17/02/2022

Florbela Espanca e Cantos de Vida y Esperanza (3)

 

Em pouco mais de dez dias Florbela tinha adquirido o livro Cantos de vida y esperança. A poeta afirmara que se identificava o personagem Dom Quixote, e na obra de Darío, especialmente em Cantos de vida y esperanza, esse personagem ocupa um lugar de destaque como o “senhor dos tristes”, “coroado com áureo elmo de ilusão”, um “cavaleiro errante”, “generoso, piedoso e orgulhoso” (DARÍO, 2004, p. 148). Ainda nas cartas, Battelli contou a Florbela sobre as suas insônias e a poeta o consolou, mas, na correspondência, quem agradeceu à “grande amizade”, afinal, foi a Sóror Saudade, que segundo Florbela era um “bebê amimado” que nunca estava contente, uma “bárbara da charneca”, “pantera enjaulada” aborrecida. Ao final da carta, a poeta afirmou estar enviando ao professor os últimos dois sonetos para o livro Charneca em flor e que esse transcrevesse na íntegra o soneto, cujo título é um sinal de interrogação: “?”.

 No dia 8-8-1930 Florbela enviou uma nova carta para Batteli falando sobre a sua infância e assina como “Sóror Saudade”. Ela agradeceu ao professor por divulgar os seus versos na Itália: “Não sei como a pateta da Sóror Saudade lhe há de agradecer as lindas coisas que dela conta aos seus leitores de Itália”. A poeta destacou ainda que nunca gritou a ninguém os seus “desesperos”, como tem feito desde que o conheceu (ESPANCA, 2002, p. 227). No dia 21-8-1930, Florbela enviou uma nova carta a Battelli, na qual mostrava bom humor. Florbela ria da “afeição sem exigências” e da “grande amizade” que o professor lhe dedicava, e declarou: “Tenho em si uma confiança absoluta e a certeza de que nunca me virá mal da sua límpida ternura de amigo” (ESPANCA, 2002, p. 281). Nessa correspondência há indícios de que a saúde da poeta está muito fragilizada. Retirada da cidade, ela repousava numa praia alheando-se cada vez mais da realidade que lhe era “infinitamente menos poética”. Ela aproveitava esse tempo para fazer versos, “muitos versos, nunca fiz tantos e nem tão bons” (ESPANCA, 2002, p. 281). Novamente a poeta declarou que estava utilizando tranquilizante, disse que durante uma insônia que só cedeu após “grama e meio de veronal”, fez um soneto. Battelli, nessa época, estava em Coimbra, e Florbela lamentou não ter um automóvel para ir visitá-lo, afinal, “as poetisas, sobretudo as ilustres, as grandes, fizeram voto de pobreza como São Francisco de Assis, principalmente as poetisas que são freiras” (ESPANCA, 2002, p. 282, grifo nosso).

 Segundo Florbela, Battelli lançava lenha à fogueira dos seus “vãos desejos”. Ela já não dormia “a sonhar com Veneza” e, na carta datada de 22-8-1930, declarou que o “mau amigo” lhe fazia ter “insônias” e, como sempre fez, agradeceu ao professor, dessa vez em francês: “merci, merci, merci”, e voltou a escrevê-lo no dia 26-8-1930.

Enfim chegou o tempo do encontro. Florbela buscou um bom lugar para que Battelli se hospedasse em Matozinhos quando fosse visitá-la. Desculpou-se com o professor por não poder hospedá-lo, visto que a casa em que estava morando com o marido era de seus sogros: “dois velhos agarrados aos seus hábitos de há séculos”, situação que a deixava de mau humor (ESPANCA, 2006, p. 284). Nesta carta, a “pantera enjaulada” descreveu-se “rabugenta” e pediu a Guido que não falasse com ela sobre política e nem sobre religião, afinal, ela era “pagã e anarquista, como não poderia deixar de ser uma pantera que se presa” (ESPANCA, 2002, p. 284, grifo nosso). O sonho de ir para Veneza mostrava-se irrealizável, afinal:

Nem saúde, nem dinheiro, nem liberdade. A pantera está enjaulada e bem enjaulada, até que a morte venha cerrar-lhe os olhos, e da sua miserável carcaça cinzele um tronco robusto a latejar de seiva, ou uma sôfrega raiz a procurar fundo a água que lhe mate a sede” (ESPANCA, 2006, p. 284).

 A Sóror Saudade que “adora os claustros e as fontes; toda ela é um claustro e uma fonte...” se despediu de Battelli com a notícia: “Charneca em flor está pronta para aparecer aos olhos do respeitável público. Espera apenas que o senhor pintor lhe ponha a capa... uma charneca, tendo por modelo... o mar” (ESPANCA, 2002, p. 284, grifo nosso). Battelli passou a se queixar do silêncio de Florbela.  A poeta tinha em mão duas cartas do professor, as quais respondeu no dia 3 de setembro. Florbela encontrou para Guido uma hospedagem próxima à sua casa e avisou que quando chegasse a pantera falaria pelos cotovelos. A saúde de Florbela melhorou, segundo ela própria um “milagre”, mas “que as fadas más que povoam o mundo” não lhe escutassem, destacou (ESPANCA, 2002, p. 285). Na carta de 28-9-1930, a poeta desculpou-se com Battelli pelo silêncio, desta vez causado pela doença e morte de seu sogro e, em 6-10-1930, agradeceu-lhe a publicidade dada na Itália à sua poesia, recentemente publicada na Ressegna Nacionale. Como retribuição, Florbela prometeu a Guido que uma amiga sua escreveria sobre a escritora italiana Condessa de Fiume na revista Portugal Feminino. A poeta não se ofereceu para fazê-lo e justificou dizendo que, além de não ter nenhum cargo na revista, era “apenas, poetisa: poetisa nos versos e miseravelmente na vida”, e que por isso não sabia fazer nada “a não ser versos; pensar em versos e sentir em versos. Predestinações...” (ESPANCA, 2002, p. 291).  Acredita-se que Battelli tenha se apaixonado por Florbela: “a sua afeição por mim cega-o completamente: a minha alma ─ pobre dela! ─ não é nada do que a sua cegueira de amigo pensa e julga” (ESPANCA, 2002, p. 291).

 Segundo Dal Farra (ESPANCA, 2002, p. 250), Battelli se insinuou para a poeta, mas esta tomava como se fossem versos as suas palavras, e logo o professor retrocedeu na investida amorosa. Essa pensadora salienta que essa postura de Florbela, ou seja, o limite que ela impôs na relação com Guido, em muito contrasta com a intimidade com que ele a tratou nas publicações póstumas. No dia 28-10-1930 Florbela estava feliz: “parece-me um sonho”, a alegria devia-se ao fato de Battelli ter pedido o original do livro Charneca em flor para publicá-lo por sua conta. A poeta mandou fazer uma cópia, “à máquina”, do manuscrito, temendo que o correio o perdesse, e desde então começou a designar as características do livro e de como deveria ser publicado. Florbela deu orientações precisas a Battelli sobre como gostaria que o livro fosse estruturado,  entretanto, como que profeticamente, declarou-lhe: “Tenho uma tão grande vontade de ver o livro pronto, que parece-me hei de morrer antes disso” (ESPANCA, 2002, p. 293).

Declarando-se “Dom Quixote sem ilusões”, por batalhar diariamente por um ideal que não existia, Florbela pediu ao seu amigo, que retornava para a Itália, que não se esquecesse da “Sóror Saudade que um dia se lembrou de se mascarar de Charneca em flor” (ESPANCA, 2002, p. 296, grifo nosso). Com Guido de volta à Itália, Florbela ainda lhe escreveria especificando detalhes do Charneca em flor, propondo modificações e acertos. Para baratear a obra, Battelli sugeriu que cada soneto ficasse inteiro em uma página, a poeta prontamente aceitou a sugestão, mas fez exigências, pediu que o professor depositasse os exemplares da obra em uma livraria em Coimbra ou em Lisboa, e esta se encarregaria de distribuí-los, assim, a localização lhe possibilitaria vigiá-los, afinal, “o que o patrão não vê, os gatos lho levam...” (ESPANCA, 2002, p. 297). No dia 18-11-1930, Florbela encaminhou à Battelli a prova do livro com as devidas correções, inclusive, no último verso do soneto Charneca em Flor, ao qual faltava um “em”, devendo ficar: “Sou a charneca rude a abrir em flor”, e pediu que, de última hora, o professor inserisse no livro um soneto que ela acabara de escrever, e do qual muito gostara (ESPANCA, 2002, p. 298). Na carta do dia 30-11-1930, a poeta pediu ao professor que fizesse correções nos sonetos “Realidade”, “O Meu Condão” e “Ser poeta”, e lhe perguntou se o livro sairia antes do Natal.

 Observamos que Florbela não perdeu o tino para questões voltadas ao mercado editorial, pois, vendido antes do Natal, o livro seria uma possibilidade de presente, o que poderia alavancar as vendas do mesmo. A última carta de Florbela para Guido data de 5-12-1930. Nela, ainda observamos a preocupação de Florbela com o Charneca em flor, tanto que ela pediu ao professor que fizesse acertos nos sonetos “Crucificada”, “Espera”, “Mais Alto”, “Não ser”, In Memorian”, “Árvores do Alentejo” e “Panteísmo”. Sugeriu acertos, também, na acentuação e pontuação de algumas palavras, e declarou: “Julgo estar agora tudo em ordem” (ESPANCA, 2006, p. 302). Junto a esta carta seguiu um retrato de Florbela e os dizeres: “que mais terei eu ainda que agradecer-lhe?”. Depois disso, ela se despediu dele: “mil saudades da bela” (ESPANCA, 2002, p. 302).

 Consta registrado, no Diário de último ano de Florbela, datado de 20-11-1930, a citação adaptada do soneto “A um moribundo”, de Charneca em flor, que diz: “Que importa? Que te importa, ó moribundo? / ―Seja o que for, será melhor que o mundo! / Tudo será melhor que esta vida”... (ESPANCA, 1999, p. 214). A poeta reproduziu no diário os dois versos finais desse poema na íntegra. Entretanto, o primeiro verso diz: “Mas que importa o que está para além?”, a este verso precede a frase: “A morte definitiva ou a morte transfiguradora?” (2002, p. 298). No dia 2-12-1930 Florbela deixou registradas as suas últimas palavras: “E não haver gestos novos e nem palavras novas” (ESPANCA, 2002, p. 301).

Florbela não viu o seu Charneca em flor ser publicado. Na madrugada do dia 8 de dezembro de 1930, o barbitúrico Veronal, que usualmente a fazia dormir, fechou-lhe para sempre os olhos. Florbela deixou uma carta pessoal para a amiga Maria Helena Calás com instruções exatas sobre o que fazer com os seus pertences, deixou uma carta destinada ao seu marido e postais de despedida para as amigas mais próximas.

 Fiz um apanhado da relação entre Florbela Espanca e Guido Battelli entre vistas, especialmente, por meio da epistolografia da poeta. É patente o sentimento de gratidão de Florbela, tanto em função da publicação do livro Charneca em flor, quanto pela divulgação de sua obra na Itália. Entretanto, acredito que o fato de o professor se debruçar sobre a sua poesia com interesse, estudá-la e traduzi-la, significou para Florbela o reconhecimento do seu valor como poeta por alguém de fora do seu círculo literário. Em vista do frio acolhimento que as suas primeiras publicações receberam, a aceitação de alguém culto como Guido significou para Florbela uma resposta aos seus esforços no labor poético. Como ela afirmou certa vez, Guido era um amigo raro. Guido Battelli não conseguiu converter Florbela ao catolicismo. A poeta foi uma mulher de comportamento extemporâneo e essa imagem não convencional se agravou com o seu suicídio. Após a morte de Florbela, o professor italiano publicou as cartas da poeta, como falamos anteriormente, adulterando-as com o objetivo de “evitar quaisquer possíveis especulações acerca das relações mantidas entre ambos”, bem como, visando manter longe dos olhos do público a “verdadeira Florbela”, a “insurrecta”, a “anarquista”, enfim, “a inconstitucional” (ESPANCA, 2002, p. 250). Batteli forjou uma imagem de mulher bem comportada e temente a Deus, uma mulher de fé que em nada se assemelhava à pantera enjaulada, a poeta orgulhosa, pagã e anarquista descrita nas correspondências. Quando as cartas depositadas pelo professor na Biblioteca Pública de Évora foram abertas, em 1941, movia-se contra Florbela Espanca, em Portugal, um verdadeiro processo inquisicional, ao qual a crítica Maria Lúcia Dal Farra denominou “affaire”, e que foi tratado de forma aprofundada na minha pesquisa de mestrado intitulada Vozes femininas: a polifonia arquetípica em Florbela Espanca (ESPANCA, 2006, p. 250). Conforme explicitei nessa pesquisa, “a vida pessoal de Florbela Espanca, imantada pelo espírito da insurreição, formará juntamente como a sua poesia, uma espécie de tragédia da vida privada” (BOMFIM, 2009, p. 13). No dia 24-2-1931, o intelectual português Antônio Ferro escreveu um artigo antológico sobre Florbela no Diário de Notícias, que dizia:

 Pois que? Pois foi possível que esta admirável rapariga, que não escreveu um verso sem talento e sem alma, tivesse nascido, vivido e morrido numa terra de poetas, sem que ninguém a tivesse visto, sem que ninguém a tivesse gritado? [...] pois foi possível o seu anonimato, a sua sombra, em face de certas consagrações vistosas, em face de certa poesia feminina de ‘boas festas’, reproduzida em série ao infinito, como os cromos das ‘pombinhas’ e das ‘mãos apertadas’. [...] Florbela nunca foi uma poetisa de ‘sociedade’, e foi esse o seu mal, e foi por isso que não a conheceram, que não a descobriram ou que não quiseram descobrí-la. [...] eu revolto-me contra essa injustiça, contra esse silêncio criminoso, contra essa morte depois da morte (FERRO, 1931, p. 01, grifo nosso).

 A publicação de Antônio Ferro tornou Florbela Espanca conhecida em todo Portugal e contribuiu, também, para que o livro Charneca em flor se tornasse um boom literário. Como afirmou Maria Lúcia Dal Farra, “Pode-se dizer de Florbela o mesmo que de Inês, já que aquela se tornou, tanto quanto esta, rainha – e apenas depois de morta” (ESPANCA, 1999, p. I). Emilia de Souza Costa (1931, p. 2), em um artigo que escreveu para a revista Eva, falou sobre o interesse dos escritores, poetas e jornalista, de emitirem opiniões sobre Florbela e de homenageá-la. Para Costa, o tom dos tributos era de “reparação” e “remorso” (COSTA, 1931, p. 02). Aconteceu um processo de mistificação[1] da imagem de Florbela Espanca, tendo em vista prováveis, e muitas vezes inventados, aspectos curiosos, anedotários e tétricos sobre sua vida e sobre sua morte, como o de ela ter sido ninfomaníaca, ou o de ela ter sido praticante de incesto, informações que ajudaram a montar um perfil de mulher à frente do seu tempo, capaz de incomodar a estamental sociedade católica portuguesa. Transformada em celebridade, muitos queriam escrever sobre ela, especialmente as mulheres que a conheceram na revista Portugal Feminino. Nessa Revista Guido Battelli publicou os sonetos de Florbela, “Sou eu” e “A um moribundo”, e ambos tratam sobre o tema da morte. Com os sonetos publicados seguiu a afirmação de que Florbela “tinha o pressentimento de seu fim próximo” e de que “ouvia vozes misteriosas que a chamavam do além”. Battelli escreveu ainda, em 1931, uma elegia, através da qual evocou uma imagem etérea e mitificada para Florbela: “pálida e serena como Ofélia”, deitada em seu leito de flores, “voz melodiosa cantando um cântico divino” (BATTELLI, 1931, p. 19).  Observamos que a imagem de poeta romântica, após a morte de Florbela, se acentuou e lhe rendeu admiradores entre o público e a crítica. Entretanto, se observarmos a recepção da obra de Florbela hoje, assim como na época do lançamento dos seus livros de poemas, veremos as mudanças que se processaram nos discursos e na sociedade, o que corrobora a tese de Jauss de que a arte antecipa possibilidades que ainda não se concretizaram, flexibilizando e ampliando as possibilidades do comportamento social e abrindo caminho para novas experiências.



[1] Ainda em 1931, Thereza Leitão de Barros utilizou o soneto “A um moribundo” para pedir a Deus que recebesse Florbela no seu reino e lhe fizesse esquecer “o turbilhão da vida e a Fatalidade, sua negra companheira”. Barros (1931, p. 18) dando continuidade à campanha de mitificação da poeta, levantou no Portugal Feminino uma questão acerca do nome de Florbela. Ela afirmou que “o seu nome estranho e presumido foi a ironia de sua vida”. Vários estudiosos debruçam-se sobre o amálgama vida e obra de Florbela Espanca, entre eles, o crítico presencista José Régio, que, em seu estudo Sonetos de Florbela Espanca, cuja primeira edição data de 1950, buscou “frisar” a importância desse amálgama na construção da mitografia da poeta. Régio afirmou que o interesse por sua poesia “nasce, vibra e se alimenta do seu muito real caso humano” (RÉGIO, 1964, p. 11). Tito Bettencourt, no Diário de Notícias de 18 de dezembro de 1930, também especulou sobre Florbela afirmando que esta: “muito amou a vida, e por muito a amar, a vida a abandonou e entristeceu, até morrer [...]” e acrescentou: “pobre Florbela”. Natália Correia (1981) engrossou o coro dos mistificadores escritores quando, no prefácio do Diário de último ano, da editora Bertrand, afirmou que Florbela Espanca era uma persona dramatis: “Bela se apresenta como Diva do simbolizante feminino” [...] Os adereços da sua tragédia têm a futilidade das paixões vãs e fugidias que a consomem; a barateza das joias de um guarda-roupa teatral: “[...] Uma poesia maquilada com langores de estrela de cinema mudo. Carregada de pó de arroz. Florbela manipula o fraseado amoroso como Circe e seus filtros” (CORREIA, 1981, p. 9-12).

Guido Battelli, "Apóstolo florbeliano" (parte 2: performances florbelianas)

 

Florbela Espanca (1894-1930)

Foi no dia 18-7-1930 que Florbela Espanca começou a se corresponder com Guido Battelli, que na época, tinha 62 anos, vinte e cinco anos a mais que Florbela.  O primeiro contato do futuro editor com a obra de Florbela aconteceu por intermédio do advogado Dr. Antônio Batoque, que lhe apresentou um poema de Florbela publicado na revista Portugal Feminino. Battelli escreveu para a revista pedindo informações sobre a poeta e estando em Lisboa ela própria lhe respondeu da casa de Maria Amélia Teixeira, diretora do Portugal Feminino. Essa carta consta como sendo a primeira das vinte e quatro peças que Florbela enviou à Battelli e que estão depositadas na Biblioteca Pública de Évora. 

No dia 26-04-1930 Guido Battelli[1] foi nomeado professor visitante na Universidade de Coimbra e trouxe consigo um grande conhecimento do país e da cultura que o recebia. Para Guido, saber e religiosidade eram faces de uma mesma moeda. O professor, extremamente católico, foi chamado por um amigo seu ― poeta e intelectual heterodoxo que transitou do anarquismo ao catoliscismo ―, Giovanni Papini, de “dolce Guido”. O sacerdote Lorenzo Righi, ex-aluno de Guido, trinta anos após morte do professor, lhe dedicou um livro que intitulou de Il Dolce Guido, corroborando as impressões de Papini. Em 1923, Battelli dedicou a sua obra Florilegio Francescano[2] ao amigo Domenico Giulotti, onde se autonomeia “francescano Battelli” (SILVA, 2014). Battelli tinha conhecimento acerca da obra dos santos e dos escritores místicos. Em 1923, Giovanni Papini e Domenico Giuliotti citaram o professor italiano na polêmica obra que organizaram, o Dizionario dell’Omo Salvatico, onde Battelli é descrito como um homem de gosto refinado que rechaça “alla brutale modernità”, se refugiando “nel ieratico Medio e conversa con gli artisti e coi santi di quell'età prodigiosa” (SILVA, 2014). Nesse dicionário, o gosto e a paixão de Guido pelas coisas raras são vinculados à espiritualidade com que este exalta os místicos cristãos. Talvez venha daí o interesse de Guido por Florbela, um misto de admiração pela Sóror Saudade e desejo de converter ao catolicismo a escritora que, assumidamente, não se filiva a nenhuma ideologia religiosa, como mostra a carta do dia 27-7-1930, que Florbela lhe enviou:

 Não me julgue, para os que convivem comigo, e que julgam conhecer-me, sou alegre, dizem-me alegre, porque sou blagueuse e irônica. [...] Não sou de maneira nenhuma uma pessimista, não! Uma emotiva vibrante, exaltada, cheia de élans, de voos que ultrapassam a vida e os vivos, isso sim! E adoro as árvores, as pedras, os bichos, as flores. [...] Não posso olhar para um céu cheio de estrelas que não sinta vontade de chorar de alegria, de humildade, de reconhecimento. Vejo rosto às pedras, rostos petrificados que comovem, atitudes quase humanas que me fazem cismar na glória de ser pedra, um dia... [...] Gosto imenso de todos os bichos pequeninos, simples, vestidos de pardo, como o meu hábito de Sóror Saudade, desses que só sabem andar abraçados à terra, em íntimo contato com ela, a terra misteriosa e purificadora, a terra amiga e boa que dum assassino sabe fazer uma rosa, que nos há-de lançar a todos nós para além, para o céu, para a luz, para os astros onde não chegue a desprezível vaidade dos tolos, a covardia das traições, a baixeza das mentiras, toda essa grotesca comédia humana que me suja e a quem eu não perdoo o sujar-me. Já vê que não sou nada a rola gemebunda, a menina portuguesa que suspira ao ouvir um fado arrastado, nas tais guitarras de Alcácer-Kibir... Sou uma cética que crê em tudo, uma desiludida cheia de ilusões, uma revoltada que aceita sorridente todo o mal da vida, uma indiferente a transbordar de ternura. Grave e metódica até à mania atenta a todas as sutilezas dum raciocínio claro e lúcido, não deixo, no entanto, de ser uma espécie de D. Quixote fêmea a combater moinhos de vento, quimérica e fantástica, sempre enganada e sempre a pedir novas mentiras à vida, num dom de mim própria que não acaba, que não desfalece, que não cansa![3] (ESPANCA, 2002, p. 273, grifo nosso).

A citação revela uma Florbela que se performa perante os olhos atônitos de Guido, uma Sóror insurreta, com uma filosofia própria, com ideias formadas, tanto que, na carta seguinte, do dia 3-8-1930, falará ao professor que o seu “raciocínio à Hegel, apoiado numa espécie de filosofia à Nietzsche”, não lhe supre mais os anseios, visto que no momento, a sua “sede de infinito” é maior que o seu “eu”, e o seu “espiritualismo ultrapassa o céu” (ESPANCA, 2002, p. 275).  Conhecendo o gosto de Guido Battelli pelos místicos cristãos, bem como pelos escritores finiseculares, podemos compreender a inquietação que a leitura de Florbela lhe trouxe. Silva (2014) destacou que o contato de Guido com a poética do Livro de Mágoas, “toda ela crivada de inquietação, orgulho, mal-estar e titânica rebeldia, valores e atitudes pouco consentâneas com a pax et bonum[4] de um espírito franciscano”, despertou no professor uma possível ideia de “resgate”, ou, leia-se, de conversão religiosa da poeta. Florbela respondeu às investidas catequizadoras de Guido Battelli, “católico convencido”, numa carta datada do dia 3-8-1930: “não sou católica, como não sou protestante nem budista, maometana ou teosofista. Não sou nada” (ESPANCA, 2002, p. 275). Entrevemos nesse trecho da carta que o posicionamento de Florbela quanto à religião[5] é claro. A morte é outro tema que, nessa epistolografia (assim como na poesia), vai ganhando espaço, como se a poeta pegasse a ponta de um fio desenrolado há muitos anos, quando tinha nove anos de idade e escreveu o seu primeiro poema: “A vida e a morte”.  Agora, com esse interlocutor privilegiado, Florbela fala do seu estado emocional, de seus nervos “destrambelhados” que as “várias morfinas” podem aliviar, mas nunca poderão curar (ESPANCA, 2002, p. 276).  É como Sóror saudade que ela se remeterá ao professor muitas vezes,  escrevendo a ele que à “triste monja sem fé” apeteceria “estar longe”, quem sabe no claustro de Santa Cruz, em Florença, na Itália, e que a Sóror Saudade precisava, “indiscutivelmente”, de uma cela em “Rilhafoles[6]” (ESPANCA, 2002, p. 227). Vimos que foi no dia 18-7-1930 que Florbela Espanca começou a se corresponder com Guido Battelli, nessa época estava próximo o retorno deste à Itália. Receptivo à obra de Florbela, Guido se ofereceu para traduzir para o italiano a sua obra e divulgá-la fora de Portugal. Dal Farra (ESPANCA, 2002, p. 245) destacou o papel de “receptor ideal”, portador da “sedução e do mistério”, desempenhado por Batteli. Ele era alguém exterior a esfera de convivência da poeta que, durante muito tempo, existiu apenas “no âmbito fictício e remoto”, no “espaço da escrita”. Após a publicação do Livro de Sóror saudade, em 1923, Florbela colaborou com periódicos como o Don Nuno, de Vila Viçosa, elaborou um livro de contos, provavelmente O Dominó preto, e se dedicou a traduzir romances do idioma francês para o português[7], mas não conseguia publicar o livro Charneca em flor por não ter nem dinheiro e nem um editor. Guido Battelli tinha a intenção de reunir numa mesma publicação o Livro de Mágoas, o Livro de Sóror Saudade e o livro inédito de Florbela, porém, a poeta expôs ao professor a sua situação financeira, fato que muito a desanimava, inviabilizando qualquer ação por parte desta: “Não tenho dinheiro, digo isto sinceramente, carrément como se falasse com um amigo de toda a minha vida”. A poeta, mesmo que pela via da negação, aproveita, então, para sugerir a Battelli que a publique:

 Se alguma coisa se conseguir arranjar para o meu livro irei a Coimbra visitá-lo e agradecer-lhe pessoalmente o bem que a sua grande alma delicada tem feito à minha pobre alma de crucificada, triste como a charneca alentejana onde nasci. [...] Não julgo e nem nunca julgarei, no direito de fazer correr qualquer risco ao amigo que a tal empresa se abalançasse. Essa é a verdade e é por isso que, a não encontrar o editor corajoso dos meus sonhos, os versos continuarão... na gaveta, ou dispersos aos quatro ventos de jornais e revistas. Nós dizemos em português: “o que não tem remédio, remediado está”. Para avaliar o meu estado de espírito, desejoso da transformação universal pela morte, envio-lhe o meu último soneto, feito ontem, que ainda ninguém leu. Dou-lho: quem dá o que tem... Com a mais sincera simpatia e a mais alta consideração, sou

 Mtº Attª e Obrº

 Florbela Espanca

(ESPANCA, 2002, p. 269).

 A carta de Florbela foi prontamente respondida. No dia 10-7-1930[8], a poeta enviou a Guido outra carta, na qual agradecia “mil vezes” a “generosa oferta”: o professor ofereceu custear a publicação do livro. Em um aceno de humildade Florbela destaca que só tem pena de “talvez não o merecer”, mas no decorrer da carta deixa explícito o quanto acredita no potencial do livro: “Realmente, o livro, como diz, ficaria esplêndido. Os dois já publicados têm cada um, 35 sonetos, creio eu, e este inédito, que se intitula Charneca em flor, tem 50. É muito?” (ESPANCA, 2002, p. 271). Nessa carta a poeta assinou como Bela e, noutra, datada de 27-7-1930, prosseguiu agradecendo a Battelli por lhe ter enviado uma foto da escritora Sibilla Abramo. Nessa altura, Battelli apresentou à Florbela vários escritores. Em julho, a poeta agradeceu por Guido ter lhe apresentado as poesias da uruguaia Juana de Ibarbourou (1892- 1979), segundo ela, “panteísta, vibrante e sincera” (ESPANCA, 2002, p. 268). Guido falou com Florbela sobre uma determinada obra de Percy Bysshe Shelley, poeta inglês, mas a ela não se interessou e afirmou que, “por mais inverossímil” que pudesse parecer, ela gostava mais de ler prosa do que versos (ESPANCA, 2002, p. 291). Por intermédio de Battelli, Florbela teve contato com as poéticas da Condessa de Fiume e da milanesa Ada Negri (1870- 1945), que admirou, pois, assim como ela, sabiam “sofrer de diferentes maneiras!”. Segundo a poeta, “a dor de Ada Negri usava um manto de púrpura sobre os ombros”, já a sua dor, “veste de burel e anda descalça”, postura que nos remete ao franciscanismo (ESPANCA, 2002, p. 271). Battelli arriscou escrever alguns poemas e os enviou para Florbela que, de pronto, os elogiou: “Lindos, lindos os seus versos!” (ESPANCA, 2002, p. 272). Nessa mesma carta, a poeta deu ao professor dicas de como deveria orientar a publicação do livro Charneca em flor:

 A capa do futuro Charneca em flor agrada-me; sonhava-a assim, pouco mais ou menos. Sim, bruyère exatamente. As flores roxas devem ser urze. A charneca é áspera e selvagem, mesmo vestida das suas cores prediletas: roxo e dourado. Giesta, euze, rosmaninho, esteva: plantas amargas e rudes, sempre sequiosas, sempre solitárias, em face dum céu onde se ascende um sol que as queima, e o luar que as faz sonhar sonhos irrealizáveis de pobrezinhas que nunca serão princesas. É assim que eu também sou “Charneca em flor”. Envio-lhe o soneto que, a propósito do título, abre o livro (ESPANCA, 2002, p. 272).

 Florbela prosseguiu se performando ante os olhos de Battelli. Ainda nessa carta ela falou dos seus infortúnios, de como perdeu a mãe e o irmão que tanto amava, bem como, reafirmou a sua diferença em relação às outras pessoas. Declarou-se uma espécie de Dom Quixote fêmea combatendo moinhos de vento. A propósito, a poeta aproveitou para dizer ao professor que não conhecia “Cantos de vida e de esperança”, de Rubén Darío, e que Battelli não lhe enviasse o livro, pois ela própria pretendia comprá-lo em uma livraria do Porto. Junto com essa carta Florbela enviou para Guido duas “fotos” suas como “recordação” de seu “exílio na charneca...” (ESPANCA, 2002, p. 274, grifo nosso). Essa fantasia se sustentou, via epistolografia, de meados de junho até setembro de 1930, quando Battelli foi a Matosinhos conhecer Florbela pessoalmente. Antes da ida do professor a Matosinhos foram enviadas dozes cartas, nas quais Florbela revelou a Batteli a sua intimidade, performando-se em Sóror Saudade e lhe fazendo confidências: “Para os que convivem comigo, e que julgam conhecer-me, sou alegre [...]. Não conto a ninguém esta tristíssima inferioridade de me sentir uma exilada de toda alegria, [...] não mostro a ninguém a miséria da minha miséria de inadaptável” (ESPANCA, 2002, p. 272). As doze cartas enviadas por Florbela a Guido após a sua visita a Matosinhos, tratavam de fatos concretos referentes à publicação da obra Charneca em flor. Acredito que essa interlocução foi importante na vida Florbela. Por meio dessas cartas podemos, também, vislumbrar a degradação da saúde da poeta pelo fato de declarar só conseguir dormir fazendo uso do “veronal”, barbitúrico cuja overdose, no dia 8 de dezembro, levou-a à morte.

 Ora, se no final de julho de 1930, Florbela Espanca afirmou não conhecer a obra Cantos de vida y esperanza, de Rubén Darío, como mostra a carta do dia 27-7-1930, na qual trata dos detalhes finais da publicação de Charneca em flor, concluímos que a poeta teve o tempo estimado de quatro meses para tomar ciência da obra do escritor nicaraguense. Não sabemos quais poemas Florbela escreveu depois dessa data, nem quais receberam o influxo da obra dariana, também não há como afirmar que a poeta modificou algo nos sonetos já escritos a partir desse diálogo, qualquer declaração ficaria devendo comprovação. Na carta seguinte, dia 02-9-1930, Florbela declarou: “Gosto imenso, imenso do seu grande Rubén Darío. Mas, também são dele estes dois belos versos: Pues no hay dolor más grande que el dolor de ser vivo, / Ni mayor pesadumbre que la vida consciente” (ESPANCA, 2002, p. 276).



[1] Guido Battelli, natural de Sarsana, província de Gênova, segundo Gabriel Rui Silva (2014), transferiu-se para Portugal graças à influência de seu genro, o Guido Vitaletti (1886-1936), casado com Fiorela, cujo nome recorda muito o de Florbela. Vitaletti era medievalista, especialista em Dante e elemento de confiança do regime fascista italiano, instalado em Portugal em 1926. Lecionou Literatura Italiana na Universidade de Coimbra e depois em Lisboa, tornando-se adido cultural do seu país junto a Portugal e depois em Londres, quando passou o posto da Universidade ao seu sogro.

[2] Livro de prosa e poesia franciscana reunida, organizada e ilustrada por Guido Battelli.

[3] Nessa mesma carta, Florbela Espanca declara para Guido que não conhece Cantos de vida y esperança, de Rubén Darío, mas que irá procurar a obra nas livrarias do Porto. Nessa ocasião, ela o convida para visitá-la em Matosinhos e lhe envia duas fotografias como recordação de seu “exílio na charneca’ (ESPANCA, 2002, p. 274).

[4] Termo em latim que significa “a paz é boa”.

[5] Na carta datada de 1208/1930 Florbela diz a Battelli que “não só a moral cristã é bela” e lhe aponta o indiano Gandi, “esse homem-luz, divino como um Cristo e grande, como ninguém!”, a poeta afirma admirá-lo muito (ESPANCA, 2002, p. 279).

[6] Antigo convento que abrigou jovens condenados pela inquisição por se desviarem da fé católica e ofenderem a moral e os bons costumes, mas que, posteriormente, se transformou em hospital para alienados.

[7] Florbela Espanca traduziu para a editora Figueirinhas do Porto os romances A ilha azul, de George Thiery (1926); O segredo do marido, de M. Maryan (Biblioteca das famílias, 1926); O segredo de Solange, (Biblioteca das famílias, 1927); Dona Quixota, de Georges de Peyrebrune (Biblioteca do lar, 1927); O Romance da felicidade, de Jean Rameau (Biblioteca do lar, 1927); O castelo dos noivos, de Claude Saint-Jean, 1927; Dois noivados, de Champol (Biblioteca do Lar, 1927); Mademoiselle de la Ferté (Romance da atualidade), de Pierre Benoit (Série Amarela, 1929); Máxima, de A. Palácio Valdez (Romance da Atualidade, coleção de Hoje, 1932) (ESPANCA, 2002, p. 62).

[8] Nessa correspondência, Florbela contou à Battelli o quanto se sentia diferente das outras pessoas, que viviam de acordo com demanda social da época: “O meu talento!... De que me tem servido? [...] O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que se não sente bem onde está, que tem saudades... sei lá de que! (ESPANCA, 2002, p. 271).

Guido Batelli, o "apóstolo florbeliano" (Parte1- encontros)



A obra Charneca em Flor, de Florbela Espanca, além de colocar em evidência a personalidade poética de Rubén Darío, colocou em cena, também, outra personalidade, a do editor da obra em questão e pessoa responsável por apresentar a Florbela Espanca o livro dariano Cantos de vida y esperanza, Guido Battelli. Este artigo pretende lançar um olhar sobre essa relação a partir da epistolografia florbeliana e das cartas trocadas entre Túlio Espanca e Guido Battelli.Usaremos como aporte teórico os estudos comparativos.

Na carta que Florbela enviou a Guido Battelli (1869-1955) no dia 03-8-1930, a poeta diz: “Gosto imenso, imenso do seu grande Rubén Darío. Mas também são dele estes dois belos versos: “Pues no hay dolor más grande que el dolor de ser vivo, / Ni mayor pesadumbre que la vida consciente” (ESPANCA, 2002, p. 276). Guido Battelli (1869-1955) desempenhou um papel impactante na história da publicação e recepção da obra Charneca em Flor e de outros livros póstumos da poeta. Segundo Maria Lúcia Dal Farra (ESPANCA, 1995, p. 19), Battelli “insinuava aos leitores” que na obra de Florbela estava explicada a razão de sua morte, acionando uma forma de leitura mecanicista que acabou amalgamando a vida e a obra da poeta para críticos e leitores durante muitos anos:

 Foi certamente de mau gosto e perniciosa para a inaugural recepção da poetisa: para começar a palavra “suicídio” não se encontrava num posto privilegiado dentro da cartilha do bom-tom salazarista, sendo, por isso mesmo, interdita pela imprensa... De maneira que, de um lado, os dotes ímpares da sua poesia chamam a atenção do maior periódico português de então, o Diário de Notícias de Lisboa, através do seu editor Antônio Ferro e de Celestino David, correspondente em Évora – de outro, começam os embargos para empanar essa notoriedade, à qual se agregarão, paulatinamente, as mais desairosas pechas concernentes à imagem feminina (ESPANCA, 1995, p. 19).

 A respeito de Guido Battelli (1869-1955), sabemos que era professor visitante na Universidade de Coimbra, onde lecionava a disciplina História da Literatura Italiana, e que, por intermédio de um advogado amigo seu, teve contato com a poesia de Florbela. Guido leu um poema de Florbela na revista Portugal Feminino em meados de junho de 1930 e, então, escreveu para a revista buscando informações sobre a poeta. A própria escritora, que estava em Lisboa, lhe respondeu, dando início a uma interlocução que duraria todo o último ano da sua vida. Maria Lúcia Dal Farra publicou toda a correspondência que Florbela enviou para Guido nesse período, um total de vinte e quatro cartas, analisando-as de forma aprofundada. Esse material possibilita que tenhamos uma visão do relevo dessa personalidade no impacto que as publicações póstumas de Florbela causaram sobre a recepção da sua obra e sobre a sua imagem. E no meu estudo de doutorado, na Universidade de Évora, que me deparei com um conjunto de cartas trocadas entre Guido Battelli e Túlio Espanca, que revelam impressões e reflexões de Guido já na bastante idoso e perto de falecer. Foi em setembro de 2013, enquanto bolsista da Capes, que acessei esse espólio histórico adquirido pela Universidade em 2009, a partir de recursos da Fundação Calouste Gulbenkian. O espólio de Túlio Espanca, primo e afilhado de Florbela Espanca começou a ser limpo, identificado, classificado e acondicionado em 2010 e conta com 2.268 cartas, 467 cartões, 419 guias de roteiros, 44 catálogos gerais e 137 catálogos de exposições, 738 jornais e recortes, 24 revistas e 1954 postais ilustrados, além de um rico acervo fotográfico. Busquei algo que contribuísse para com a pesquisa que realizava e encontrei um conjunto de cartas e postais enviados por Guido Battelli à Túlio Espanca entre 1951 e 1954, ano em que faleceu o professor italiano. Esses documentos estavam acondicionados em uma caixa, cada um deles separados por pastas numeradas, num total de quarenta e, até então, não tinham sido submetidos a nenhum tipo de análise crítica. Solicitei à Biblioteca da UÉvora autorização para copiá-los, o que não nos foi concedido, mas recebemos permissão para transcrever o que fosse útil à nossa pesquisa. A partir dessa coleta, busquei ampliar o olhar para a personalidade de Guido Battelli e para as ações que, após a morte da poeta, ele implementou para divulgá-la dentro e fora de Portugal. O meu foco era encontrar algo que relacionasse Florbela a Rubén Dario, pois, ao buscar dentro dos estudos florbelianos referências ao escritor nicaraguense, encontrei, apenas, a declaração feita pela pesquisadora Liliana Maria Rodrigues Queirós Matias sobre o porquê de Florbela ter escolhido um poema dariano como epígrafe para o livro Charneca em flor. Ela diz:

 A coletânea, consideravelmente maior que as anteriores, é precedida por duas estrofes do poeta nicaraguano Rubén Darío que Florbela quer, assim, homenagear. Afinal na lírica de Rubén Darío há um misto de espiritualidade lírica e de sensualidade, duas vertentes tão caras à poesia portuguesa. As estrofes rubenianas são um cântico de amor sem fronteiras, são um convite à entrega total, constituem, certamente, o mote perfeito para o conteúdo do poema prefácio da coletânea [...] (MATIAS, 1998, p. 89, grifo nosso).

 Embora considerasse acertadas as palavras da pesquisadora sobre das vertentes afins entre os poetas, sentia que havia algo mais, uma motivação outra. Fui percebendo que o desejo de Florbela Espanca ultrapassava a simples homenagem a Rubén Darío e que escolher um poema da obra Cantos de vida y esperanza como epígrafe para Charneca em Flor sinalizava, também, a possibilidade da existência de um diálogo interno com a poética dariana. Esse tipo de operação pude observar desde o Livro de Mágoas, com Verlaine, e no Livro de Sóror Saudade, com o poeta Américo Durão. Pude conjecturar, então, que Florbela, muitíssimo agradecida a Guido Battelli por se oferecer para publicar o livro Charneca em flor, visto que ela não tinha dinheiro para fazê-lo, tenha dedicado especial atenção às leituras sugeridas pelo professor, dentre elas, a obra Canto de vida y esperanza, como podemos observar no fragmento da carta do dia 28-8-1930:

Não imagina como fiquei contente com a notícia que me deu a respeito do meu livro. Ainda me parece um sonho, e eu não costumo acreditar muito nos sonhos... Porque de todos se acorda. Estou realmente contente e esta alegria, a maior que me podia vir agora que tão poucas espero, devo-lha a si! [...] Como agradecer-lhe e pagar-lhe a minha dívida? [...] Na página anterior logo ao primeiro soneto, exatamente como vai esses belos versos de Rubén Darío (ESPANCA, 2002, p. 292-93, grifo nosso).

 Dediquei especial atenção, durante a pesquisa, ao livro Charneca em flor (1931), obra póstuma de Florbela, destacando a história de sua estruturação, que envolveu de forma irremediável – desde a sua nascente, passando pela sua estruturação, editoração, lançamento e recepção – o seu editor, Guido Battelli. Nessa altura da pesquisa, as cartas inéditas trocadas entre Guido Battelli e Túlio Espanca, foram iluminadoras. Selecioneis, cataloguei e analisei a parte desse material que interessavam á pesquisa, com vistas à ampliação do olhar para este personagem ambíguo que integra a história da editoração e divulgação da obra florbeliana. Antes de falar, propriamente, da obra Charneca em flor, acredito que se seja pertinente explicar a sua nascente, visto que nela se insere esse personagem relevante ao qual chamo de “apóstolo Florbeliano”, o seu editor, Guido Battelli, pessoa que apresentou à Florbela o livro Cantos de vida y esperança, de Darío, que foi pivô de variadas confusões que envolveram a publicação da obra póstuma da poeta.

 A morte de Florbela Espanca na madrugada do dia 8-12-1930, quando completaria 36 anos, gerou grande comoção entre os seus amigos. Embora a versão oficial tenha sido morte natural[1], o acontecido não deixava muito espaço para dúvidas: fora suicídio[2]. Dal Farra (ESPANCA, 1999, p. XIV) destacou que houve uma “maciça mistificação” em torno da morte de Florbela, afinal, a palavra suicídio era interditada nos jornais e a família, católica, tentava abafar o caso. Antes de morrer Florbela havia confiado a Guido Battelli os originais de Charneca em flor. Guido Battelli[3], segundo Dal Farra (ESPANCA,1999, p. XV), foi a primeira pessoa a equacionar a vida e a obra de Florbela, “no afã de prestigiar e de promover a poetisa”. Ainda para esta pesquisadora, essa postura do professor italiano transforma-o, a partir da morte de Florbela, numa espécie de porta-voz da poeta e de tudo o que lhe dizia respeito.


[1] Embora o marido de Florbela Espanca fosse médico, o laudo da morte da poeta foi assinado por um carpinteiro, Manuel Alves de Souza, e indicava que o motivo do falecimento era edema pulmonar.

[2] Edgard Morin (1997) descreve o suicídio como a “tentação plena” da morte. O suicídio é capaz de fazer romper “o isolamento da individualidade no mundo, o desprendimento de tudo, a solidão, fazendo com que nada mais prenda o indivíduo a uma vida que ele sabe estar fadada à destruição”, dessa maneira, essa seria uma forma de “reconciliação suprema e desesperada com o mundo” (MORIN, 1997, p. 49, grifo nosso).

[3] Guido Batteli foi o editor do póstumo Charneca em flor (1931), obra com cinquenta e seis sonetos, em cuja segunda edição o professor inseriu mais vinte e oito sonetos sob o título Reliquiae. Na terceira edição da obra foram inseridos mais cinco sonetos ao livro. Ainda em 1931, Battelli publicou Juvenília, no qual reuniu sonetos dispersos da poeta, a maior parte destes escritos antes da publicação do Livro de Mágoas (1919). Batteli também foi responsável pela publicação de parte da epistolografia de Florbela. O professor publicou as cartas que a poeta lhe enviara e as que ela enviara para Júlia Alves (Cartas de Florbela Espanca a Dona Júlia Alves e a Guido Battelli), porém, manipulou essas correspondências de forma deliberada. As cartas remetidas por Florbela à Battelli foram depositadas na Biblioteca Pública de Évora sob a condição de que só fossem abertas em 1941, ou seja, passados dez anos do depósito. Quanto às cartas que Florbela remeteu para Júlia Alves, acredita-se que foram levadas por Battelli para Florença e destruídas por um incêndio quando a casa do professor pegou fogo durante a Segunda Guerra Mundial. Maria Lúcia Dal Farra ressalta que a epistolografia florbeliana é marcada por “imprecisões, adulterações, montagens e interpolações” (ESPANCA, 2002, p. 163). Em 1979, as adulterações feitas por Battelli às cartas escritas por Florbela foram registradas por Agustina Bessa-Luís.

24/01/2022

Amor en el río de la vida, novo romance de Pedro Sevylla de Juana

 


Amor en el río de la vida é a mais recente obra do escritor e tradutor Pedro Sevylla de Juana. Pedro é um escritor de fôlego, seus romances são profundos, filosóficos e nessa sua obra mais recente ele retoma a história do personagem, seu alter-ego, Cesáreo Gutiérres Cortés, que tem a sua intimidade desnudada por um narrador onisciente. Como poderão comprovar no primeiro capítulo da obra, disponível gratuitamente para leitura no site da editora, questões íntimas e familiares são repassadas nesse primeiro momento e as feridas e debilidades desse personagem profundo vão sendo paulatinamente expostas, o que dá uma ideia do que será encontrado no decorrer da obra.

Amor en el río de la vida es el libro número treinta de Pedro Sevylla de Juana, académico correspondiente de la Academia de Letras del Estado de Espírito Santo en Brasil y Premio Internacional Vargas Llosa de novela. El protagonista de otro libro se queja de la muerte recibida, heroica pero temprana. Cree Pedro Sevylla en el derecho de rectificación de los personajes y, en el hospital en que murió, los médicos lo salvan, participando en la actual novela. Residen en Madrid el autor y su amada, una actriz recién reencontrada, a quien ama desde la adolescencia al verla activar un teatro de marionetas. La acción, situada en el pasado inmediato, indaga sobre las personas: su origen, sus objetivos, entorno, dudas, errores y aciertos. Intensidad de pensamiento al servicio de la realidad y de la vida, la mujer, el varón y la maternidad reciben un trato preferente. Durante la escritura, el personaje de la amada lee y juzga lo escrito, poniendo al autor frente a sí mismo. Amor en el río de la vida es un torrente de prosa que lleva a cada lector adonde quiere ir. Se dan realidad y ficción en un mismo plano, gozando personas y personajes de idéntica naturaleza, por lo que las historias cobran una nueva dimensión vivificante. La novela, una y varias, escrita con un lenguaje dinámico y sencillo, rompe moldes para que el lector conozca la vida tal como era. Blog literario: www.pedrosevylla.com


Pedro Sevylla de Juana é um escritor de grande talento e muitas vezes premiado. O seu percurso como poeta, romancista, tradutor e critico literário pode ser acompanhado no seu site pessoalO poeta nasceu em Valdepero, província de Palência, na Espanha, em 16 de março de 1946. Trabalhou muitos anos como publicitário em várias multinacionais, em Madri, e antes de completar cinquenta anos deixou seu último posto de chefia na profissão para dedicar-se à escrita. Pedro Sevylla de Juana é um escritor apaixonado por descobrir novos lugares e conviver com as pessoas, entre os seus escritos podem ser encontrados estudos sobre obras de escritores de vários países, em especial do Brasil. Tenho a alegria de ter a amizade dessa pessoa maravilhosa que adotou o Espírito Santo como sua segunda casa e tornando-se  querido entre os intelectuais capixabas. Pedro ocupa um posto como Acadêmico Correspondente na Academia Espírito-santense de Letras e tem sido o tradutor dos meuis poemas há mais de dez anos. Em agosto de 2021, publicamos em parceria o poemário bilíngue O Coração da Medusa, primeiro lugar no Edital de Cultura da Secult/ES. 

Um pedido de socorro pela Mata Atlântica, Por Jorge Elias Neto.


Certas coisas “calam” a alma, e uma desesperança preenche, subitamente, o espaço que recriamos, dia a dia, para existir.

Após assistir ao vídeo que me foi encaminhado pela professora e ambientalista Renata Bomfim, já fiquei assustado. Aquilo que eu remoía, previa, sentia, se configurou verdade. O abismo humano, aquele que antecede a erosão objetiva da terra devastada, se estendeu pelas encostas de Domingos Martins.

Hoje passei pelo local do registro das primeiras imagens do desmatamento, e olha que as fotos e o vídeo retratam, de forma clara e objetiva, a tragédia ecológica. Mas as imagens não foram capaz de traçar os limites precisos da desolação que me atingiu.

Pois não tem limite o homem e sua vulgaridade e torpeza.
Derruba-se aqui, ali, e seu entorno.
E o limite é a morte.
A busca da felicidade, do paraíso terrestre, da fuga da Covid nos grandes centros… 
A falta de incentivo para a preservação, o parcelamento dos terrenos familiares e necessidade de capitalização… Eis alguns dos argumentos.

E o meio ambiente? A flora, a fauna, a água, o clima…. E a certeza de que haverá vida e a beleza será preservada apesar de nós? O que somos? Assistimos e comentamos? O que fazemos? Passamos no Mundo. Mas o que deixamos?

Sejamos responsáveis e nos unamos para impedir, protestar e combater o que acaba de ocorrer em Domingos Martins pois a Mata Atlântica é frágil e depende de todos nós.



Jorge Elias Neto
é médico cardiologista e escritor, membro da Academia Espírito-santense de Letras.

Yared Ayla, poeta mexicana multifacetada.

Yared Ayala

No dia 17 de janeiro a querida amiga escritora, cantora compositora e editora mexicana Yared Ayala fez aniversário. Yared é uma artista multifacetada e possui uma linda voz e possui uma poesia filosófica e sensível. No dia do seu aniversário um grupo de amigos se reuniu para celebrar a data e,  junto a esse coletivo de poetas que já se reconhece como família, pude ler  o poema Hilo y Aguja, para o qual fiz uma tradução livre.

Hilo y Agula

¡Que gran hazaña ensartar un hilo!

Pareciera tan sencillo, como un juego de niños.

Precisión, paciencia, concentración y empeño;

Virtudes que no todos  poseemos.

Buena vista, pulso y silencio,

Enfocar bien la mirada, conteniendo el aliento.

 

Si quisiéramos hacerlo como otras cosas hacemos,

El resultado podría dejar  ¡ a un melenudo sin pelo!

Rapidez, fuerza, coraje, herramientas recurrentes en ésta vida agobiante, 

De torcidos intereses.

No importa a una aguja, tu fuerza.

Ni a un hilo tu rapidez.

Astucia y serenidad, es lo que el ojo atraviesa.

Y si en la vida ocuparas la mitad de esta destreza

Podría  todo ser tan simple, tan sencillo, como insertar un hilo… en la aguja correcta.


*** *** ***

Fio e agulha

Que grande façanha inserir um fio!

Pode parecer simples como um jogo infantis.

Precisão, paciência, concentração e empenho;

Virtudes que nem todos possuímos.

Boa visão, pulso e silêncio,

Enfocar bem o olhar, prender a respiração.


Se quiséssemos fazer como fazemos as outras coisas,

O resultado poderia deixar um cabeludo careca.

Rapidez, força, coragem, ferramentas recorrentes nessa vida

de controversos interesses.

Não importa a uma agulha a tua força,

Nem a um fio a tua rapidez.

Astúcia e serenidade passam pelos olhos

E se na vida conquistares metade dessa destreza

Tudo poderia se tão simples, simples, como inserir um fio...

 Em uma agulha correta. 


Minibio:

Yared Ayala nació el 18 de enero, en Matamoros, Tamaulipas, México. Es escritora poeta, compositora, cantante profesional, actriz, narradora oral, tallerista, vocal coach, Licenciada en Ciencias de la Comunicación con especialidad en locución y doblaje profesional. Conocida en radio como “La Chica de la voz sensual” y actualmente en el medio musical como:  YARED  “La Voz de la Salsa”. Actualmente es Directora artística del Festival Internacional Palabra en el Mundo, Poesía en todas partes. Capítulo México, Núcleo Tamaulipas, Sede Matamoros. Ha sido invitada a diferentes festivales musicales y culturales en México, Cuba y Colombia. Participó en la Voz México temporada 2020.

23/01/2022

Dia Nacional das RPPNs/ 2022: Celebramos para mostra que existimos e que não fugimos à luta!


Em 2017 foi instituído o Dia Nacional da Reserva Particular do Patrimônio Natural, mais conhecidas pela sigla RPPN. Existem variadas modalidades de unidade de conservação (UCs), todas elas  reguladas pela Lei 9.985 de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). A RPPN é um tipo de UC que diferente das demais por ser  a única cuja criação é feita a partir da iniciativa do proprietário de área rural ou urbana, e não pelo governo, ficando ao encargo deste o seu reconhecimento.

Essa modalidade de UC tem se mostrado essencial para a preservação do remanescente de Mata Atlântica e demais biomas. Dados indicam que cerca 80% do remanescente de Mata Atlântica está em terras de particulares, o que mostra que as RPPNs são um modelo chave para a conservação e recuperação de áreas naturais, especialmente quando urge garantir a segurança hídrica e combater e mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

Observamos, de antemão, que cada RPPN criada é uma ganho tanto para a sociedade, quanto para o poder público, pois, significa uma economia de recursos, pois evita desapropriações, indenizações, instalação de estrutura, contratação de funcionários, manutenção, gestão, além de fortalecer o movimento preservacionista.


Macacos-prego-de-criata na RPPN Reluz

A crise ambiental que vivenciamos é fruto de um estilo de vida, de um comportamento frente a natureza. A cultura do consumo faz com que as cidades sejam grandes produtoras de lixo. Já a floresta, essa não dorme trabalhando dia e noite e produzindo vida e bem-estar no campo e nas zonas urbanas. As matas prestam serviços ecossistêmicos vitais para a sociedade, mantendo o equilíbrio da vida como um todo, pois, além do ser humano, muitos outros seres dependem da floresta. Infelizmente, a ganância associada à ignorância tem feito com que  interesses econômicos se sobreponham à vida e o cenário ambiental vai ficando cada vez mais caótico. 

No Brasil, observa-se um avanço significativo no desmatamento, não apenas na Mata Atlântica, mas também no Pantanal, Cerrado e na Amazônia; há também a legalização de práticas criminosas como a grilagem de terras, a vista grossa para o garimpo, a opressão e  massacre dos povos originários, a desarticulação dos conselhos ambientais, a criminalização e assassinato de muitos(as) ambientalistas, o enfraquecimento dos órgãos fiscalizadores, enfim, tragédias que não nos permitem ficar paralisados, apenas olhando, ou reclamando, mas que nos convocam à luta. O Xamã Yanomami Davi Kopenawa, uma voz importante na defesa da floresta e dos povos indígenas, alerta para o colapso ambiental iminente, caso o ser humano não mude a sua relação com a mãe natureza, ele declarou: "a Terra está pedindo socorro para que a floresta seja protegida".

 Os efeitos benéficos que as áreas naturais propiciam abrangem todas as instâncias da vida cotidiana das pessoas, embora muitas delas nem se deem conta. A água que chega ás torneiras das casas, às plantações e as indústrias, a captura do carbono e demais gazes tóxicos da atmosfera, a manutenção dos polinizadores que garantem quase a totalidade dos alimentos que chegam à mesa, são alguns poucos exemplos do bem que as florestas nos fazem.  Variados países, por exemplo, já praticam o "banho de floresta", uma atividade que vem ganhando adeptos, motivados pelos resultados positivos que a exposição às áreas verdes promovem. Há, ainda, diferentes formas de atividades esportivas e de lazer que podem ser realizados em parques e reservas, a pesquisa científica que nos lega remédios e conhecimentos, etc., se observarmos bem, veremos que na realidade, são as áreas protegidas que nos protegem. 

Soltura de pássaros apreendidos. Parceria CETAS/IBAMA-ES.

Municípios e cidades só ganham com as reservas ambientais, em especial com as RPPNs, pois, além desses espaços verdes gerarem saúde e qualidade de vida, eles embelezam as áreas urbanas e geram trabalho e renda com o turismo ecológico. 

A RPPN Reluz é um sonho que tornou realidade. A Reluz foi reconhecida pelo Governo Federal e pelo Governo do Estado do Espírito Santo em 2017, mesmo ano em que foi instituído o Dia Nacional das RPPNs, também por isso o dia 31 de janeiro possui um significado especial para nós. Embora sejamos uma reserva ambiental desde 2007, a ratificação do compromisso de preservar essa área, por meio do registro em cartório, destinando a floresta para preservação perpétua, nos dá muita satisfação e reforça a nossa responsabilidade com a proteção da biodiversidade. 

Alimentação dos animais na RPPN Reluz.

Sabemos que na atual conjuntura não basta proteger as florestas, é preciso também restaurar as áreas naturais degradadas. Embora todos os dias e em todos os estados da federação haja pessoas destinando as suas terras para a preservação e doando o seu trabalho pelo bem comum, no dia 31 de janeiro, as nossas vozes se unem para celebrar, protestar, denunciar e convidar toda a sociedade para se juntar a nós nesse movimento de amor pelo planeta!

Renata Bomfim
Gestora da RPPN Reluz e 
Presidente do Instituto Ambiental Reluz.



Foto do cartaz tirada na RPPN Reluz por André Lima/ COA-ES.

07/01/2022

Os anos passaram (Renata Bomfim)

 Os anos passaram,

a melodia tornou-se outra,
eu me tornei outra.
O cais assustador já
não assusta mais,
o inverno, mais suportável,
as flores não perderam  a cor, 
mas, o seu perfume foi capturado
pelo mercado.
Os anos passaram.
O prazer nas coisas pequenas e simples
se intensificou.
Janela aberta, observo
as árvores, sobreviventes
da fúria dos lenhadores da prefeitura.
Na árvore que guarda
a minha saúde mental canta
um passarinho da cabeça vermelha,
o canto dessa criatura me assombra,
parece que nasci ontem e que
desconheço as coisas do mundo.
Fecho os olhos e agradeço a Deus,
a Brahma, a Buda, a Krishna, ao Cosmos,
ao grande Nada, e a todas as entidades 
pelo dom de escutar.
A indiferença lacera a minha carne 
como se um cutelo separasse as partes
do tenro ao osso.
Sou o que sou: apenas um ouvido
aberto para o mundo, escutando 
o canto dos pássaros,
e nada mais.
A poesia ameaça voar com esse pássaro
de cabeça vermelha, num átimo
vem à memória os índios capixabas,
penso nos seus corpos urucum,
flamejantes como o sol,
guerreiros do indizível,
vitimas de uma chantagem chamada
progresso.
Os anos passaram, mas, muita coisa
não passou.
A dor permanece a mesma,
a saudade sei lá de quê também.
Que tudo isso, um dia, faça sentido.
 Amém!