“Nunca foi tão preciso dar amor e amar. E nunca foi tão
difícil fazer com que os homens acreditem nisso”
(Carmélia Maria de Souza).
Carmélia Maria de Souza fez da crônica um espaço
fértil para a produção literária. A “Cronista do povo”, como
ela se definia e gostava de ser referenciada, foi uma personae dramatis, e criou performances que lhe permitiram sondar a própria identidade e se desdobrar em Félia, Magnólia
Cardin, Magnolérrima. Reinaldo Santos Neves declarou ser
difícil, talvez impossível definir Carmélia, mas que ela foi,
certamente, “alguém que abriu caminhos – principalmente
para as mulheres de Vitória”, e isso, “sem lágrimas nem dor. A
não ser para ela mesma”. Sendo assim, passados cinquenta
anos de sua viagem para “as esquinas dos astros”, buscamos o
seu rosto na sua obra e nas palavras daqueles que a conheceram e tiveram a alegria de desfrutar de sua companhia.
Vento
Sul deixa evidente o amor de Carmélia pela escrita: “E escrever, senhoras e senhores, ainda é a única coisa que consigo
fazer muito bem neste mundo de meu Deus, — modéstia
à parte. E isso eu aprendi a fazer assim mesmo, por minha
conta e risco, sem que ninguém me ensinasse”. A cronista
produziu no que chamou sua “tendinha de trabalho”, — onde
“nos respeitam e às nossas ideias” —, o que denominou sua
“vida operária, responsável por alguma parte desta engrenagem maravilhosa que é uma oficina de jornal”.
A relevância de Carmélia no cenário cultural e jornalístico é imensa, conforme destacou Francisco Aurélio Ribeiro, ela “foi a responsável por popularizar a crônica escrita por mulheres no Espírito Santo”. Amylton de Almeida, em
uma reportagem no jornal A Gazeta, declarou que devia a
Carmélia “a primeira oportunidade na imprensa, em 1966,
quando essa profissão dificultava o ingresso de certas pessoas”. Falamos aqui de um tempo de profundas mudanças
no jornalismo local “extremamente conservador”. Marien
Calixte, personagem de relevo na história no jornalismo capixaba, relatou que a discriminação fazia com que “pessoas
como Amylton de Almeida e Milson Henriques, que eram
tidos como homossexuais, até por causa da sua própria fisiologia social, quer dizer, eles eram boêmios, pessoas metidas
em teatro, literatura, etc.”, fossem estranhadas nas redações.
Calixte destacou, ainda, que “a discriminação se estendia
também para o gênero feminino”, e que perguntavam como
“esse tipo de gente” havia conquistado espaço profissional.
Carmélia escreveu na crônica “Notícias sem tempo da minha cidade”: “Quem não quiser concordar, que se dane, [...]
quem não estiver a fim de sintonizar direitinho com o que se
faz aqui, tenha a bondade de não ficar pichando a gente pelas
costas não. [...] Acabamos de nascer para esta cidade que é
um mundo”.
Os anos de 1960 produziram grandes transformações
sociais, conforme destacou Francisco Aurélio Ribeiro: “o
acirramento da luta feminista com a criação do Women’s Lib,
nos EUA, e do Movimento de Libertação das Mulheres, na
França, em 1968. Dentre as reivindicações do feminismo estavam: direito ao aborto, contracepção livre e gratuita, igualdade de salários para o mesmo trabalho, defesa e informação
das mulheres sobre seus direitos, luta contra a opressão familiar, que limitava o papel da mulher ao de esposa e mãe. No
Brasil, o movimento foi cerceado pela ditadura militar, que
impôs a censura e a perseguição aos intelectuais e políticos”. Variadas passagens mostram Carmélia se insurgindo contra o provincialismo da ilha e afirmando que,
se há nela alguma pretensão, é a de ser “justa, natural e única”, em contraposição aos “enfeitados e esnobadinhos”, o que
considerou um “hábito tradicional de muita gente” na ilha de
Vitória”. Carmélia não ligava para falatórios, foi uma mulher simples, que valorizou a essência, pouco se importando
com as aparências, e é sabido que a autenticidade cobra o seu
preço.
Variados tipos de violência ameaçam as mulheres, indiferentes a endereço, raça, cor, classe social, escolaridade,
profissão. Entretanto, sabemos também que os impactos dessas violências diferem com relação as suas vítimas, a partir
de marcadores sociais como gênero, raça e classe. Carmélia
carregou marcadores de diferença significativos, — mulher,
negra, pobre e LGBTQIA+. Para Kátia Fialho, a cronista “imprimiu em sua escrita uma “ruidosa” (no melhor dos senti
dos) forma de (r)existência. Do lugar de fala que ocupou no
mundo tendo um corpo negro, gordo, totalmente fora dos
padrões determinados por uma sociedade altamente conservadora – que ela apelidou de TFC (Tradicional Família Capixaba), ela não precisou empunhar e tremular uma bandeira
de luta por respeito, pois a sua própria presença no universo
do jornalismo, da boemia e da escrita, de forma precursora
e altamente irônica, provocativa e ‘subversiva’ a destacavam
como uma mulher à frente do seu tempo, que carregava em
seu modo tão peculiar de viver a essência da diversidade”.
Carmélia viveu desafiando costumes, ela foi uma das poucas mulheres em Vitória a usar
calça comprida e, a esse respeito, a cronista declarou: “Não
troco o conforto das minhas calças compridas e surradas por
nada deste mundo”. Reinaldo Santos Neves perguntou em “Muito além do Milk Shake”, “Quem foi Carmélia Maria
de Souza? O escritor, que conviveu com Carmélia, traz à luz
uma imagem de mulher afastada de “joias, adereços, maquiagem”, “com jeito de homem, com mania de usar sempre calça
comprida e de viver sempre acompanhada por homens, sendo que, nos seus últimos dias, tinha como companheira dos
últimos anos ‘a famosa bengala’ e, pontual, usava um relógio
de pulso para não se atrasar nos compromissos. Ambição?
Nenhuma”. Carmélia não se deixou definir como “inferior”
e caminhou com altivez na contramão do ideário feminino
de sua época, respondendo as asperezas da vida com as armas de que dispunha: HUMOR E IRONIA.
A cronista escreveu: “Descobri que sou bárbara, dona de um estilo verdadeiramente universal, preciso urgentemente me mandar para
Guanabara, pois Vitória não está à altura de receber minha
genialidade, nem por aqui haveria horizontes dignos e devidamente alargados onde eu pudesse caber. A mim me cabe,
portanto, dar uma banana para todos vocês e me mandar de
mala e cuia para o Rio de Janeiro. Lá eu não terei a menor
dificuldade em desbancar o Rubem Braga, nem em botar no
maior chinelo o Carlinhos de Oliveira”. Capixabas entenderão!
A cronista conseguiu desvelar de forma irônica os valores da sociedade espírito-santense, desafiando a ideologia
dominante e, mesmo que o slogan “Esta ilha é uma delícia”,
popularizado por ela, esteja imantado de ironia, a cronista
colocou o seu território, — a ilha de Vitória — no centro do
[seu] mundo, como um lugar singular e único.
A ironia é um recurso narrativo que requer cumplicidade entre o produtor e o destinatário da mensagem, é fácil
constatar que entre Carmélia e seus leitores existia esse entendimento, o que mostra que a cronista conseguiu desenvolver
um jeito próprio de se comunicar com o povo capixaba.
Amylton de Almeida relatou que Carmélia não sobreviveu aos anos 70, mas que a cronista conheceu pela primeira vez o reconhecimento profissional, “trabalhando como redatora anônima na redação do jornal O Diário, depois de ter
feito da crônica assinada o seu paraíso pessoal”. Esse relato
dá a entender que a cronista experimentou um jeito diferente
de se expressar, literariamente, escrevendo no anonimato. A
história mostra que, em diferentes épocas, muitas mulheres
ocultaram a autoria de seus textos ou escreveram sob a máscara do pseudônimo.
É sabido que a inserção da mulher no campo do discurso foi uma conquista nada fácil. Francisco Aurélio Ribeiro
destaca: “esta deve ser vista juntamente com a marginalização
a que foram submetidas pela sociedade machista e falocrata
até muito recentemente, ao lado dos homossexuais, crianças,
idosos e dos étnica e racialmente discriminados: negros, ciganos, curdos, dentre outros”. Os primeiros jornais
do Espírito Santo não foram campos elísios para as vozes da
alteridade, ao contrário, eles serviram a determinados grupos de homens da elite e albergaram ideologias conservadoras do período colonial, depois, continuaram atuando em
prol das novas formas de poder. Francisco Aurélio Ribeiro
aponta que, no século XX, houve um “reposicionamento da
mulher na sociedade, a discussão do seu papel social, a sua
profissionalização”, e destaca o pioneirismo de Haydée Nicolussi (1905- 1970) e Lídia Besouchet (1908-1989) como
colunistas, em jornais e revistas da época.
Uma visada histórica mostra que o voto feminino foi
constitucionalmente garantido em 1934. O Estado Novo
(1937- 1945), estabelecido por Vargas através de um golpe
de estado, dificultou muito os avanços da pauta feminista e,
especialmente a vida das militantes, foram tempos de repressão. A redemocratização, em 1946, permitiu que às mulheres
voltarem a se organizar em coletivos. No Espírito Santo, em
1949, foi fundada a Academia Feminina Espírito-santense de Letras (AFESL). Carmélia demonstrou interesse em ingressar na agremiação, mas a sua entrada não foi vista com bons
olhos, possivelmente pela sua vida extemporânea. No ano
de 1992, buscando retratar a injustiça, a instituição tornou-a
patrona da cadeira de número 30. A primeira ocupante dessa
cadeira foi Marzia Figueira (1938-2000), que segundo Ribeiro era “oriunda de família da elite” e teve grande destaque
no cenário jornalístico capixaba, atuando por trinta anos.
Embora ambas tenham produzido na mesma época e fossem
humanistas, a escrita de Carmélia e de Marzia diferiam, pois,
Carmélia escrevia ancorada pelos valores da contracultura, e
Marzia produzia crônicas mais conservadoras.
Carmélia transitou com determinação nesse cenário
jornalístico e literário, levando para o jornal, alguns deles de
grande circulação, temas que encontraram ressonância em
diferentes grupos, assim, com o passar dos anos, ela se consolidou como uma cronista implicada com a ótica da diferença. O jornalista Álvaro Silva relatou que “até o início da
década de 1970, não existia imprensa profissional, eram pessoas que trabalhavam nas redações de jornal depois do expediente, era médico, professor, funcionário público, e quando
ele terminava o expediente ia para jornal ganhar mais um dinheirinho. Segundo Silva, Carmélia não tinha formação [acadêmica] como
jornalista, tinha formação como gente, ela foi uma intelectual pura, que viveu a vida como ela deveria ser vivida. Por
que ela era discriminada? Porque ela vivia, e tinha uma vida
que, na época, era chamada de libertina. Ela era uma pessoa
pura, sabe o que é uma pessoa pura? A pessoa que não tem
satisfação a dar a ninguém, ela era... não sei como classificaria Carmélia hoje, sei lá, não sei”. Álvaro relatou, ainda, que
Marien Calixte lhe contou um episódio no qual Carmélia
chegou para ele e disse: “A primavera chegou uma semana
antes em Vitória, está na Praça Costa Pereira, em uma flor
que só eu vi”. A partir dessa confidência, Calixte passou a
chamá-la de “a mulher que descobriu a primavera”.
(Renata Bomfim. Trecho da obra Carmélia Maria de Souza, desesperada e lírica).