver que esse mal-estar, aos poucos, foi cedendo ao sentimento de ternura e gratidão. A cena despertou em Carmélia o que ela definiu como uma “ternura toda esquisita” pelos lotações da cidade e pelo motorista “carrancudo” e de “mãos caleja das” que o dirigia. Na narrativa, observamos que a cronista se sensibilizou com a situação do trabalhador e sentiu gratidão pelo “cacareco” que, gentilmente, ao final do dia, a deixava na esquina de casa. Na parte final da crônica, bastante poética, essa viagem de ônibus se torna uma metáfora da vida, e Carmélia diz que esperava um dia, ao vir “os destroços” do velho lotação, em “algum canto da vida”, e lembrar dos tempos em que “rabiscava crônicas como esta, na esperança de que [lhe estivesse] reservado um lugar ao sol”. Um texto emocionante que mostra o desejo de uma jovem escritora de 22 anos, de encontrar espaço como profissional e alcançar o reconhecimento pelo seu trabalho.

Renata Bomfim.

CARMÉLIA MARIA DE SOUZA: DESESPERADA E LÍRICA ( Renata Bomfim - parte 2)

 

Cartaz do peça teatral feita homenagem à Carmélia após o seu falecimento.

A ironia é um recurso narrativo que requer cumplicidade entre o produtor e o destinatário da mensagem, é fácil constatar que entre Carmélia e seus leitores existia esse entendimento, o que mostra que a cronista conseguiu desenvolver um jeito próprio de se comunicar com o povo capixaba. Amylton de Almeida relatou que Carmélia não sobre viveu aos anos 70, mas que a cronista conheceu pela primeira vez o reconhecimento profissional, “trabalhando como redatora anônima na redação do jornal O Diário, depois de ter feito da crônica assinada o seu paraíso pessoal”. Esse relato dá a entender que a cronista experimentou um jeito diferente de se expressar, literariamente, escrevendo no anonimato. A história mostra que, em diferentes épocas, muitas mulheres ocultaram a autoria de seus textos ou escreveram sob a más cara do pseudônimo.

É sabido que a inserção da mulher no campo do discurso foi uma conquista nada fácil. Francisco Aurélio Ribeiro destaca: “esta deve ser vista juntamente com a marginalização a que foram submetidas pela sociedade machista e falocrata até muito recentemente, ao lado dos homossexuais, crianças, idosos e dos étnica e racialmente discriminados: negros, judeus, ciganos, curdos, dentre outros”. Os primeiros jornais do Espírito Santo não foram campos elísios para as vozes da alteridade, ao contrário, eles serviram a determinados grupos de homens da elite e albergaram ideologias conservadoras do período colonial, depois, continuaram atuando em prol das novas formas de poder. Francisco Aurélio Ribeiro aponta que, no século XX, houve um “reposicionamento da mulher na sociedade, a discussão do seu papel social, a sua profissionalização”, e destaca o pioneirismo de Haydée Nicolussi (1905- 1970) e Lídia Besouchet (1908-1989) como colunistas, em jornais e revistas da época. 

Uma visada histórica mostra que o voto feminino foi constitucionalmente garantido em 1934. O Estado Novo (1937- 1945), estabelecido por Vargas através de um golpe de estado, dificultou muito os avanços da pauta feminista e, especialmente a vida das militantes, foram tempos de repressão. A redemocratização, em 1946, permitiu que às mulheres voltarem a se organizar em coletivos. No Espírito Santo, em 1949, foi fundada a Academia Feminina Espírito-santense Letras (AFESL). Carmélia demonstrou interesse em ingressar na AFESL, mas a sua entrada não foi vista com bons olhos, possivelmente pela sua vida extemporânea. No ano de 1992, buscando retratar a injustiça, a instituição tornou-a patrona da cadeira de número 30. A primeira ocupante dessa cadeira foi Marzia Figueira (1938-2000), que segundo Ribeiro era “oriunda de família da elite” e teve grande destaque no cenário jornalístico capixaba, atuando por trinta anos. Embora ambas tenham produzido na mesma época e fossem humanistas, a escrita de Carmélia e de Marzia diferiam, pois, Carmélia escrevia ancorada pelos valores da contracultura, e Marzia produzia crônicas mais conservadoras. 

Carmélia transitou com determinação nesse cenário jornalístico e literário, levando para o jornal, alguns deles de grande circulação, temas que encontraram ressonância em diferentes grupos, assim, com o passar dos anos, ela se consolidou como uma cronista implicada com a ótica da diferença. O jornalista Álvaro Silva relatou que “até o início da década de 1970, não existia imprensa profissional, eram pes soas que trabalhavam nas redações de jornal depois do expediente, era médico, professor, funcionário público, e quando ele terminava o expediente ia para jornal ganhar mais um dinheirinho. Carmélia não tinha formação [acadêmica] como jornalista, tinha formação como gente, ela foi uma intelectual pura, que viveu a vida como ela deveria ser vivida. Por que ela era discriminada? Porque ela vivia, e tinha uma vida que, na época, era chamada de libertina. Ela era uma pessoa pura, sabe o que é uma pessoa pura? A pessoa que não tem satisfação a dar a ninguém, ela era... não sei como classifica ria Carmélia hoje, sei lá, não sei”. Álvaro relatou, ainda, que Marien Calixte lhe contou um episódio no qual Carmélia chegou para ele e disse: “A primavera chegou uma semana antes em Vitória, está na Praça Costa Pereira, em uma flor que só eu vi”. A partir dessa confidência, Calixte passou a chamá-la de “a mulher que descobriu a primavera”.
Renata Bomfim.

CARMÉLIA MARIA DE SOUZA: DESESPERADA E LÍRICA ( Renata Bomfim - parte1)


Carmélia Maria de Souza.

“Nunca foi tão preciso dar amor e amar. E nunca foi tão difícil fazer com que os homens acreditem nisso” (Carmélia Maria de Souza)

 Carmélia Maria de Souza fez da crônica um espaço fértil para a produção literária. A “Cronista do povo”, como ela se definia e gostava de ser referenciada, foi uma personae dramatis, e criou performances que lhe permitiram sondar a própria identidade e se desdobrar em Félia, Magnólia Cardin, Magnolérrima. Reinaldo Santos Neves declarou ser difícil, talvez impossível definir Carmélia, mas que ela foi, certamente, “alguém que abriu caminhos – principalmente para as mulheres de Vitória”, e isso, “sem lágrimas nem dor. A não ser para ela mesma”. Sendo assim, passados cinquenta anos de sua viagem para “as esquinas dos astros”, buscamos o seu rosto na sua obra e nas palavras daqueles que a conheceram e tiveram a alegria de desfrutar de sua companhia. Vento Sul deixa evidente o amor de Carmélia pela escrita: “E escrever, senhoras e senhores, ainda é a única coisa que consigo fazer muito bem neste mundo de meu Deus, — modéstia à parte. E isso eu aprendi a fazer assim mesmo, por minha conta e risco, sem que ninguém me ensinasse”. A cronista produziu no que chamou sua “tendinha de trabalho”, — onde “nos respeitam e às nossas ideias” —, o que denominou sua “vida operária, responsável por alguma parte desta engrenagem maravilhosa que é uma oficina de jornal”.

 A relevância de Carmélia no cenário cultural e jornalístico é imensa, conforme destacou Francisco Aurélio Ri beiro, ela “foi a responsável por popularizar a crônica escrita por mulheres no Espírito Santo”6. Amylton de Almeida, em uma reportagem no jornal A Gazeta, declarou que devia a Carmélia “a primeira oportunidade na imprensa, em 1966, quando essa profissão dificultava o ingresso de certas pessoas”. Falamos aqui de um tempo de profundas mudanças no jornalismo local “extremamente conservador”. Marien Calixte7, personagem de relevo na história no jornalismo capixaba, relatou que a discriminação fazia com que “pessoas como Amylton de Almeida e Milson Henriques, que eram tidos como homossexuais, até por causa da sua própria fisiologia social, quer dizer, eles eram boêmios, pessoas metidas em teatro, literatura, etc.”, fossem estranhadas nas redações. Calixte destacou, ainda, que “a discriminação se estendia também para o gênero feminino”, e que perguntavam como “esse tipo de gente” havia conquistado espaço profissional. Carmélia escreveu na crônica “Notícias sem tempo da minha cidade”8: “Quem não quiser concordar, que se dane, [...] quem não estiver a fim de sintonizar direitinho com o que se faz aqui, tenha a bondade de não ficar pichando a gente pelas costas não. [...] Acabamos de nascer para esta cidade que é um mundo”.

 Os anos de 1960 produziram grandes transformações sociais, conforme destacou Francisco Aurelio Ribeiro: “o acirramento da luta feminista com a criação do Women’s Lib, nos EUA, e do Movimento de Libertação das Mulheres, na França, em 1968. Dentre as reivindicações do feminismo estavam: direito ao aborto, contracepção livre e gratuita, igualdade de salários para o mesmo trabalho, defesa e informação das mulheres sobre seus direitos, luta contra a opressão familiar, que limitava o papel da mulher ao de esposa e mãe. No Brasil, o movimento foi cerceado pela ditadura militar, que impôs a censura e a perseguição aos intelectuais e políticos”. Em Vento Sul, variadas passagens mostram Carmélia se in surgindo contra o provincialismo da ilha e afirmando que, se há nela alguma pretensão, é a de ser “justa, natural e única”, em contraposição aos “enfeitados e esnobadinhos”, o que considerou um “hábito tradicional de muita gente” na ilha de Vitória”10. Carmélia não ligava para falatórios, foi uma mulher simples, que valorizou a essência, pouco se importando com as aparências, e é sabido que a autenticidade cobra o seu preço.

Variados tipos de violência ameaçam as mulheres, in diferentes a endereço, raça, cor, classe social, escolaridade, profissão. Entretanto, sabemos também que os impactos dessas violências diferem com relação as suas vítimas, a partir de marcadores sociais como gênero, raça e classe. Carmélia carregou marcadores de diferença significativos, — mulher, negra, pobre e LGBTQIA+. Para Kátia Fialho, a cronista “imprimiu em sua escrita uma “ruidosa” (no melhor dos senti dos) forma de (r)existência. Do lugar de fala que ocupou no mundo tendo um corpo negro, gordo, totalmente fora dos padrões determinados por uma sociedade altamente conservadora – que ela apelidou de TFC (Tradicional Família Capixaba), ela não precisou empunhar e tremular uma bandeira de luta por respeito, pois a sua própria presença no universo do jornalismo, da boemia e da escrita, de forma precursora e altamente irônica, provocativa e ‘subversiva’ a destacavam como uma mulher à frente do seu tempo, que carregava em seu modo tão peculiar de viver a essência da diversidade”. Prova dessa coragem é que Carmélia viveu desafiando costumes, ela foi uma das poucas mulheres em Vitória a usar calça comprida e, a esse respeito, a cronista declarou: “Não troco o conforto das minhas calças compridas e surradas por nada deste mundo”11. Reinaldo Santos Neves perguntou em “Muito além do Milk Shake”12, “Quem foi Carmélia Maria de Souza? O escritor, que conviveu com Carmélia, traz à luz uma imagem de mulher afastada de “joias, adereços, maquiagem”, “com jeito de homem, com mania de usar sempre calça comprida e de viver sempre acompanhada por homens, sendo que, nos seus últimos dias, tinha como companheira dos últimos anos ‘a famosa bengala’ e, pontual, usava um relógio de pulso para não se atrasar nos compromissos. Ambição? Nenhuma”. Carmélia não se deixou definir como “inferior” e caminhou com altivez na contramão do ideário feminino de sua época, respondendo as asperezas da vida com as ar mas de que dispunha: HUMOR E IRONIA. Carmélia escreveu: “Descobri que sou bárbara, dona de um estilo verdadeiramente universal, preciso urgentemente me mandar para Guanabara, pois Vitória não está à altura de receber minha genialidade, nem por aqui haveria horizontes dignos e devidamente alargados onde eu pudesse caber. A mim me cabe, portanto, dar uma banana para todos vocês e me mandar de mala e cuia para o Rio de Janeiro. Lá eu não terei a menor dificuldade em desbancar o Rubem Braga, nem em botar no maior chinelo o Carlinhos de Oliveira”13. Capixabas entenderão!  A cronista conseguiu desvelar de forma irônica os valores da sociedade espírito-santense, desafiando a ideologia dominante e, mesmo que o slogan “Esta ilha é uma delícia”, popularizado por ela, esteja imantado de ironia, a cronista colocou o seu território, — a ilha de Vitória — no centro do [seu] mundo, como um lugar singular e único.

Renata Bomfim

20/08/2025

A alegria de inventar histórias reunindo cenas da cidade (Renata Bomfim)



O Projeto Nós no Parque me convidou para contar histórias junto ao conserto musical do projeto. 
Que lindeza esse projeto que acontece no Parque Moscoso, ele leva uma orquestra para o parque público.Criei uma família com três personagens destacados: Vitória, Ravi, duas crianças e a Vovó Ester, e esses personagens interagem com amor e criam muitas aventuras. A arte é transformadora e as crianças adoraram. Espero que todas as edições tragam novidades boas como as que tivemos no primeiro encontro.
Renata



 

11/08/2025

CARMÉLIA MARIA DE SOUZA: DESESPERADA E LÍRICA (Renata Bomfim)


“Nunca foi tão preciso dar amor e amar. E nunca foi tão difícil fazer com que os homens acreditem nisso” (Carmélia Maria de Souza).

Carmélia Maria de Souza fez da crônica um espaço fértil para a produção literária. A “Cronista do povo”, como ela se definia e gostava de ser referenciada, foi uma personae dramatis, e criou performances que lhe permitiram sondar a própria identidade e se desdobrar em Félia, Magnólia Cardin, Magnolérrima. Reinaldo Santos Neves declarou ser difícil, talvez impossível definir Carmélia, mas que ela foi, certamente, “alguém que abriu caminhos – principalmente para as mulheres de Vitória”, e isso, “sem lágrimas nem dor. A não ser para ela mesma”. Sendo assim, passados cinquenta anos de sua viagem para “as esquinas dos astros”, buscamos o seu rosto na sua obra e nas palavras daqueles que a conheceram e tiveram a alegria de desfrutar de sua companhia. 

Vento Sul deixa evidente o amor de Carmélia pela escrita: “E escrever, senhoras e senhores, ainda é a única coisa que consigo fazer muito bem neste mundo de meu Deus, — modéstia à parte. E isso eu aprendi a fazer assim mesmo, por minha conta e risco, sem que ninguém me ensinasse”. A cronista produziu no que chamou sua “tendinha de trabalho”, — onde “nos respeitam e às nossas ideias” —, o que denominou sua “vida operária, responsável por alguma parte desta engrenagem maravilhosa que é uma oficina de jornal”. A relevância de Carmélia no cenário cultural e jornalístico é imensa, conforme destacou Francisco Aurélio Ribeiro, ela “foi a responsável por popularizar a crônica escrita por mulheres no Espírito Santo”. Amylton de Almeida, em uma reportagem no jornal A Gazeta, declarou que devia a Carmélia “a primeira oportunidade na imprensa, em 1966, quando essa profissão dificultava o ingresso de certas pessoas”. Falamos aqui de um tempo de profundas mudanças no jornalismo local “extremamente conservador”. Marien Calixte, personagem de relevo na história no jornalismo capixaba, relatou que a discriminação fazia com que “pessoas como Amylton de Almeida e Milson Henriques, que eram tidos como homossexuais, até por causa da sua própria fisiologia social, quer dizer, eles eram boêmios, pessoas metidas em teatro, literatura, etc.”, fossem estranhadas nas redações. Calixte destacou, ainda, que “a discriminação se estendia também para o gênero feminino”, e que perguntavam como “esse tipo de gente” havia conquistado espaço profissional. 

 Carmélia escreveu na crônica “Notícias sem tempo da minha cidade”: “Quem não quiser concordar, que se dane, [...] quem não estiver a fim de sintonizar direitinho com o que se faz aqui, tenha a bondade de não ficar pichando a gente pelas costas não. [...] Acabamos de nascer para esta cidade que é um mundo”. Os anos de 1960 produziram grandes transformações sociais, conforme destacou Francisco Aurélio Ribeiro: “o acirramento da luta feminista com a criação do Women’s Lib, nos EUA, e do Movimento de Libertação das Mulheres, na França, em 1968. Dentre as reivindicações do feminismo estavam: direito ao aborto, contracepção livre e gratuita, igualdade de salários para o mesmo trabalho, defesa e informação das mulheres sobre seus direitos, luta contra a opressão familiar, que limitava o papel da mulher ao de esposa e mãe. No Brasil, o movimento foi cerceado pela ditadura militar, que impôs a censura e a perseguição aos intelectuais e políticos”. Variadas passagens mostram Carmélia se insurgindo contra o provincialismo da ilha e afirmando que, se há nela alguma pretensão, é a de ser “justa, natural e única”, em contraposição aos “enfeitados e esnobadinhos”, o que considerou um “hábito tradicional de muita gente” na ilha de Vitória”. Carmélia não ligava para falatórios, foi uma mulher simples, que valorizou a essência, pouco se importando com as aparências, e é sabido que a autenticidade cobra o seu preço. 

 Variados tipos de violência ameaçam as mulheres, indiferentes a endereço, raça, cor, classe social, escolaridade, profissão. Entretanto, sabemos também que os impactos dessas violências diferem com relação as suas vítimas, a partir de marcadores sociais como gênero, raça e classe. Carmélia carregou marcadores de diferença significativos, — mulher, negra, pobre e LGBTQIA+. Para Kátia Fialho, a cronista “imprimiu em sua escrita uma “ruidosa” (no melhor dos senti dos) forma de (r)existência. Do lugar de fala que ocupou no mundo tendo um corpo negro, gordo, totalmente fora dos padrões determinados por uma sociedade altamente conservadora – que ela apelidou de TFC (Tradicional Família Capixaba), ela não precisou empunhar e tremular uma bandeira de luta por respeito, pois a sua própria presença no universo do jornalismo, da boemia e da escrita, de forma precursora e altamente irônica, provocativa e ‘subversiva’ a destacavam como uma mulher à frente do seu tempo, que carregava em seu modo tão peculiar de viver a essência da diversidade”. 

Carmélia viveu desafiando costumes, ela foi uma das poucas mulheres em Vitória a usar calça comprida e, a esse respeito, a cronista declarou: “Não troco o conforto das minhas calças compridas e surradas por nada deste mundo”. Reinaldo Santos Neves perguntou em “Muito além do Milk Shake”, “Quem foi Carmélia Maria de Souza? O escritor, que conviveu com Carmélia, traz à luz uma imagem de mulher afastada de “joias, adereços, maquiagem”, “com jeito de homem, com mania de usar sempre calça comprida e de viver sempre acompanhada por homens, sendo que, nos seus últimos dias, tinha como companheira dos últimos anos ‘a famosa bengala’ e, pontual, usava um relógio de pulso para não se atrasar nos compromissos. Ambição? Nenhuma”. Carmélia não se deixou definir como “inferior” e caminhou com altivez na contramão do ideário feminino de sua época, respondendo as asperezas da vida com as armas de que dispunha: HUMOR E IRONIA.

 A cronista escreveu: “Descobri que sou bárbara, dona de um estilo verdadeiramente universal, preciso urgentemente me mandar para Guanabara, pois Vitória não está à altura de receber minha genialidade, nem por aqui haveria horizontes dignos e devidamente alargados onde eu pudesse caber. A mim me cabe, portanto, dar uma banana para todos vocês e me mandar de mala e cuia para o Rio de Janeiro. Lá eu não terei a menor dificuldade em desbancar o Rubem Braga, nem em botar no maior chinelo o Carlinhos de Oliveira”. Capixabas entenderão!  

A cronista conseguiu desvelar de forma irônica os valores da sociedade espírito-santense, desafiando a ideologia dominante e, mesmo que o slogan “Esta ilha é uma delícia”, popularizado por ela, esteja imantado de ironia, a cronista colocou o seu território, — a ilha de Vitória — no centro do [seu] mundo, como um lugar singular e único. A ironia é um recurso narrativo que requer cumplicidade entre o produtor e o destinatário da mensagem, é fácil constatar que entre Carmélia e seus leitores existia esse entendimento, o que mostra que a cronista conseguiu desenvolver um jeito próprio de se comunicar com o povo capixaba. Amylton de Almeida relatou que Carmélia não sobreviveu aos anos 70, mas que a cronista conheceu pela primeira vez o reconhecimento profissional, “trabalhando como redatora anônima na redação do jornal O Diário, depois de ter feito da crônica assinada o seu paraíso pessoal”. Esse relato dá a entender que a cronista experimentou um jeito diferente de se expressar, literariamente, escrevendo no anonimato. A história mostra que, em diferentes épocas, muitas mulheres ocultaram a autoria de seus textos ou escreveram sob a máscara do pseudônimo. 

É sabido que a inserção da mulher no campo do discurso foi uma conquista nada fácil. Francisco Aurélio Ribeiro destaca: “esta deve ser vista juntamente com a marginalização a que foram submetidas pela sociedade machista e falocrata até muito recentemente, ao lado dos homossexuais, crianças, idosos e dos étnica e racialmente discriminados: negros, ciganos, curdos, dentre outros”. Os primeiros jornais do Espírito Santo não foram campos elísios para as vozes da alteridade, ao contrário, eles serviram a determinados grupos de homens da elite e albergaram ideologias conservadoras do período colonial, depois, continuaram atuando em prol das novas formas de poder. Francisco Aurélio Ribeiro aponta que, no século XX, houve um “reposicionamento da mulher na sociedade, a discussão do seu papel social, a sua profissionalização”, e destaca o pioneirismo de Haydée Nicolussi (1905- 1970) e Lídia Besouchet (1908-1989) como colunistas, em jornais e revistas da época.

Uma visada histórica mostra que o voto feminino foi constitucionalmente garantido em 1934. O Estado Novo (1937- 1945), estabelecido por Vargas através de um golpe de estado, dificultou muito os avanços da pauta feminista e, especialmente a vida das militantes, foram tempos de repressão. A redemocratização, em 1946, permitiu que às mulheres voltarem a se organizar em coletivos. No Espírito Santo, em 1949, foi fundada a Academia Feminina Espírito-santense de Letras (AFESL). Carmélia demonstrou interesse em ingressar na agremiação, mas a sua entrada não foi vista com bons olhos, possivelmente pela sua vida extemporânea. No ano de 1992, buscando retratar a injustiça, a instituição tornou-a patrona da cadeira de número 30. A primeira ocupante dessa cadeira foi Marzia Figueira (1938-2000), que segundo Ribeiro era “oriunda de família da elite” e teve grande destaque no cenário jornalístico capixaba, atuando por trinta anos. Embora ambas tenham produzido na mesma época e fossem humanistas, a escrita de Carmélia e de Marzia diferiam, pois, Carmélia escrevia ancorada pelos valores da contracultura, e Marzia produzia crônicas mais conservadoras. 

Carmélia transitou com determinação nesse cenário jornalístico e literário, levando para o jornal, alguns deles de grande circulação, temas que encontraram ressonância em diferentes grupos, assim, com o passar dos anos, ela se consolidou como uma cronista implicada com a ótica da diferença. O jornalista Álvaro Silva relatou que “até o início da década de 1970, não existia imprensa profissional, eram pessoas que trabalhavam nas redações de jornal depois do expediente, era médico, professor, funcionário público, e quando ele terminava o expediente ia para jornal ganhar mais um dinheirinho. Segundo Silva, Carmélia não tinha formação [acadêmica] como jornalista, tinha formação como gente, ela foi uma intelectual pura, que viveu a vida como ela deveria ser vivida. Por que ela era discriminada? Porque ela vivia, e tinha uma vida que, na época, era chamada de libertina. Ela era uma pessoa pura, sabe o que é uma pessoa pura? A pessoa que não tem satisfação a dar a ninguém, ela era... não sei como classificaria Carmélia hoje, sei lá, não sei”. Álvaro relatou, ainda, que Marien Calixte lhe contou um episódio no qual Carmélia chegou para ele e disse: “A primavera chegou uma semana antes em Vitória, está na Praça Costa Pereira, em uma flor que só eu vi”. A partir dessa confidência, Calixte passou a chamá-la de “a mulher que descobriu a primavera”. 

(Renata Bomfim. Trecho da obra Carmélia Maria de Souza, desesperada e lírica).

CINQUENTENÁRIO DO DESAPARECIMENTO DE CARMÉLIA MARIA DE SOUZA (Renata Bomfim)

 

Edições de Vento Sul.

Carmélia Maria de Souza é uma das personalidades mais emblemáticas da cultura capixaba. A “cronista do povo” abordou temas atemporais que tocam e comovem: amor, humor, poesia, amizade, ironia, boemia, a cidade. Personalidade marcante, Carmélia foi uma mulher, segundo ela própria “muito mais festiva que revolucionária”, ela foi voz da alteridade e representante da contracultura no Espírito Santo. A singularidade da vida e da obra da cronista centra-se numa resistência corajosa ao establishment e na capacidade que ela teve de ultrapassar, por meio do lirismo de seus textos e de um desespero, — que traduzo como “ânsia de viver”, os desafios de sua época. 

Foi em 2002 que tive o primeiro contato com a obra de Carmélia, na ocasião do lançamento da terceira edição de Vento Sul. O livro foi um presente do saudoso amigo poeta Sérgio Blank. Quando comecei a ler Carmélia passou a se formar na minha mente uma imagem da escritora. Sabemos o quanto é temerário desenhar o retrato de alguém, corre-se o risco de exagerar alguns aspectos, diminuir outros e, até mesmo de fetichizar a figura representada. Dessa maneira, o retrato é uma ideia incapaz de contemplar a complexidade da pessoa. Lançar um olhar sobre a vida e obra de Carmélia, cinquenta anos após a sua partida, é um desafio que impõe, também, criatividade.

Podemos vislumbrar a imagem inquietante de Carmélia desenhada através de relatos de pessoas que a conheceram, peças teatrais, fotos, documentos, documentários, artigos e ensaios biográficos, como o Carmélia por Carmélia, organizada por Linda Kogure para a coleção Roberto Almada. O crítico literário José Augusto Carvalho declarou que “ter conhecido Carmélia é um privilégio de capixaba, ter privado de sua companhia, ter batido longos papos com ela passou a ser um atributo de poucos”. Quando Carmélia faleceu eu tinha dois anos de idade, assim como eu outros entusiastas de sua obra não tiveram a oportunidade de acompanhar a sua produção em tempo real e experimentar o frisson que sua escrita produzia. Portanto, para este ensaio, busquei dialogar com pessoas que conviveram com a cronista, com Ruy Dias, sobrinho da escritora, e acessei materiais generosamente cedidos por amigos pesquisadores como Francisco Aurélio Ribeiro e Kátia Fialho, a quem agradeço imensamente. Meu desejo é trazer à luz ou realçar alguns traços da imagem desta capixaba que “A cidade tratou de transformar em mito”. 

Variados eventos celebram Carmélia no cinquentenário de seu desparecimento, dando prova da perenidade de sua obra e da importância do seu legado. O Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo (NEPLES), dedicou a ela o XI Bravos/as Companheiros/as e Fantasmas: Seminário Sobre o/a Autor/a Capixaba; foi lançado o Documentário “Não se Aproxime: a Vida e Obra de Carmélia M. de Souza”, dirigido por Tati Rabelo e Rodrigo Linhares, e essa seleta produzida pela Academia Espírito-santense de Letras (AEL) juntamente com a PMV na 40ª edição da coleção José Costa. Inicialmente, a ideia era publicar uma edição fac-símile de Vento Sul, cheguei a produzir o livro, mas questões técnicas e limitações como o número de páginas tornou o projeto inviável. Dessa maneira, essa obra oferece ao leitor um estudo que busca elencar diferentes aspectos da obra carmeliana, obviamente, sem a pretensão de esgotar nenhum tema, e uma seleta de escritos, fotos e documentos, que permitirão ao leitor construir ou enriquecer os seus próprios retratos de Carmélia. Confesso que estou muito feliz por tecer essas considerações sobe Vento Sul, considero uma homenagem a “Félia” por ter me feito companhia durante muito tempo, enquanto leitora, antes de eu me tornar escritora e pesquisadora.

 “Diga aos que me amaram que eles me fizeram feliz. O seu amor justificou o meu amor e a ternura”. Essas palavras de Carmélia mostram que a cronista foi capaz de transitar sem medo pelos campos da afetividade e que foi querida por muitos. A sua morte por embolia pulmonar, no dia 13 de fevereiro de 1974, foi um impacto para familiares, amigos e leitores. Luiz Fernando Tatagiba escreveu no jornal A Tribu na do dia 15 fevereiro: “A ilha não é mais uma delícia, a au rora e o crepúsculo sorvem fel, e como os roseirais, os ideais cedo fenecem, e apenas a hipocrisia cada vez mais floresce. [...] Que esta seja a última flor e a última dor a incomodá-la, Carmélia, onde quer que esteja perdida a sonhar com 
versos livres e paisagens líricas na tarde”. 

No ano seguinte ao falecimento, 1975, Amylton de Almeida e Milson Henriques reuniram amigos da cronista para a organização e encena ção do Show musical “Carmélia, por amor”, apresentado pela Fundação Cultural do Espírito Santo no Teatro Carlos Gomes. Foi feita a retrospectiva da vida e da obra de Car mélia tendo no elenco a participação de Maura Fraga, então redatora do jornal A Tribuna; Mariângela Pellerano e Aprí gio Lyrio, redatores do jornal “A Gazeta”; além do pianista Gilberto Garcia, que integrava o vocal. Amylton de Almeida esclareceu que a ideia central do espetáculo era “enfatizar a força e a grandeza espiritual de Carmélia M. de Souza, uma pessoa que se manteve fiel às exigências e crueldades da pai xão, obtendo como recompensa a humanidade do senso de humor”. Amylton ressaltou, ainda, que aceitou fazer o show e estrear como intérprete por objetivar “homenagear o amor, a beleza, a solidariedade e a confiança” valores que ele julgava esquecidos, e concluiu: “Esse é o único aspecto ‘anacrônico’ de Carmélia por amor: a sua crença no ser humano”2. Vale destacar que, aos 20 anos do desaparecimento de Carmélia, a escritora e Kátia Bobbio escreveu o cordel “Vinte anos sem Carmélia, a cronista da Ilha”. 

Na crônica intitulada “testamento”, publicada na coluna Caderno Dois do dia 18 de maio de 1969, Carmélia escreveu: “Deixo as minhas crônicas (publicadas ou inéditas) para você. Deixo também para você os personagens de um livro que jamais terminarei de escrever. Termine-o por mim, Dindi! Escreva o Vento Sul”. Em 1976 o desejo de Carmélia foi realizado com a publicação póstuma do seu livro. A obra veio à lume pela Fundação Cultural do Espírito Santo e contou com a organização e apresentação de Amylton de Almeida. A segunda edição aconteceu em 1994, resultado de uma par ceria entre a Rede Gazeta de Comunicações e a Universidade Federal do Espírito Santo. Lançado como o segundo volume do Projeto Nossolivro, essa edição foi distribuída no formato encarte, dentro do jornal A Gazeta. Em 2002 foi lançada a terceira edição de Vento Sul como “um meio termo” entre as edições anteriores, mantendo integral a introdução feita por Amylton de Almeida, mas suprimindo alguns textos. 

Carmélia Maria de Souza, desesperada e lírica, 40ª edição da Coleção José Costa, se abre para a leitura, com a arte da capa, obra criada por Attilio Colnago, artista plástico capixaba de grande relevância na contemporaneidade, professor aposentado da UFES, pesquisador, pintor, restaurador, ilustrador. O retrato em aquarela criado por Attilio para este livro traz a imagem de Carmélia para mais perto do leitor, a obra permite variadas leituras, especialmente a partir da presença do duplo, mitema que dialoga com o imaginário de diferentes gerações e desdobra temas referentes a identidade, multiplicidade, hibridismo, fantasma, simulacro, entre outros. O cenário composto por elementos significativos do universo de Carmélia destaca a bebida, indispensável nas noites de poesia com os amigos pelos bares de Vitória e o conhecido bilhete “não se aproxime”, que compõe de forma complementar e irônica com o duplo afetivo da escritora. 

Essa obra é uma homenagem que também eu presto a escritora.  Carmélia Maria de Souza: desesperada e lírica é um caleidoscópio da obra carmeliana, com crônicas da revista Comandos, Vida Capixaba e das diferentes edições de Vento Sul. Escolhi textos mais conhecidos da cronista e outros não tão difundidos por estarem na primeira edição, esgotada a mais tempo. Os textos não seguem ordem cronológica, mas se ligam por afinidade temática: poesia, boemia, amizade, borogodó e outros caros à escrita carmeliana. Meu anseio é que Carmélia seja mais conhecida dos capixabas, e que a sua crônica poética conquiste cada vez mais leitores. 

 Renata Bomfim 
 Ocupante na Cadeira nº7 na AEL 

"Mar Revolto", romance de Erlon José Paschoal.

 

Mundos possíveis

Rubens, o protagonista, é um homem cosmopolita que escolheu viver no centro urbano de uma ilha do Brasil. Nascido em uma modesta família de origem italiana, em São Paulo, desde jovem sua vocação se manifestou para os campos da cultura e da arte, levando-o a trabalhar como ator e diretor de teatro, a estudar e aprender novos idiomas, traduzir livros, lecionar e viajar.

Hoje, no auge de sua maturidade, ele desfruta de um considerável bem-estar material, namora Sonale, uma mulher igualmente bem vivida, e, amparado na certeza de que ama o suficiente o mundo para assumir sua responsabilidade por ele — tal como sugere Hannah Arendt em seus escritos —, dirige uma organização voltada para a transformação do ser humano e dos espaços em favor da justiça social, do desenvolvimento criativo e da igualdade de direitos.

Todavia, para poder cumprir esse ideal, urge primeiro defender-se de uma ameaça crescente: o retorno do último e mais perigoso fantasma a aterrorizar as malhas do Século XXI: o totalitarismo. Para isso, Rubens programará um ciclo de eventos e debates, viajará para Espanha em busca de apoio de outras instituições, e lá conhecerá Úrsula, uma militante alemã, disposta a mudar para o Brasil em razão da perseguição política sofrida na Europa.

Pronto, está montado o triângulo amoroso. Ou não. Há uma trama muito mais sutil a se formar embaixo dessas águas revoltas. É, aviso de antemão, tudo muito próximo ao que vivemos em nossos dias. No entanto, tratam-se de realidades fora dos realities shows televisivos. E há, talvez, um imenso risco de reviravoltas incontroláveis. Sim, o mesmo a que se submeteram Alfred Döblin, em “Berlin Alexanderplatz”, ou John Steinbeck, em seu “Luta incerta”, por exemplo. Caberá ao leitor julgar por si. Preciso destacar ainda a preciosa habilidade de Erlon em costurar referências literárias e cinematográficas, discussões filosóficas e passagens da História ao seu texto, demonstrando as marcas de uma geração intensamente mergulhada na busca de utopias e na valorização do conhecimento e do capital simbólico de nossa memória.

Lima Trindade

Escritor