20/11/2024

Meu aniversário vegano (Renata Bomfim- 21/11)

 


No dia 21/11 completo mais uma primavera.

Há alguns anos venho pedindo a amigos e leitores (dos meus livros e do Letra e fel) que me presenteiem não comendo carne no dia do meu aniversário. Esse é realmente um presente que recebo, me deixa muito feliz. Recebo sempre retorno de pessoas que toparam o desafio. O vegetarianismo é uma escolha pessoal, algo que deve vir do coração como uma certeza. No meu caso, posso afirmar que deixar de infringir tanta dor aos animais foi um passo para a felicidade.

Muto obrigada a todos e todas pelo carinho.

Renata Bomfim

17/11/2024

Celebração do cinquentenário de Carmélia Maria de Souza e Caderno de resumos do XXVI Congresso de Estudos Literários/ UFES.

 

Carmélia Maria de Souza (1936-1974)


Há alguns anos venho escrevendo sobre Carmélia Maria de Souza. Em 2008 publiquei o ensaio "Carmélia Maria de Souza, a cronista do povo; em 2016, Amor e humor em Carmélia Maria de Souza e, em 2022, a cronista tornou-se objeto de minha pesquisa de pós-doutoramento, na UFES. No dia 21 de novembro de 2024 (dia do meu aniversário), vou apresentar os resultados parciais dessa investigação no Congresso de Estudos Literários. Segue o caderno com os resumos.

Acesse o caderno de resumos

XXVI CONGRESSO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: PPGL/UFES, 30 anos de fundação e 25 anos de reconhecimento (Programação-2024)

 

O Programa de Pós-Graduação em Letras da Ufes: 30 anos de fundação e 25 anos de reconhecimento pela Capes (1994-2024) 
 21 e 22 de novembro de 2024, 
Campus Alaor de Queiroz Araújo (Goiabeiras)


  O XXVI Congresso de Estudos Literários – CEL do Programa de Pós Graduação em Letras – PPGL da Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes, neste ano, volta-se para a própria história, desenvolvimento, legado e perspectivas atuais e futuras, no período de 1994 a 2024 (sendo 1994 o ano de fundação e 1999 o ano de reconhecimento pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes). Homenageia e agradece, na pessoa dos membros da Mesa de Abertura do evento – composta pelos ex-professores Alexandre Moraes e Paulo Roberto Sodré – todos aqueles colegas que constituíram nosso corpo docente ao longo dos anos, formando pesquisadores e levando à defesa orientações de dissertações e teses. Entre tantos ex-professores, além dos já citados, foi possível recuperar, nos arquivos atualmente disponíveis, os seguintes: Adélia Maria Miglievich Ribeiro, Bernardo Barros Coelho de Oliveira, Deneval Siqueira de Azevedo Filho, Ester Abreu Vieira de Oliveira, Evando Nascimento, Fernando Mendes Pessoa, Francisco Aurelio Ribeiro, Gilvan Ventura da Silva, Jaime Ginzburg, Jorge Luiz do Nascimento, Lino Machado, Luís Fernando Beneduzi, Marcelo Paiva de Souza, Olga Maria Machado Carlos Soubbotnik, Paolo Spedicatto, Paula Regina Siega, Pedro José Mascarello Bisch, Rafaela Scardino, Raimundo Carvalho, Stelamaris Coser e Telma Boudou. A equipe organizadora, desde já, se desculpa por alguma eventual lacuna cuja documentação digitalizada e analisada até o momento não pôde sanar. O evento inclui, ainda, na programação, uma singela rememoração e homenagem a algumas pessoas que foram fundamentais no percurso, tais como: Francisco Aurelio Ribeiro (ex-professor, fundador do PPGL/Ufes e segundo coordenador, após a coordenação inaugural de Geraldo da Costa Matos, in memoriam); Jurema de Oliveira (ex-professora, fundadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Africanidades e Brasilidades – Nafricab e proponente da primeira política de cotas étnico-raciais, in memoriam); Leni Ribeiro Leite (atual professora, primeira mulher coordenadora, exerceu dois mandatos e foi uma liderança fundamental para que o PPGL/Ufes obtivesse pela primeira vez a nota 5 junto à Capes, que o projetou como um programa de excelência acadêmica nacional); Reinaldo Santos Neves (ex-técnico em assuntos educacionais, escritor, pesquisador e tradutor, fundador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Literatura do Espírito Santo – Neples e criador da série de eventos e livros Bravos Companheiros e Fantasmas de estudos sobre o autor capixaba); Santinho Ferreira de Souza (membro da equipe de fundadores do PPGL/Ufes e ex-diretor do Centro de Ciências Humanas e Naturais – CCHN, que apoiou o Programa nos seus primeiros anos); Wilberth Salgueiro (atual professor, coordenador por três mandatos, autor da proposta apresentada ao Aplicativo para Propostas de Cursos Novos – APCN da Capes para o reconhecimento e autorização para início de funcionamento tanto do mestrado quanto do doutorado). Ademais, o XXVI CEL conta com mais de 30 comunicações científicas distribuídas nos seguintes eixos temáticos: Estudos sobre a constituição do PPGL/Ufes (fundação, desenvolvimento, atualidade, perspectivas); Estudos sobre a contribuição do PPGL/Ufes na formação de escritores, pesquisadores, professores, tradutores e outros profissionais da área; Estudos sobre os impactos e desdobramentos da produção de egressos, discentes, pós-doutorandos e/ou docentes vinculados ao PPGL/Ufes no plano regional, nacional ou internacional; Estudos sobre as dissertações e teses defendidas no PPGL/Ufes; Estudos sobre os livros e periódicos publicados pelo PPGL/Ufes; Estudos sobre os eventos organizados pelo PPGL/Ufes; Estudos sobre os núcleos, linhas e projetos de pesquisa do PPGL/Ufes; Estudos sobre a Literatura do/no Espírito Santo e sobre o sistema literário capixaba em correlação com o PPGL/Ufes; e Projetos de pesquisa, de dissertação e de tese atualmente em andamento no PPGL/Ufes. Por fim, o evento que marca a comemoração dos 30 anos de fundação e dos 25 anos de reconhecimento do PPGL/Ufes encerra com uma mesa-redonda integrada por quatro dos cinco vencedores do V Prêmio Ufes de Literatura, sob mediação da doutora egressa do PPGL/Ufes e atual servidora técnica em assuntos educacionais junto à Editora da Ufes (Edufes), Fernanda Scopel Falcão; essa mesa convergirá no evento oficial de lançamento dos livros premiados, no dia 22 de novembro de 2024 à noite, no Teatro Universitário, em uma atividade em parceria com a Edufes e a Secretaria de Cultura da Ufes. Trata-se do reconhecimento e incorporação de modalidades de produção de saber no âmbito dos Estudos Literários que, historicamente, não eram chanceladas oficialmente; nesse sentido, tal escolha, por parte da organização, aponta para o presente e o futuro, já que a fundação da linha de pesquisa Literatura: Escrita Criativa, Tradução e Ensino (assim como a reativação da linha de pesquisa Literatura e Outros Sistemas de Significação) é uma aposta recente, nascida de demanda posta pelos próprios discentes, docentes e egressos, a partir das atividades da Comissão de Autoavaliação e Planejamento. A Comissão Organizadora agradece o apoio do CCHN e da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação – PRPPG; do colegiado, da secretaria, da coordenação; do corpo docente e discente; dos egressos; dos convidados, dos homenageados e dos monitores; e de todas as pessoas que enviaram suas propostas de comunicação e que assistirão à programação. Agradecemos também aos órgãos de fomento (Capes, CNPq e Fapes) que têm sido fundamentais à manutenção e continuidade de nossas atividades. Espera que o evento seja um momento de reencontro do Programa consigo mesmo, com seu passado e seu presente, visando ao futuro. Deseja a todos saberes renovados e reflexão, celebração e afeto ao longo desses dois dias.
omissão organizadora:

Organização: Andressa Zoi Nathanailidis, Arlene Batista da Silva, Gaspar Leal Paz e Maria Amélia Dalvi.

12/11/2024

LUZES PARA FREDA JARDIM, MÃE DO MOSAICO BRASILEIRO (POR RENATA BOMFIM)


Freda Cavalcanti Jardim.

 

“Quaisquer que fossem as coisas que pudessem aparecer e desaparecer, o que aqui se encontra é bem sólido. Aqui, podia-se dizer àquelas luzes deslizantes, àqueles ares tateantes que respiram e se curvam sobre o próprio leito, aqui vocês nada podem tocar e nada podem destruir." (Virginia Woolf- Viagem ao Farol).

O ser humano experimenta variados nascimentos. Nascemos no desejo, — mesmo que inconsciente — dos pais, e nos tornamos carne. Depois deste, outros nascimentos se seguem em um processo de humanização permanente da pessoa. Seguindo essa ideia, morremos também simbolicamente e variadas vezes , até que um dia os olhos se fecham de vez, acompanhados pela última respiração, mas, esse ainda não precisa ser o fim, pois, podemos ser revividos pela ação salvadora da memória. A morte verdadeira e definitiva, acredito eu, chama-se ESQUECIMENTO. 

O filósofo Henri Bergson, ao refletir sobre o tema, descreveu a memória como um fenômeno capaz de prolongar o passado no presente. Tentarei fazer como Ariadne, personagem mitológica, e seguir um fio da minha história que me trouxe até onde estou hoje. Bordadeira e mosaicista que sou, não posso deixar de pensar que existe uma certa proximidade entre a arte têxtil e o seu mundo de linhas, cordas, tramas e nós com a arte do mosaico. Ambas são técnicas afeitas ao agrupamento e apontam caminhos estéticos para a fragmentação e o estilhaçamento das estruturas. O poeta Haroldo de Campos dedicou uma poesia a esse processo arquetípico que (re)une as duas pontas do fio da existência: Se/ Nasce/ Morre nasce/ Morre nasce morre/ Renasce remorre renasce”. Embalada pela cadência desses versos, lembro que experimentei um nascimento significativo em um dia ensolarado, quando era estudante de artes plásticas na UFES. Antes desse dia, recordo ter olhado várias para o teto da sala de aula e me perguntado: o que estou fazendo aqui? Mas, nesse dia, o sol brilhou diferente. Ao vaguear pelo IC-3, no Centro de Artes, encontrei uma senhora falando sobre a sua obra, era a Freda Cavalcanti Jardim (1926-2000). Sentei-me para escutar e fui capturada pelo brilho translúcido das ágatas, citrinos, cristais brancos e amarelos, — joias-mosaico —,  e por aquela mulher que fez da sua vida uma obra arte. Saí dali certa do caminho que gostaria de percorrer como artista e que eu gostaria de me tornar uma MOSAICISTA, assim como ela. 

Renata Bomfim criando um mosaico luminoso.

           Foi a partir desse encontro que nasci para uma existência que me acompanha como devir. Além de estudar artes, passei a participar de exposições e depois, novas experiências me levaram para o campo da saúde mental, literatura, meio ambiente, e a identidade foi fluindo com o passar dos anos. Antes de tudo, sinto que me tornei alguém de quem eu gosto, aprendi a cuidar dessa que sou com respeito e tudo o que se formou ao meu redor passou a ser uma construção nova, uma vida imaginada que foi se tornando realidade. Não que eu fosse nada, mas, antes desse nascimento social e espiritual, era assim que eu me sentia nos círculos fechados e oprimidos da minha vida. Esse processo de humanização permite que enxerguemos o valor de cada etapa da vida-morte-vida, mesmo aquela que consideramos dolorosa e sem sentido. Enfim, (re)nasci nesse dia ensolarado de palestra musiva e serei eternamente grata à mestra e amiga Freda Cavalcante Jardim por isso. Depois desse primeiro contato com universo do mosaico, eu busquei me aproximar da professora. Comecei pegando todas as matérias que ela ofereceu no semestre. Certo dia, vasculhando uma pilha de azulejos, refugos de uma obra na UFES, Freda me viu e reconheceu como sua nova aluna. O que você está fazendo aí? Ela perguntou. Respondi que estava “catando uns cacos” para fazer um mosaico. Lembro que a professora sorriu e disse: “vem comigo, vamos fazer esse mosaico na minha casa”. Chegando lá, ela me deu todas as condições para criar a primeira obra arte, o Sol de Gaudí. Aos poucos passei a frequentar semanalmente a residência e foi se construindo uma amizade que se desdobrou em compartilhamento de experiências, histórias, exposições e muita criação.

O Sol de Gaudí (Renata Bomfim)

       Freda foi muito antenada com a crítica de arte e tinha obras de variados escritores. Se não me engano, era o Ernst Gombrich que ela queria desafiar para um debate, pois, divergia de alguns pontos da sua obra. Que privilégio ter convivido com uma artista inspiradora como Freda. Tanto eu, quanto as minhas colegas do mosaico, sempre saíamos de sua casa com planos para novos projetos. Era comum Freda convidar os alunos para estar com ela em momentos de sua criação, lembro de ter quebrado muito mármore e granito, de misturar cimento para as bases do mosaico, enfim, oportunidades de aprendizado que extrapolavam os limites da universidade.

    No ano de 1995, Freda doou à UFES o COMETA ESPERANÇA, um mural luminoso que foi instalado no prédio da Reitoria. Tenho a felicidade de ter participado da instalação dessa obra, juntamente com o  Bené, querido e saudoso amigo Benedito Simões, que era o braço direito dos alunos no Centro de Artes e quem fazia toda a parte estrutural e de instalação dos mosaicos para Freda. Tinha também o Tuca, que ajudava bastante a Freda com a instalação dos mosaicos. Participaram da execução do Cometa da Esperança, sob a orientação de Freda, as colegas de classe: Cláudia Felix, Heloisa Galvão, Renata Carminati, Roszi Graci Simões, Joelma Celin, Áurea Carvalho, Valentina e Mírian. Cada aula era uma descoberta, esse foi um tempo de variadas experimentações para todas nós.

Montagem do Mosaico “Cometa da Esperança”, na Reitoria da UFES.

A minha graduação aconteceu em torno do mosaico e, quando estava chegando o final do curso, realizei o TCC sobre as Joias-mosaico. Além de Freda, que foi minha orientadora, estiveram na banca o professor e mosaicista Jeveaux e a professora e ceramista Marlene Tejada. Nunca me esqueci de Freda. O silêncio em torno do seu nome sempre me incomodou e, no ano de 2022, quando fui convidada para integrar a Academia de Letras e Artes de Marechal Floriano (AFHAL), indiquei-a como Patrona da cadeira que ocuparia, de número 30. Outra homenagem foi a criação de um jardim com cristais cor de rosa, batizado como "Jardim de Freda", na RPPN Reserva Natural Reluz, Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (UNESCO), da qual sou criadora e gestora. 

"Jardim de Freda", na RPPN Reserva Natural Reluz, Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica/UNESCO.

UM SOPRO, UMA SAUDADE...

Perder Freda tirou o nosso chão, pois, além desse desaparecimento inesperado da nossa mestra e referência, estava em andamento a organização do primeiro Congresso Internacional de Mosaico na América Latina. Esse evento era capitaneado pela Associação Internacional do Mosaico Contemporâneo (AIMC), do qual Freda foi uma das fundadoras e, recentemente, havia sido eleita presidenta. Na sua última viagem à Itália, Freda voltou com a saúde fragilizada e, infelizmente não resistiu. Dessa forma, o evento acabou sendo levado adiante pelos mosaicistas que ela formou e pela UFES, entre eles artistas mais experientes como Rosana Paste e Celso Adolfo. Tenho a alegria de ter integrado esse grupo e vivido esse momento único para o mosaico Latino-americano. O evento foi emocionante e todo dedicado à Freda. O Congresso aconteceu em 2002, no Teatro da UFES e no Museu de Artes do Espírito Santo (MAES).

No dia do passamento de Freda eu ia visitá-la depois da aula, cheguei a ficar parada na portaria da universidade decidido se ia ou não, mas lembrei que tinha umas pendências para resolver em casa e deixei para visitá-la no dia seguinte. Fiquei triste com a minha decisão, mas, depois compreendi que algo se processava naquele momento e que não era para eu estar ali. Chegando à noite eu não conseguia dormir e passei a madrugada fazendo várias coisas, — lendo, escrevendo, lavando louça — e, num determinado momento, uma rajada de vento entrou pela janela, um sopro forte que me atingiu de forma diferente. Na época eu ainda não era espírita, depois eu compreenderia melhor o fenômeno. Por volta das cinco da manhã recebi um telefonema com a notícia do falecimento e soube que aquele vento era um “adeus”. A mãe de Freda, Dona Isis, ser humano lindo que acolhia as visitas com longas conversas, bem idosa, viu a filha ser enterrada. O cortejo foi ao som da cantiga “se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar com pedrinhas de brilhante, para o meu amor passar”, respeitosamente cantada baixinho pelos presentes.

Antes de falecer, Freda me contou que estava conversando com um advogado para criar uma fundação e transformar a casa em um museu do mosaico. Ela havia comprado o terreno ao lado do imóvel e construído um galpão que seria a escola e residência artística. Ela desejava que ali acontecessem oficinas para a comunidade e que fosse um espaço de criação para os artistas.  A educação pela arte sempre foi algo valorizado por Freda. Recordo que ela pretendia deixar esse patrimônio para a humanidade, mas gostaria que ele ficasse aos cuidados de suas alunas, entre elas eu e Mírian Pestana, que também foi muito presente na vida de Freda. 

Para quem não sabe ou não ouviu falar sobre Freda, ela é considerada a "MÃE DO MOSAICO BRASILEIRO". Artista contemporânea que fez formação na Itália, mais especificamente em Ravena. Além do mosaico, Freda dominava outras artes como a tecelagem, o vitral, a cerâmica, enfim, era uma artista plural. Ela contava que adorava dançar e falava também sobre o tempo em que foi casada com um italiano que, se não me engano, também era artista. Um acontecimento que marcou a vida de Freda foi um acidente que ela sofreu, se não me falha a memória, em frente à UFES: foi atropelada. O ocorrido a debilitou bastante, tornando difícil a locomoção e causando muitas dores. Desde então, a artista precisou usar moletas. O sentar e o levantar já não era algo fácil por conta das sequelas do acidente e, assim, eu buscava ajudar como podia, com coisas simples como pegar um copo d’água, um livro, ou o que ela precisasse. Para a minha surpresa, Freda me convidou para organizar a sua biblioteca. E que ciúmes ela tinha dos livros. Graças a esse serviço tenho a dimensão do seu acervo  livros sobre o mosaico, História da Arte, técnicas artísticas variadas, alguns volumes bastante raros.

Freda foi uma mulher de grande força espiritual e o acidente não a impediu de continuar trabalhando e realizando outras atividades, ela viajava, visitava exposições, fazia palestras, enfim, não se deixou limitar. Vale destacar que, mesmo aposentada, Freda continuou dando aulas. Foi uma professora muito respeitada e, de certa forma, ‘temida’, pois, defendia com garra seus ideais e lutava pelo fortalecimento do departamento, especialmente quando sentia que tentavam reduzir a oferta de modalidades artísticas para os estudantes. NATURAL DE FORTALEZA, NO CEARÁ, FREDA ESCOLHEU O ESPÍRITO SANTO COMO LAR E SEU PLANO ERA FORTALECER E DIFUNDIR A ARTE PRODUZIDA EM TERRAS CAPIXABAS.

O mosaico, que por vezes foi, de forma preconceituosa, descrito como uma arte menor, ganhou  grande projeção com a artista, e eu acredito que Freda está para o mosaico, assim como Rubem Braga está para a crônica. Nasceram da imaginação e das mãos da mosaicista importantes murais, esculturas, joalheria e mosaicos luminosos. Há um mural de Freda na ONU, outro na entrada do Itamaraty, em Brasília, em vários prédios da nossa capital e espalhados pelo mundo.

Painel de Freda jardim intitulado “A Terra é Azul”, de 1967, localizado no Ministério das Relações Exteriores do Brasil.

FREDA CRIOU UMA LINGUAGEM ÚNICA NO ÂMBITO DO MOSAICO CONTEMPORÂNEO

Quando concluiu os estudos na Itália e voltou para o Brasil,  a artista  que havia estudado com mestres do mosaico bizantino —, não encontrou por aqui pastilhas e materiais tradicionais para a produção dos mosaicos, ademais, a importação era cara e demorada. Sendo assim, ela passou fazer experimentações tanto com suportes, quanto com materiais como cristais, granitos, mármores, vidros, conferindo a sua obra uma organicidade bem brasileira.

Poucos sabem, mas Freda também era poeta, muitas vezes ela leu para mim textos que nasciam, tanto do processo de feitura das obras, quanto do impacto de vê-las concluídas. Os versos eram escritos no papel, mas também pintados atrás de algumas obras. Embora trabalhasse com a matéria bruta,  a pedra , e se inspirasse na diversidade da natureza, a artista possuía uma visão estética ligada ao Cosmo.  Animais de hábitos noturnos, exerciam sobre ela um grande fascínio, tanto que na parte frontal de sua residência, há um mosaico enorme, translúcido, intitulado “Bichos da noite”.

Freda Jardim elaborando o mosaico “Bichos da noite”.

A CASA DE FREDA

 A casa de Freda era um mundo e abrigada coleções de livros e obras de arte. A artista contava que seu pai tinha sido diplomata e que ela viajou por vários países em sua companhia. As marcas dessas vivências e viagens ela imprimiu no seu lar, a residência parecia uma galeria viva e pulsante. A arte têxtil também recebia grande atenção por parte de Freda, ela estava presente nas jóias, mas também em grandes paineis que ela tecia com linhas coloridas. Freda costurava as próprias roupas à mão, o que fazia com que  seu guarda-roupas também fosse bastante incomum. Na época que estudava estamparia, pintei vários tecidos em aquarela que ela transformou em saias e blusas. Costumávamos ficar longo tempo ‘mosaicando’ na grande sala que tinha no centro uma escada, cujo corrimão era de madeira retorcida, uma obra de arte encomendada especialmente para o local. Essa escada era a menina dos olhos da mosaicista. Entre as paixões da artista também estava a culinária. Freda amava cozinhar pratos de diferentes países e tinha uma estante imensa só sobre o assunto. Eu almoçava vários dias da semana na sua casa e lembro que uma de suas sobremesas preferidas era banana da terra cozida e gelada, com açúcar e canela. Em torno da arte e da comida, Freda reunia os amigos para longas conversas.

A mosaicista não teve filhos biológicos e, assim que faleceu, os seus bens foram transmitidos para os familiares. Desde então, eu e outros amigos mosaicistas não tivemos mais acesso a casa e nem as obras da artista. O luto foi difícil para o nosso grupo e, aos poucos, cada um foi tomando o seu caminho profissional e acabamos nos afastando. Como moro no bairro vizinho à Pedra da Cebola, passei os anos vendo a casa pelo lado de fora, sempre fechada, nunca observei ali nenhuma movimentação. Percebo agora que se passaram quase vinte e cinco anos.

O CAOS

No dia 08 de novembro recebi uma mensagem via whatsapp avisando que a casa de Freda havia sido invadida e depredada. Chamei a polícia e corri para ver o que estava acontecendo. Quando cheguei já era tarde, quase a totalidade do que havia dentro da casa havia sido roubada e tudo estava revirado. Começamos a buscar o responsáveis legais pelo patrimônio, ligando para amigos, ex-professores da UFES, mas sem sucesso. Quando cheguei na casa de Freda, ainda havia algumas pessoas em situação de rua na área do galpão e, depois, veríamos, colchões espalhados indicando que a casa esteve sendo usada a mais tempo. Não tive alternativa senão entrar na casa para ver a situação, até para poder, na primeira oportunidade, relatar para as autoridades e familiares sobre o ocorrido e ver se algo da memória de Freda poderia ser resgatado. 

O cenário era DESOLADOR. Ficamos um tempo em frente à casa, evitando que outros bens fossem levados, dois moradores da Pedra da Cebola, integrante da Associação do Bairro também estavam lá tentando resolver a situação.

                                         Imagem da frente da casa, tirada do local onde havia o portão.

Chorei muito enquanto um filme se passava na minha cabeça. O portão não estava mais lá, fora roubado na noite anterior, juntamente com tudo de metal da casa: lustres, tampa de cisterna, panelas, — Freda tinha panelas do mundo inteiro, inclusive woks originais—, objetos de decoração, pias, esquadrias, armários e todas as estantes, o que fez com que os livros ficassem jogados de uma maneira inacreditável. A biblioteca maior, que fica nos fundos da casa, foi invadida também pelo telhado, o que abriu um espaço considerável entre as telhas, deixando as obras expostas às intempéries. Acredito que ainda seja possível, garimpando, salvar documentos e outros itens de valor cultural e histórico na casa.

No Galpão, tudo estava revirado, as pedras jogadas, slides, cartazes, documentos etc. Na parte superior da casa havia dois quartos, um deles tinha objetos de uso pessoal de Freda como roupas, sapatos e coisas de uso da casa. O que restou, estava jogado pisado, entulhado. Tudo o que pudesse ser vendido foi levado. Era difícil até caminhar, porque as gavetas foram jogadas no chão umas por cima das outras, de forma que nem tivemos a oportunidade de saber o que se acumulava pelo chão criando barreiras que impediam a passagem. Na parte de baixo da casa, ao lado de onde ficava a biblioteca de culinária, ficava o quarto de Dona Isis, havia lá um banheiro e duas saletas, foram todas incendiadas e tudo o que havia dentro delas virou cinza.

Fechei os olhos e falei ao espírito da amiga que ficasse em paz, pois, ela fez a sua parte. Mas, e nós, fizemos a nossa? Confesso que senti uma dor no peito pensando que ESSE PATRIMÔNIO ARTÍSTICO E CULTURAL PODERIA TER TIDO UM DESTINO DIFERENTE: sido doado para a Universidade, vendido, emprestado, ou dividido entre as pessoas que gostavam de Freda.

A vida e a obra de Freda atravessam a minha vida, e sei que esse não é um privilégio só meu, pois, a professora tocou muitas subjetividades com o seu devotamento à arte e conquistou muitos e bons amigos.  É certo que, uma hora, a indesejada das gentes bate à porta, mas ela nunca será capaz de cortar esses laços de irmandade. Freda imprimiu amor em tudo o que fez e é por isso que sua lembrança continua viva entre nós e o seu legado permanece. 

Nesse momento, a área do portão foi fechada pela justiça, impedindo novos saques, e se abre um novo capítulo para essa história. Estamos confiantes que o poder público será de grande ajuda para que se defina o futuro do acervo. Na medida do possível, contactei a artista, outras pessoas estão se mobilizando, agora é aguardar. Há um verso de Fernando Pessoa que diz: “morrer é só não ser visto”, então, que os olhos se abram e que estejamos atentos para não sermos mortos pela indiferença e nem esquecido. Luzes para nós!


 

Renata Bomfim - Artista Plástica, mestre e doutora em Letras pela UFES, membro da Academia Espírito-santense de Letras e presidente do Instituto Ambiental Reluz. 

OUTRAS PUBLICAÇÕES SOBRE O ASSUNTO:

 



10/11/2024

Lançamento de livro de crônicas: ANVERSO & VERSO: Pensamentos & Ideias ( autor: Luiz Fernando Schettino)

 

No dia 04 de dezembro de 2024, a partir das 18:30h, no CREA-ES, será lançado o livro de crônicas  ANVERSO & VERSO: Pensamentos & Ideias, de autoria de Luiz Fernando Schettino.

Esse é o décimo quinto livro do autor e busca apresentar uma visão holística da vida, ou seja, uma visão maior e integrada, com base em seus pensamentos, ideias, sentimentos e angústias existenciais. O autor conecta vivências à questões do dia a dia, circunstâncias e questões socioambientais, buscando transformar a sua escrita em contribuição, crítica e inspiração para mudanças, ajudando assim a promover um mundo mais justo, fraterno, inclusivo e sustentável.

No prefácio II, J. Jerry Tononi, Professor reconhecido com notório saber, fica claro que: “Luiz Fernando Schettino é uma pessoa otimista e coerente, sem deixar de considerar a realidade e os desafios. Ele é otimista e coerente porque têm sabido manter-se sentimental, enquanto ao redor tudo nos parece sob o rigor da sequidão dos indiferentes, mas com os pés no chão e sempre atento a sua linha de pensamento e conduta histórica”. Nessa toada, afirma ainda: “Schettino é também um corajoso. Arrisca-se a estar entre poucos. Contudo, na verdade, ele tem consigo uma nuvem de companheiros, entre os bons leitores que saberão valorizar este achado. De fato, os textos que ele nos passa às mãos é um instrumento confirmador da qualidade de sua obra”. Enfim, J. Jerry Tonini afirma: “Precisamos resgatar o que de melhor tem sido dito pelos pensadores. Certamente, o que este livro exala é algo de verdadeiro, porque foi dito com intenso gosto e reflexão sobre a realidade. Boa leitura.

Luiz Fernando Schettino é Professor, Engenheiro Florestal, mestre e doutor em Ciência Florestal, licenciado em Letras (português/Inglês) e Advogado. 


30/10/2024

O CORPO COMO SENDA E CONDIÇÃO PARA O SER (Prefácio- Profa. Dra. Renata Bomfim)

 


O CORPO COMO SENDA E CONDIÇÃO PARA O SER

Prefácio para o poemario 

A Euforia do Corpo, de Anaximandro Amorim

Anaximandro Amorim é advogado e professor, mas, antes de construir um vasto currículo profissional, tornou-se escritor. Foi em 2001 que ingressou no universo literário integrando a Academia Jovem Espírito-Santense de Letras, considerada, institucionalmente, a primeira Academia Jovem de Letras do Brasil. Na atualidade, o escritor é autor de obras que transitam entre a prosa e a poesia e continua atuante no campo cultural integrando várias instituições, dentre as quais a Academia Espírito-santense de Letras.

A leitura inicial de A euforia do corpo me rememorou as ideias de Roland Barthes, para quem a escrita, afastada dos deveres e pressupostos do fazer científico, possui a potência de produzir diferenças, provocar deslocamentos e descentralizar sujeitos e palavras. Barthes nos diz, também, que o corpo vincula-se à escritura por meio do prazer. Foi a partir desse prisma que passei a deleitar-me com a leitura desse poemario e compartilharei com vocês, leitores, algumas sendas por onde passei nesse espaço dinâmico e plural.

Acredito que A euforia do corpo busca implicar os leitores num percurso de ambiguidades — rompendo com obviedades —, a começar pelo título, indicativo de estados abissais do ser, pois, a euforia pode indicar tanto alegria e otimismo quanto o seu oposto, o patológico, bipolar, a euforia depressiva. Jacques Lacan referiu-se à depressão como uma espécie de covardia moral, uma recusa do sujeito frente ao seu desejo. Anaximandro aceitou o chamado interno para refletir poeticamente sobre temas e conteúdos pulsantes e limítrofes. O escritor elegeu o filósofo francês Jean-Luc Nancy, estudioso de Lacan, como interlocutor privilegiado, como poderão observar em mais de duas dezenas de epígrafes. Essa escolha, que julgo ser consciente e bastante adequada, põe em cena o ente delimitador-mor da existência e condição primeira para a materialização de outros corpos: o corpo. A jornada começa com o impulso que arremessa para “fora (ex) do não-ser”. Sob o signo/bússola do desejo, — negado ou vivido às últimas consequências —, o saudável e o que, oprimido no inconsciente busca vir à luz, se comunicam como instâncias afins.

A euforia do corpo desnuda esse ente que nos acompanha do nascimento à morte/desencarne, impondo inquietações, espantos e, em momentos preciosos, nos regala com o maravilhamento e a epifania. Corpo plural e, como podemos observar no poema homônimo à obra, subdividido em três partes, apriorístico. Tomei a liberdade de ler esse poema como se fossem lâminas, ou seja, cartas do tarô. No início, observamos que loucura, magia e desejo constroem uma senda arquetípica, “labirinto sem mapas ou réguas”, que encaminha o leitor para um eufórico “balé

feérico”, onde tomará contato com outra subjetividade. A imagem do Louco, que subsiste nos baralhos modernos como o “coringa”, não tem posição fixa e, livre, transita entre os demais personagens do jogo. O eu poético parte daí, carta de número zero, liberto dos códigos tradicionais, “sem arrependimento, abrindo cordões, correntes e camisas de força”, enfim, “em procura”. “Uma charada que convida a repetir o enigma” está lançada. Chega o tempo da experimentação: O corpo é Amuleto! Na primeira carta do tarô, o Mago, criador e embusteiro, dirige a sua atenção para tudo o que lhe rodeia criando mundos imaginários e “um pacto de mistério”, a partir do qual o eu poético vivenciará o processo de diferenciação necessário à sua evolução, uma espécie de rito de veneração e de delícias que transforma a matéria alheia em uma coisa outra, “colosso”, “Porto aberto, macio e úmido”, “augusto deus pagão” e “objeto de culto/delírio”. Simplesmente, não há como resistir, “O corpo é uma tentação!”, não existem diques que contenham a sua força e nem o seu furor, embora o homem seja “feito de carne, ossos, músculos e vontade”, a qualquer momento “explode o que está (nele) contido”. Percebemos o germe de algo novo, a emergência de uma energia feminina poderosa.

A deriva do corpo é sempre produtiva e, ao desbravar uma Geografia íntima, o eu lírico se depara com “falésias” e “planícies”, repousa no “golfo”, “corpo de fuga”, sempre animado pelo “desejo do perder-se” e “Tendo a adrenalina/ do querer como/ ópio da procura”. Inexiste um manual que aponte saída para as antinomias do desejo, entretanto, o caos enuncia uma nova ordem e, “como monção que tudo destrói/ mas também tudo renova”, e o eu lírico

encontra nessa “geografia íntima”, “em cima,/ um cheiro de porto-seguro/ embaixo,/ um gosto de corpo.” Seguimos acompanhando a evolução dessa subjetividade poética que supera o medo de perder-se, pois crê ser preciso o seu destino: “o território do corpo”. Nessas andanças, o erro deixa de ser falta grave, tornando-se “brincadeira”, e as cicatrizes do corpo tornam-se um convite erótico, “portas semicerradas pelo tempo” cuja chave é outro corpo. Persistem as imagens que sugerem a existência de um código de acesso para todos esses mistérios, e nessa altura do texto, na qual o corpo tornou-se local privilegiado de enunciação, — seja ele um corpo de carne, filosófico ou linguístico —, urge “Buscar o eterno/ no irromper do instante// sabendo-se/ cativo/ no vazio/ do depois”, ou seja, é tempo de desafiar “o estado da matéria”. O eu poético vê-se impelido a “subverter a ordem do mundo,/ virar o macho do avesso/ – criar uma grande confusão!”: “Lilith”. Tomamos contato com a lâmina segunda do tarô: a Sacerdotisa. O conteúdo feminino latente é poderoso, mas, aqui essa imagem deve ser observada a contrapelo, ou seja, ser a carta de número dois não indica subjugação ou inferioridade, antes como ente emergente da sombra do um, vinculada à serpente, mentora da segunda esposa de Adão: Eva. O poema, dedicado a “todas as mulheres do mundo”, desafia o corpo sociocultural e opressor do patriarcado ao apresentar um modelo de entregar desmesurada. O tempo tornou-se propício para que constelasse essa que possui “entre as pernas”/- uma máquina de castração!”. 

A primeira esposa de Adão, Lilith possui um forte conteúdo revolucionário e pode ser encontrada em mitologias de variados países, entre eles as da Assíria, da Suméria, da Babilônia, da Cananéia, da Arábia, da Pérsia, entre outras, escancara o “desvario da criação” revelando a necessidade uma nova arquitetura, a “Arquitetura do Nada”, plantada em um domínio “fértil de símbolos”. Assim, sob o signo da insurreição, nos deparamos com outra personalidade emblemática, o desejado Jacinto, que entra em cena como um “corpo de alívio”, fluido como um “rio soberano” e transbordante, — poeta e amante —, presenciamos, então, a “Soberania do corpo”. Tudo é prazer, “um mundo se põe em delírio”, “dedos” e “língua” são senhas para a penetração, mas ainda há alguma reserva. 

Retorno a Roland Barthes em minhas reflexões. Esse pensador nos diz que a escrita cria um espaço relacional, nem sempre harmonioso, entre o escritor e a sociedade. Acontece ai um embate profícuo que, em essência, busca liberar a literatura de comunicar fatos históricos e de transmitir mensagens, para que possa realizar-se em si mesma: prazer e gozo. 

Na poesia de Anaximandro sinto esse pressuposto em operação, há no seu processo criativo uma bússola que o orienta para que não se desvie do cuidado/compromisso com a linguagem, sempre burilando os poemas, explorando sons e formas e jogando com os sentidos das palavras, como observamos no poema “A Pele. O Pelo” que, anaforicamente, repete cinco vezes a palavra “voo”, ao passo que brinca com as consoantes “p” e “l”. Esse poema ratifica o movimento ascensional ensejado nos poemas anteriores. A pele e o seu “raso”, o pelo, são peças no jogo da sedução e levam o eu poético ao desfrute de um “Acalanto doce” que é “remanso” e “abrigo”, e a possuir um “gosto de eterno”. Tempo de dizer, tempo de dizer-se: “A Boca”. A escritura efetua a linguagem na sua totalidade e deparamo-nos uma poética de hierarquização dos corpos: “imaculados”, “aceitáveis”, “rebotalho”, “transitórios”, todos esses presos à ilusão de serem senhores de si. Avesso do avesso: “o não- corpo” influi, seduz e tenta, espelho no qual o sujeito poético se vê refletido de forma invertida.

Jean-Luc Nancy terá dito que “Um corpo só é fazendo e se fazendo”, dessa maneira, o próximo conjunto de poemas construirá, a partir da “fresta da palavra”, o mundo. O eu poético denuncia: “aquilo que cala,/mata” e a semente que dormitava desperta “feito poema de devir”, semente-ostra gerando pérolas espetaculares, guardadas pelo “segredo-oceano”. No campo da beleza e do “sublime” ressurge o “corpo de alívio”, agora, maturado pelas vivências, ele anseia “apenas o inominado:/ Um casamento de almas” que possibilita “A Humanidade/ Recompor/ A beleza/ Dos dias” e, eis o milagre: “(o corpo inteiro)”.

O movimento circular do texto enseja um reinício, a “queda” torna-se uma espécie de senha para novas viagens e descobrimentos, o corpo torna-se “cordilheira” e o eu poético vislumbra, enfim, o segredo que se escondem por trás da complexidade, “para além do absurdo”: “A dor de máquina do mundo”. O olhar dessa subjetividade peregrina se (re)constrói com a imagem de um embate entre “Nasciso” e “Medusa”, ela percebe então que há beleza no brutal das criaturas, ou melhor, que brutal é a própria beleza. Essa visada que tomou a leitura da obra A euforia do corpo como a leitura da profundeza do ser buscou centelhas de compreensão, de forma nenhuma tentou esgotar o seu significado, até porque a potência da palavra poética nos impede de cometer tal hybris.

Há “segredos” inesgotáveis escondidos “por trás de um silêncio prenhe de signos”, o caminho buscado, agora é o da “alegria”. Mas, esses segredos podem ser acessados apenas por meio da leitura individual, na solidão essencial que emana da obra literária, como diria Maurice Blanchot. Mas, lembre-se sempre da senha: “aquilo que cala/ mata”.

Renata Bomfim
Doutora em literatura, poeta e ativista ambiental
Vitória ES Brasil, Agosto de 2020

28/10/2024

O uirapuru canta, mas quem estará disposto a escutá-lo? Carta para irmã Cleusa Carolina Rody Coelho (Por Renata Bomfim)



Marechal Floriano, ES, 19 de fevereiro de 2021.

Querida Irmã Cleusa Carolina Rody,

    Que a paz de Deus esteja com a Senhora. Aqui do vale de provas e expiações, onde me encontro, elevo os olhos até o horizonte e vejo uma luz tênue e difusa. O coração entoa uma prece ao altíssimo e uma onda de calor inunda o meu corpo. Estranho amor esse que grita ansioso dentro de mim fazendo vibrar as entranhas. Que contradição ser bruta, ácida e ansiar a brandura e pureza do lírio. Talvez, haja pureza dentro de mim, talvez sejamos todos puros quando nos colocamos sob os cuidados do amor: amor-tempo, Irmã.

    Escrevo para que saiba que sempre é lembrada com carinho por aqui, na terrinha, especialmente pela sua amiga próxima no trabalho do bem, a irmã Maria Josefina. A comunidade que leva o seu nome, segue firme e é interessante que o bairro onde ela se encontra se chame Padre José de Anchieta II. Anchieta foi canonizado pelo Vaticano em 2014, e a senhora, em processo de canonização, poderá se tornar a primeira santa capixaba. Interessante, também, a ligação da Senhora e de São José de Anchieta com o Espírito Santo, refiro--me, nesse caso, ao Estado, e às artes. São José de Anchieta fez formação em Letras, em Portugal, antes de vir para o Brasil, ele era um conhecedor do teatro de Gil Vicente. Chegando por aqui, tornou-se dramaturgo, gramático e poeta. A Senhora também tinha inclinação para as letras, pois cursou Letras-alemão na Universidade Federal do Espírito Santo e, fluente em espanhol, inglês, francês italiano e alemão, ajudou a muitos, sobretudo, aos estrangeiros, muitos deles imigrantes sem família, totalmente desassistidos. 

Conversei com o Wanderli e ele disse que os membros da Paróquia estão bem, seguem driblando a crise com e trabalho duro. Irmã Cleusa, preciso dizer que uma pandemia terrível assola o mundo neste momento e que aqui no nosso Espírito Santo, assim como em todo Brasil, é grande a dor e o desespero de quem perdeu amigos e familiares. À reboque nesta tragédia sanitária, vem a crise política e social, desemprego e desesperança. Mas a caridade tem brotado e se fortalecido, e aquele(a) que pode ajudar ampara os irmãos mais necessitados. Sim, o cenário é de crise, a devastação ambiental ameaça biomas inteiros, sob os olhares complacentes e criminosos dos poderosos. 

As comunidades buscam se fortalecer e fazem frente a esse horror, especialmente as comunidades tradicionais e os indígenas apurinãs que a Senhora tanto amou. Irmã, o ser humano esqueceu que é feito de terra, que é húmus e agride a Mãe Natureza de forma vil e inconsequente, parece que perdeu endereço de si mesmo, ele viola a sua pátria interior, devastando o seu mundo íntimo. É o medo, camuflado sob a máscara do ódio, que cega as pessoas para a verdade: somos interdependentes!

Lembro ainda, na minha memória de artista, do dia em que um grupo de homens desgarrados chegou à Capitania do Espírito Santo, vi nos seus olhos a mesma fome que devorava as entranhas dos colonizadores dos paraísos, onde o tempo não existia. Chegaram alterados, buscando riquezas e interpretaram a nudez do índio da pior maneira, julgaram que eles eram pobres e desprovidos de tudo. Que arrogância, não é, irmã? E esse menosprezo transformou-se em desrespeito e eles passaram a cometer variados tipos de atrocidades e violações. Um salto temporal me traz de volta ao século XXI, parece que foram apenas alguns dias, pois pouco mudou.

Falo ao teu espírito-memória, Irmã Cleusa Carolina, como uma amiga muito próxima fala à outra amiga. Busco forças para vencer o destino e me afirmar humanamente, vivendo na poesia. Conhecestes bem a indiferença produtora de marginais e miseráveis da sociedade, é inacreditável que, nessa terra fértil e ensolarada, quase sempre é noite para aquele que passa fome, e que as estrelas ameacem despencar sobre a cabeça dos desvalidos do mundo. A vergonha foi expulsa do seio da sociedade, vive-se como se nada disso acontecesse. Como transformar a revolta em amor-ação? Jesus, o nosso mestre e guia querido, trouxe-nos a lei do amor e pediu que fizéssemos da vida um ato de devoção ao próximo.

Um dia desses tive um sonho. Uma criança brincava correndo por ruas esburacadas e sem calçamento. A despeito dos buracos, ela sorria exibindo o seu vestido de flores amarelas. Assim que acordei, o primeiro impulso foi pedir a Deus que aquela menininha nunca deixasse de sorrir e que a violência e o preconceito não a alcançassem. São tantas meninas e meninos por este Brasil que necessitam de cuidado, de proteção, pão, lar, amor, são os filhos do calvário. A Senhora foi acusada de “acobertar trombadinhas”, quando passou a levar para casa várias crianças que dormiam nas praças. À noite, dignamente acomodadas, elas tomavam sopa quentinha e estou certa de que algo dentro delas se refazia, assim como sinto algo se refazendo dentro de mim, enquanto teço estas linhas.

Sabe, Irmã Cleusa, eu amo gatos. Tive 50 gatos quando morei no morro da Boa Vista. Na verdade, eu tinha seis gatos, mas a notícia de que tinha uma “mulher doida” que amava gatos fez o morro famoso e, literalmente, passou a chover gatos no meu quintal. Por vezes, eles jogavam os gatos por cima do muro, noutros momentos, deixavam eles em caixas no portão, e assim foi, até que completei 50 gatos. Eu, que me restabelecia de um acidente automobilístico, nem tinha tempo de sentir dor e, entre as sessões de fisioterapia, encontrava um jeito de castrar, alimentar, fazer a limpeza do ambiente, essa rotina durou cerca de um ano. Decorrido esse tempo, precisei mudar para um apartamento, mas consegui encaminhar cada um dos gatinhos para a adoção, ficando com os seis gatos que tinha originalmente. Lembro dessa história porque quando amamos, por vezes, somos considerados loucos e nos sobrevêm responsabilidades que, às vezes, não deveriam ser apenas nossas. A Senhora amou os irmãos indígenas de uma forma intensa, ao ponto de envolver-se irremediavelmente com os seus dilemas, muitos deles seculares como a opressão do mais forte sobre o mais fraco. Quando foste para Lábrea, conhecias o tamanho do desafio, a pressão que os latifundiários exerciam sobre a floresta e sobre as populações originárias era de um furor assassino. Mas fostes.

Fecho os olhos e imagino a beleza do pedaço de chão amazônico, único no mundo, com floresta densa, igarapés, lagos. Lutar pelo indígena e pela floresta contra o desmatamento e o extrativismo predatório fizeram da Senhora uma pessoa mal vista por ali. O seu esforço foi contínuo e a sua entrega, até o momento final, foi marcada pela coragem. Sinto, Irmã, um calafrio e o mover das entranhas quando imagino aqueles momentos assombrosos, terríveis, mas sei que nunca estivestes só, o Altíssimo lhe cobria com as suas asas. E hoje compreendo que algumas almas possuem a capacidade de se entregar de forma ilimitada a um ideal e essas almas nos inspiram, então buscamos ser melhores e mais justos: a humanidade é construção e conquista. Bem, voltando aos felinos, antes dos 50 gatos, eu defendia os animais da temível carrocinha. Quando a carretinha da morte passava pelo bairro, eu dava um jeito para que ela não encontrasse os cães de rua, e quando eram pegos, eu me dirigia à zoonose para resgatá-los e para que não fossem sacrificados. Passados alguns anos, esses cuidados se estenderam para os animais silvestres, e hoje eu e o Luiz cuidamos de muitos animais da floresta, especialmente dos macacos-prego-de-crista e às abelhas Uruçu Capixaba, endêmica e ameaçadas de extinção. Aos gatos e cachorros se juntaram os macacos, as abelhas e pássaros, tatus, jacupembas, lagartos, um mundo de vida e de luz que faz parte da Mata Atlântica.


    O que faço é nada, uma gotinha no oceano, mas aquece o meu coração essa ação miúda. Não se trata de seres humanos, são animais, mas eles estão sujeitos à opressão semelhante àquela sofrida pelos nossos irmãos indígenas: a perda de seus lares, familiares, da liberdade e, muitas vezes, da própria vida. Eles são retirados do convívio familiar na mata, caçados, mortos, vendidos, explorados e essa violência é silenciosa, pois, para muitos, eles não importam, “são apenas animais”. Mas, para mim, eles são tudo, são os filhos que não gerei. São os meus filhos! 


    É surpreendente a incapacidade humana de lidar com paradoxos e antinomias. É fato que, ainda hoje, matam e morrem pela terra, mas Gaia não pertence a ninguém, ela pertence a todos os seres, vive-se como se a morte não existisse. Acredito que a finitude é o maior segredo da humanidade a ser descoberto. O indivíduo sabe que a morte virá um dia, mas pensa que não virá para ele e, assim, passa a vida construindo castelos para se isolar, cercado de luxo, explora o (des)semelhante, pois julga-se no direito, por acreditar-se esse ser acima da lei da vida, ou seja, não sujeito à morte. Mas esse indivíduo, um dia, descobrirá que os anos passaram e que ele é o mais pobre entre os pobres, pois possui apenas muito dinheiro. Irmã Cleusa, Jesus alertou para isso, ele pediu que não ajuntássemos “tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam”. Quando seremos capazes de compartilhar os nossos tesouros de amor e de solidariedade? 


    A Mata Atlântica é um bioma que resiste mais de cinco séculos à destruição sistematizada e contínua, mas o pouco que resta dele precisa ser preservado, a pressão é muita. Cantam por aqui os sabiás, saíras das mais variadas cores, tucanos e um passarinho especial entre muitos, o meu Trica-ferro. Dizem que ao serem aprisionados, muitos pássaros entram em processo depressivo, é sabido que suas asas atrofiam, acredito que pássaro na gaiola, canta é de desgosto. Durante esses anos, pude observar que os pássaros que chegam para serem soltos na Reserva Natural Reluz levam um tempo para se adaptarem à liberdade, ensaiam pequenos voos e, somente depois de um tempo, entram para mais longe na mata. Deve doer sustentar por muito tempo o voo após anos de paralisação forçada, então, eles passam um tempo experimentando a si mesmos. É lindo ver como eles ficam batendo as asinhas no galho, como fazem os filhotes que estão aprendendo a voar. Nós somos assim também, precisamos abandonar gaiolas como o egoísmo e a ganância e experimentar as asas da liberdade que Deus nos deu. 


Irmã Cleusa, a Senhora viveu na Amazônia e, pertinho do Rio Purus, os seus olhos se fecharam para esta vida. A Amazônia nos permite vislumbrar o paraíso. Árvores centenárias elevam seus galhos para o céu, como se fossem braços buscando alcançar a eternidade. É milagroso ouvir a melodia que atravessa esse rincão verde-escuro, sentir o perfume das flores mais exclusivas. 


    O uirapuru potente lança o seu grito e não podemos ignorá-lo, o seu grito deve ser o nosso grito! Há 36 anos, a Senhora foi assassinada brutalmente, mas o seu martírio e morte lançam luz sobre a necessidade de que continuemos lutando pela vida, pela democracia, pelo direito de existência do próximo, seja ele humano ou animal. Infelizmente, a desigualdade persiste, muitos irmãos e irmãs se esgueiram pelos becos do craque, vagam como zumbis em busca de uma palavra de amor, de aceitação. Tornamo-nos uma sociedade narcótica e alienada, a percepção da realidade está comprometida e pessoas imaginando que, com armas, promoverão a paz. Aqui na Ilha, o vazio fez da Ponte um trampolim, e das estradas, corredores da morte.


    A Senhora deixou um legado de amor na Missão da Prelazia de Lábrea, testemunhamos o poder da simplicidade e de um coração que se entrega sem esperar receber nada em troca: pobres, presidiários, ribeirinhos indígenas, os mais vulneráveis e sofridos da sociedade encontraram, e ainda encontram, forças no seu exemplo de fé.


    Um dia era o teu aniversário e pediste a Deus, como presente, que pudesses se doar ao mundo, que pudesses “te comprometer com o índio, o mais pobre, desprezado, explorado”, Deus lhe concedeu a graça desejada, desejos de luz. O pássaro mágico continua cantando, convidando todos e todas para as bodas do Cristo Cósmico. A vida verdadeira se reconhece humanamente falível, mas se fortalece no coletivo.


Irmã Cleusa, tenho bordado: flores, pássaros, pessoas, besouros, casinhas, rios, acredito que seja possível reconstruir o mundo por meio do bordado. A irmã Maria Josefina também borda, e sinto que, juntas, bordamos uma saudade incrível da senhora, do seu sorriso e da energia de amor que emanava do seu coração e contagiava a todos que estavam ao seu redor. Bordamos celebrando a vida. Deus permitiu que estivéssemos aqui, nesse momento, pelo seu amor e pela sua misericórdia, e não precisamos fazer mais nada além de amar. Bem, a senhora soube amar plenamente, mas eu sou, ainda, uma aprendiz.

Daqui onde estou, vale de provas e expiações, os meus olhos de poeta enxergam para além do sofrimento, vejo um horizonte de paz. Sim, ódio, miséria e dor, mas a esperança se renova a cada dia e lutamos e lutaremos contra o ódio e o egoísmo com as armas do amor: fé, perseverança e caridade.

Que a paz de Deus esteja com a Senhora, irmã querida.

O meu coração entoa uma prece ao altíssimo, grata pela vida. Amém!

 

O uirapuru canta, mas quem estará disposto a escutá-lo? Carta para irmã Cleusa Carolina Rody Coelho. Texto da poeta e ambientalista capixaba Renata Bomfim. Originalmente publicado no livro Cartas femininas: por uma escrita afetiva. ISBN: 978-85- 7772-550-2.