Renata Bomfim
Renata Bomfim
Se as palavras são a minha única posse,Farei com elas o que ninguém mais pode:Milagres.Renata Bomfim
Renata Bomfim emerge no Colóquio das Árvores (Chiado Editora, 2015 – Coleção Prazeres Poéticos) como um poeta que não apenas escreve, mas vive a poesia como um ato de resistência, um grito que brota da terra e se eleva aos céus. Capixaba de Vitória, nascida em 21 de novembro [Dia de Nossa Senhora da Saúde] de 1972, ela carrega em sua escrita a herança de uma ilha beijada pelo Atlântico e a sensibilidade de quem fez das árvores não apenas musas, mas aliadas numa luta por um mundo mais vivo, mais autêntico, feminal. Publicado em sua primeira edição em setembro de 2015, este livro é um marco em sua trajetória — um coro polifônico onde a natureza, o feminino e a utopia se entrelaçam numa dança sagrada, como bem apontado por Ana Luísa Vilela no prefácio e Pedro Sevylla de Juana no posfácio.
Dividido em cinco movimentos — “O Grito da Rosa”, “Colóquio das Árvores”, “O Cisne e a Flor”, “Cantos de Vida e de Esperança” e “Hortinha Poética” —, o livro é um organismo vivo, cujas, cerca de cem poemas, pulsam com uma energia que transcende o papel, a tinta e a leitura. Renata, doutora em Letras pela UFES e pesquisadora das vozes de Florbela Espanca e Rubén Darío, não se limita a dialogar com a tradição literária; ela a reinventa, enraizando-a num imaginário visceralmente brasileiro, com cores capixabas. As árvores, símbolo central da obra, não são meras figuras decorativas: são interlocutoras de um colóquio ancestral, como sugere a epígrafe de Darío, que exalta a “selva sagrada” como fonte de vida capaz de vencer o destino. Em poemas como “Brasil” e “A Tupiniquim que me habita”, o poeta canta a terra capixaba e a memória coletiva de um povo que resiste à usura do tempo, fundindo raiz e voo, origem e devir.
A potência lírica de Renata reside em sua capacidade de transformar o concreto em sublime, o cotidiano em epifania. Em “O Grito da Rosa”, sob a tutela de Sylvia Plath e do evangelho de Lucas, ela clama contra a indiferença: “Eu te incomodo, sim! / Te arrasto da zona de conforto, / É por amor!”. Aqui, a rosa não é apenas beleza frágil, mas um grito que rasga o silêncio, um espinho que fere para despertar. Já em “Bífida”, dedicado a Ferreira Gullar, a língua do poeta se bifurca, querendo “explicar o mundo” e “religar com firmeza / Tudo o que se rompeu”. É uma poesia sem pose, como nota Vilela, coloquial e íntima, que transmuta a dor em beleza com um “gáudio feroz” e uma jovialidade irônica, muitas vezes escarninha, mas sempre terna.
O simbolismo ecológico atravessa a obra como um fio verdejante. As árvores — pau-brasil, jacarandá, anil — são mais que metáforas; são protagonistas de uma redenção telúrica. Em “Terra de Santa Cruz”, Renata mergulha e voa, sintetizando uma cosmogonia que renova o espírito ancestral brasileiro: “os gestos simétricos da poeta / — o voo e o mergulho — / sintetizam uma cosmogonia”. Essa conexão visceral com a natureza reflete sua vida fora das páginas: desde 2005, ela mantém a Reserva Natural Reluz, em Marechal Floriano, onde planta árvores e preserva a biodiversidade, um ato concreto que ecoa nos versos de “A transubstanciação do vegetal”: “Deixo de ser eu mesma para me tornar outras coisas. / Coisas com aura e prenhes de inéditos”. Aqui, a ingestão de brócolis, cenoura e bebida é um ritual místico, uma refeição com o sagrado orgânico.
A militância ecológica de Renata não é acessório, mas cerne de sua poética, uma poética ativa. Vegana condenada, ela subverte até o imaginário gótico em “Vampiro vegano”, um monstruoso que “invadirá quitandas e hortifrutis / em busca de clorofila”, preferindo “os orgânicos e os sem-conservantes”. É um humor ácido que desmonta convenções e exalta a vida não-humana, como nos poemas dedicados aos gatos — Elvis, Joaninha —, totens de afeto que habitam sua “comunidade de amigos”. Em “Todo gato”, a frase: “Todo gato é zen e / Oportunidade de amor ilimitado / Para um ser humano”. Essa ternura pelos seres vivos dialoga com sua atuação como arteterapeuta e fundadora do Rosa Rubra e do Espaço Terapêutico Arte (ESTARTE), onde a criação se entrelaça com a cura e a consciência ambiental.
A feminilidade insurgente é outro pilar desta obra singular. Em “Identidade X”, Renata desafia rótulos — “Querem saber se sou feminista, / Marxista, / Crente, / ou Pagã” — e reivindica uma deficiência que é “carnal e transcendente”. Figuras como Joana d'Arc, Salomé e a Viúva Negra são resgatadas em versos que celebram o poder e a ambiguidade do feminino, enquanto “Fogo” reescreve a história: “A MULHER descobriu o fogo. / Um dia, O HOMEM teve uma ideia / Maldita: / Queimar as mulheres”. Um poeta não apenas denuncia; ela redime, transformando cinzas em flores, como faz Joana ao “colher flores” num futuro utópico.
Colóquio das Árvores é, enfim, um convite à ação e à contemplação. Sevylla de Juana, no seu posfácio, o define como “impossível e necessário”, um livro de Renata, “leona que ronronea como gatita”, morde e beija, sangra e balsamiza. É uma obra que não tolera a indiferença, que exige do leitor um mergulho na “selva sagrada” da existência. Para além de sua erudição — evidente nas referências a Blanchot, Darío e Florbela —, há uma simplicidade radical, um apelo à alegria nas coisas mínimas, como o chá entre amigos ou o irmão de heras em “Erosão”. Renata Bomfim não apenas escreve poesia; ela planta sentimentos, literal e metaforicamente, num mundo sedento por sentido.
*Francis Kurkievicz é poeta, professor de Filosofia e,
eventualmente, resenhista.
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Capa do Arcano Dezenove |
Arcano Dezenove, publicado em 2010 pela Helvética Produções Gráficas e Editora, é a segunda obra da poetisa capixaba Renata Bonfim, um marco de sua que sucede o bem-recebido Mina. Com 98 páginas, o livro se estrutura em temáticas – Arcano Dezenove, Memória, Quintessência; Transição e Rituais– e revela uma voz poética madura, que entrelaça lirismo, espiritualidade e um grito urgente pela preservação ambiental. Não é apenas poesia; é um manifesto existencial que ressoa no cenário literário brasileiro contemporâneo, especialmente por sua perspectiva feminina e cósmica. Renata, doutora em Educação e artista multifacetada (como revela seu blog Letra e Fel), construiu aqui um labirinto de palavras-imagens que convida o leitor a mergulhar na essência da vida e da arte.
A obra pulsa com temas que transitam entre o íntimo e o universal. Em Terra Santa, a poeta lamenta: Terra Santa / bendita, / adorada / O que fizemos com você? / Tua dor me trespassa, um apelo ecológico que ecoa a destruição ambiental com uma sensibilidade visceral. Já Jesus Cósmico expande a espiritualidade para além do dogma, com versos como: Não sou alegre nem triste, apenas sou! indicando uma comunhão mística entre o eu e o universo.
A feminilidade, por sua vez, brilha em Orgânica: A mulher era verde / E sem veneno, aconteceu uma vez da força natural e transformadora da mulher. A metalinguagem também é recorrente, como em Poemas: As letras que, a duras penas, saltam dos dedos para o papel /condensam vozes, revelando a poesia como um ato de luta e libertação.
Estilisticamente, Renata Bonfim combina versos livres com imagens sensoriais potentes, como em Arcano Dezenove: Inunda a minh’alma um sol de sétima grandeza / e te desejo toda, inteira, / Terra amada, Santa, Natureza! A intertextualidade enriquece a obra, dialogando com Bakhtin (As letras [...] condensam vozes, e Calvino (Quem somos nós [...] se não uma combinatória de experiências?), sem soar pedante.
Há uma simplicidade erudita que convida à reflexão, embora alguns poemas, como? com sua densidade histórica (Será que a poesia do século XVI era minha?), pode desafiar leitores menos acostumados ao simbolismo. Ainda assim, a força reside na capacidade de transformar o complexo em acessível, como em Despertar: Desperta! / Acorda pleno e sente / És letra! um chamado à consciência poética e humana.
O diálogo com outros poetas é um dos pilares do Arcano Dezenove. Rubén Darío, o modernista nicaraguense, é invocado em Canção para Rubén Darío: Poeta do Azul, quem te cantará? / [...] A América te cantará! um tributo que resgata sua sensualidade paga e a adaptação à América Latina contemporânea de Renata. Florbela Espanca, a poeta portuguesa do desejo e da melancolia, ecoa em Florbela em canto: No claustro, o silêncio ensurdece. / Fado? A alma resiste e canta, uma homenagem que reflete a intensidade emocional partilhada por ambos. Cecília Meireles, com sua leveza metafísica, aparece sutilmente em Jesus Cósmico, remetendo à busca pelo transcendente em Cântico VI de Meireles.
Renata não imita; ela conversa com esses gigantes, trazendo sua própria voz – mais terrena, mais ativista – para o diálogo, como em Guernica Hoje: Dor dentro e fora do tempo que me atinge e te atinge, / e fingimos que não a temos.
O impacto de “Arcano Dezenove” reside em sua capacidade de provocar e acolher uma obra que exige releitura, pois cada verso revelou novos sentidos, como: Estou nua, sim! / E disponível para tudo o que, / a partir de agora, / Venha acontecer; (Arcano Dezenove), que sintetiza a entrega da poeta ao mundo e à poesia.
O posfácio de Fábio Mário da Silva destaca essa abertura: A obra não como objeto acabado e definido, mas [...] de abertura a várias possibilidades. No contexto brasileiro, onde a poesia feminina ainda luta por visibilidade, Renata emerge como uma voz necessária, alinhada às contemporâneas como Ana Martins Marques, mas com um tom distintamente místico e ecológico.
Para o leitor latino-americano, ela oferece uma ponte entre o lirismo modernista de Darío e as urgências do século XXI. Arcano Dezenove é, enfim, um convite à resistência e à contemplação. Renata Bomfim nos guia por um cosmos poético onde a Terra chora, a alma canta e a mulher se ergue. Recomendo a leitura com o coração aberto, para que se ouça o eco de: Que nasça essa gente bendita. / Que rebentem novas sensações, uma prece por um futuro mais vivo e consciente.
*Francis Kurkievicz é poeta, escritor e professor, natural de Paranaguá/PR. Residiu por 20 anos em Curitiba/PR onde estudou FILOSOFIA – UFPR/2002, com especialização em Yoga – UNIBEM/2010 e MBA em Produção de RTVC, UTP/2011. Foi um dos 36 pré-selecionados ao Prêmio SESC de Literatura de 2015 na categoria Conto. Publicou, em dezembro de 2020, pela Editora Patuá, o livro de poemas B869.1 k96. Têm poemas publicados nas Revistas Acrobata, Hiedra, Mallarmatgens, Arara, Estrofe e no site escritas.org – traduções na Revista Zunái, Escamandro, Letra & Fel – artigos no Jornal Memai. Em 2022 teve seus poemas publicados nas duas maiores antologias mundiais de poesia: World Poetry Tree, organizado por Adel Khosan – Dubai/EA, e Living Anthology of Writers of the World, organizado por Margarita Al – Russia; também teve seu poema CHILDHOOD IN BHARAT publicado em MA: Antologia de Poemas em Memória da Poeta bengali Kazi Masuda Saleh, feito realizado pelo poeta de Bangladesh Abu Zubier Mohammed Mirtillah, Editor e organizado. Em Vitória desde fevereiro de 2012, ministrando oficinas de Dramaturgia, Haikai e Meditação.
O coração da Medusa possui três partes: 1) “Canto iniciático”; 2) “Queda”; e 3) “Ascensão”. Há também uma quarta parte, “Outros poemas”, mas, segundo a própria autora, “[O]s poemas que se seguem vieram à luz um tempo depois de finalizado O coração de Medusa. A decisão de incluí-los no poemário deve ao fato de eu sentir, ainda, ressoar a voz serpentina de Górgona nesses versos”, no que achamos, portanto, que o núcleo da obra se concentra nos três primeiros capítulos.
O livro tem, como fio condutor, o mitema (grosso modo, a representação/consubstanciação do mito) da Medusa (“Górgona”), ainda que Bomfim explore, também, outras alegorias, como a bíblica (“O prazer de Salomé”) e a indígena (“Ritual tupiniquim”). Trata-se de um bem estruturado poemário, cujo erotismo tem uma tônica singular como forma de posicionamento da própria autora, numa poesia que, ousamos afirmar, vai além do feminismo, consubstanciando-se em uma “poesia fêmea”.
Expliquemo-nos: primeiramente, o mitema da “Medusa”, tão popular, leva em consideração não apenas aspectos do próprio mito, mas, também, uma provocação. Medusa era uma bela sacerdotisa que, ao se deitar com Poseidon no templo de Atena, foi transformada por essa em uma horrenda criatura, com cabelos de serpente e o condão de transformar em pedra quem ousasse cruzar seu olhar. Ela é o arquétipo da maldição, alguém condenada por ousar o amor e, mais ainda, ousar o prazer.
Há, portanto, várias “Medusas” na História, mulheres que foram além das convenções, mas que pagaram com suas vidas, sendo tidas como bruxas, prostitutas, proscritas. Nota-se, no entanto, que a Medusa de Bomfim possui um coração, o que leva a um paradoxo interessante, visto que o órgão, em literatura, tradicionalmente, representa o amor. Sim, Medusa também tem coração e, se tantas mulheres foram tidas como monstros, não seria por elas terem ousado pôr o sentimento em lugar de uma razão proveniente de uma sociedade de papeis preestabelecidos? Não seriam por terem ousado ser como elas realmente queriam ser?
“Medusa” é o preço que uma mulher paga na nossa sociedade machista e falocêntrica. Bomfim, todavia, faz de seu livro um canto contrário a esse estado de coisas, o que já se percebe, num leitor mais atento, quanto ao conteúdo do livro, com a proposital mudança entre os vocábulos “queda” e “ascensão”. Começo, porém, por “Canto iniciático”. O vocábulo “canto”, aliás, é bastante encontradiço na obra. A mulher, sempre tida como “perigosa”, seduzia por seu canto. Muitos monstros mitológicos, como a Medusa, tinham formas femininas. Lembro-me de outro mitema, o das sereias, que entorpeciam os homens com seu canto. Ulisses só escapa da “maldição” pois estava amarrado a um mastro. O mesmo canto que seduz também pode levar à guerra. Renata canta a bravura de tantas mulheres, alijadas pelo cânone histórico e social. Por isso a inversão: se a mulher, que nos primórdios, era o cume da sociedade matriarcal, foi destronada pelo patriarcado, a poeta, no seu “canto iniciático”, quer dar voz a uma nova ascensão para as tantas Medusas da História.
O poema que dá título ao livro está, justamente, no capítulo deste “canto iniciático”, como uma preparação para um porvir. É ele:
O coração da Medusa
O coração da Medusa
(forjado em lada, cheio de fúria)
ama aquele que a busca.
A diva serpentina oferece
ao macho que penetra
na senda úmida e obtusa,
(caverna iniciática):
sedução, prazer, e gozo.
Até o momento fatal
da mirada suave e íntima,
o tempo para. A virgem
quebra o silêncio sepulcral,
chacoalha o guizo,
mas, ninguém testemunha
o milagre dos milagres:
A volúpia eternizada
numa estátua de carrara.
São 17 versos livres e brancos, em que Renata lança mão de uma inteligente proposta: usar um erotismo fino e elegante como fio condutor. É neste aspecto que ousamos classificar o livro não dentro de um viés apenas feminino ou feminista. Para nós, a obra de Bomfim ultrapassa esses conceitos, mostrando-se uma “poesia fêmea”: marcando territórios, ainda hoje, dominados pelo masculino, a autora expressa em versos o corpo da mulher, junto de sensações que, em muito, deságuam em um tema tão tabu: o prazer feminino. Nesta senda, ela se une a autoras como Gilka Machado, Cecília Meireilles, Julia Lopes de Almeida, Haydée Nicolussi e tantas outras que “cantaram” o feminino, o corpo, suas idiossincrasias, seu espaço e, principalmente, seu direito.
O poema em epígrafe esbanja essa sensualidade, com arquétipos que aludem tanto ao genital feminino (“caverna iniciática”) quanto ao masculino (com o uso do verbo “penetrar”). Há, também, uma alegoria que vai se repetir em muitos textos do livro, a da serpente, como imagem do pecado, do proibido e, em última análise, da própria mulher, como ser “perigoso”, que pode “seduzir” e “perverter” o homem. O gozo, esta petite mort, representado pelo chacoalhar do guizo, é o prenúncio de um milagre: Medusa também tem coração, também sente prazer, isto é: à mulher também é outorgado esse direito.
Ainda sob alegorias ofídicas, a segunda parte trás o poema “A víbora”. Há de se lembrar, entrementes, que este capítulo, intitulado “Queda”, alude ao rasteiro, ao chão, sobre o qual rasteja a serpente:
A víbora
A víbora que faz Eurídice dormir
ronda a minha cama,
Se acerca em arabescos
Aguardando o momento
do bote preciso, prefeito.
No instante apoteótico
do sonho,
Ela crava os dentes
no meu seio.
Nem Cleópatra experimentou
tamanha delícia.
Há, aqui, mais uma alegoria mítica: a de Eurídice que, morta por uma serpente, desce ao Hades, sendo resgatada de lá a súplicas de Orfeu, seu marido, filho da musa Calíope e do deus Apolo. Orfeu desobedece aos deuses, olha sua amada antes de chegar ao lar e é condenado ao Hades, o que significa: a víbora, aqui, mais uma vez, é o desejo pelo proibido. Se lembrarmos, também, Freud, pode ser a pulsão pela morte, mais uma vez, alegoria do gozo. Há toda uma sensualidade aí: a víbora ronda a cama, serpenteia. Ela pode ser, também, um arquétipo da genitália masculina. Ela crava seus dentes no seio feminino, podendo, também, ser representado pelo corpo. É um “instante apoteótico”, orgásmico, epifânico, um lapso antes da expulsão do jardim das delícias como “Nem Cleópatra experimentou”.
Do terceiro capítulo, “Ascensão”, colhemos este:
Ritual Tupiniquim
A praia recebe do mar
Homens errantes e exaustos.
Recolhidos pelas guerreiras,
Os corações são postos ao sol para secar.
Enquanto elas cantam e dançam,
eles cintilam, pulsam, ardem,
sentem desejo. As carnes quentes
encontram peitos receptivos,
se abrigam e brotam...
A coisa geminada vira gente.
É importante notar que a autora, além de literata, é ambientalista, e também engajada nas causas indígenas. Não é a primeira vez que Renata Bomfim se utiliza dessa temática, colocada neste poema, cremos, como chancela ao capítulo: mais uma vez, ritual. O rito, o canto iniciático, a guerra, tudo tão presente na obra, tudo tão, aparentemente, caro ao masculino, é transportado para o universo feminino. Aqui, podemos pensar, em termo de mitemas, às amazonas. Elas são, porém, “tupiniquins”, ou seja, o poema traz, também, elementos de brasilidade, como uma ode à força da mulher brasileira, latino-americana, mestiça.
É interessante notar, justamente, essa alteridade: os homens estavam “errantes e exaustos”; eles são “recolhidos pelas guerreiras”; o coração deles é “posto ao sol para secar”. Há uma clara inversão de lugares comuns, como o sexo masculino como o mais forte, por exemplo. Os corações postos ao sol aludem a um canibalismo e a dança das mulheres, sempre sensual, nos remete a um ritual de antropofagia que, em um sentido figurado, subverte o sentido: não são os homens que comem as mulheres, mas as mulheres que comem os homens.
O fim, portanto, será o milagre da vida: “a coisa germinada vira gente”, ou seja, a mulher, aqui, não é apenas uma imagem de força, mas, também, como um campo fértil que abriga a semente masculina. Ela é um ser dotado para ser vida e gerar, também, outra vida.
Anaximandro Amorim é membro da Academia Espírito-santense de Letras e mestrando em Estudos Literários – UFES.
A Terapia Narrativa é uma abordagem terapêutica que considera que as pessoas interpretam e dão sentido às suas vidas por meio de histórias ou narrativas que constroem sobre si mesmas, suas experiências e o mundo ao seu redor. Essa abordagem terapêutica visa ajudar o indivíduo a reescrever suas histórias pessoais de maneira mais empoderada, com maior senso de controle e agência sobre sua própria vida. A ideia central é que, ao alterar a maneira como uma pessoa narra sua própria história, ela pode modificar a forma como lida com os desafios, os conflitos e até mesmo os problemas emocionais. Essa prática percorre um circuito que passa pelo desafio da história dominante saturada de problema até a construção de uma história alternativa, preferida pelo cliente.
As histórias narradas pelo indivíduo estão sujeitas a mudanças e essa plasticidade da linguagem pode ser um caminho para a pessoa moldar novas formas de perceber o problema com vistas a encontra formas de lidar com o mesmo. Esse papel central da linguagem deve ao fato de ser por meio desta que contamos o indivíduo conta sobre si, fala de suas experiências. Para Michael White e David Epston, as pessoas não são definidas por problemas. As histórias, nesse contexto, servem como ferramentas de organização da experiência. Às histórias trazidas pelo indivíduo, saturadas de problemas, se contrapõem narrativas de resistência, contra-histórias, que passam a sobrepor as narrativas dominantes, geralmente alicerçadas culturalmente no sistema sociocultural e político na qual a pessoa se desenvolveu e vive. Narrativas alternativas surgem como um ato de resistência a uma história dominante ou problemática. Essa abordagem confere ao analisando um lugar de protagonista do seu processo terapêutico, o especialista, de quem o terapeuta é um acompanhante privilegiado, um apoiador.
Renata Bomfim
Processo de externalização
Gustav Mahler foi um dos maiores compositor do período romântico. Ele era filho de pais judeus e viveu em uma província tcheco-austríaca. Aos seis anos, o seu talento musical foi notado e seus pais não pouparam esforços para que ele estudasse no conservatório de música. A família tinha uma condição financeira estável, seu pai possuía um negócio de bebidas, entretanto, mesmo provendo a família, era um homem bruto e de temperamento irascível e o que fez com que o menino crescesse em um lar muito conflituoso.
Desde a infância Gustav teve que conviver, juntamente com sua mãe, com a violência e os acessos de ira de seu pai. Essa vivência marcou a sua vida e o seu estado de ânimo passou flutuar, oscilando entre períodos de euforia e melancolia.
É certo que a arte nada tem de patológica, mas se observarmos a vida de Gustav Mahler e de pintores, cantores, compositores, escritores, entre outros, veremos que as vivências dolorosos impregnam suas expressões e se deixam entrever nos interstícios de suas criações.
A obra e as declarações do artista revelam a sua luta contra crises maníaco-depressivas desencadeadas por essas e outras vivências dolorosas.
A intensidade da obra do artista e trechos que, fora do convencional de sua época, foram descritos como sombrios, revelam a sua capacidade de transformar em sinfonia os sentimentos e afetos que fez ele ser a pessoa que foi.
As dores e os sofrimentos não admiráveis, são eventos que não se escolhe, muitas vezes inevitáveis e aos quais a pessoa precisa responder de alguma maneira. Há quem fuja, quem enfrente, quem sucumba, mas é certo que ninguém sai incólume a essas vivências. É admirável que exista um Van Gogh, uma Frida Khalo, um Bispo do Rosário e tantos outros seres humanos que nos mostram o processo alquímico da dor transformada em arte. É admirável, também, a pessoa anônima que, dentro de suas possibilidades, luta para estar bem e para construir um ser e estar no mundo mais saudável e equilibrado.
Volto a dizer que a arte não é patológica, mas ela tem a capacidade de fazer a dor se transformar em alguma outra coisa.
No caso de Gustav Mahler, a profunda crise existencial as vezes lhe dava instabilidade e ele ao ser eleito, aos 28 anos, Titular da Ópera Real de Budapeste, não conseguiu continuar no cargo. A vida adulta do artista também não foi fácil, ele perdeu seus pais e suas irmão no período de um ano, alguns anos depois, seu irmão cometeria suicídio. Ele casou-se com uma mulher chamada Alma e teve suas filhas, uma delas morreu de febre escarlatina. O espectro da morte rondou toda a vida de Gustav e ele produziu obras como "Canções para meninos mortos" (Kindertotenlieder). Ele se viu ridicularizado nos jornais, vaiado e desprezado pelo público, mas encontrou conforto na vida doméstica, ao lado da amada esposa Alma.
Passado o período depressivo ele trabalhava freneticamente, se fechado em seu mundo particular de dor e solidão. Em um desses episódios, sua esposa insistiu que ele buscasse ajuda, foi quando o artista escreveu um telegrama para Sigmund Freud. O encontro entre o compositor e o psicanalista aconteceu em 1910 durante as férias de Freud na Holanda. Eles se reuniram umas três ou quatro vezes segundo os biógrafos, e esses encontros marcaram a vida de Gustav positivamente, tanto que ele agradecido a Alma, dedicou a ela a sua décima sinfonia: "Viver por ti, morrer por ti, Almschi!".
Gustav Mahler ia completar 51 anos quando faleceu de problemas cardíacos, em Viena.
Renata Bomfim
Vitória, 23/01/2025